Palácio Nacional de Mafra: uma visão romãntica, em litografia de 1853, da autoria de João MacPhail (que morreu em 1856). Fonte: Biblioteca Nacional de Portugal: http://purl.pt/12043. Imagem do domínio público, Cortesia de Wikimedia Commons
Procurei consolá-lo, fomos petiscar, “jaquinzinhos fritos”, com arroz de tomate, ainda me recordo, numa tasca saloia, de um fulano da Malveira, que ainda lá existia, quatro anos depois. Já estava mais “modernaça”, para o meu gosto, com mesas envernizadas e tampos de vidro…
Depois procurei mentalizar o meu colega de “desterro” (mas, no fundo estava a tentar arranjar algum consolo para o meu próprio infortúnio=: um gajo, na vida, tem de começar por qualquer coisa, “estagiário” ou “aspirante” a qualquer coisa. A menos que se tenha um pai rico… Começáramos como “aspirantes estagiários”, muito bem… E um dia, se o convento não desabasse, haveríamos de subir mais um ou dois degraus… Pensava nisso quase todos os dias quando subia aquela maldita escadaria, de manhã, para chegar à repartição. Foi o que o “chefe” nos disse, incentivando-nos a estudar… “É uma carreira bonita mas dura”… E, aí, de repente, tive a intuição de que ele só poderia ter sido padre, há uns vinte e tal anos atrás… Os padres são marrões, conhecia-os de ginjeira.
Tudo isto para dizer que fui completamente apanhado de surpresa pelo 25 de Abril. Nessa manhã eu estava na repartição, quando alguém, de fora, da nossa tertúlia, me veio dar a notícia, alvoraçado, ao balcão. Mas ainda a medo, segredando-a ao meu ouvido. Eu próprio pensei logo que era um golpe da extrema-direita, orquestrado pelo Américo Tomás e o Kaulza de Arriaga. Mas de tarde já andava tudo nervoso, lá na repartição, a começar pelo "açoriano", que se trancou no gabinete.
Pessoalmente não tinha grandes ideias para o meu futuro pessoal. Queria poder equacioná-lo numa perspetiva de futuro… coletivo. Precisava de sentir que o meu país tinha futuro. Era uma dos chavões da época... Queria continuar a estudar, mas não tinha grande cabeça para o fazer. Faltava-me a disciplina mental. Ainda estava a fazer o “luto”: não já da morte do meu pai, mas da minha participação na guerra… Estranhamente, só depois de ter regressado, é que comecei a sentir “asco” por ter feito aquela guerra…
Não é que eu fosse muito “informado” quando parti para a Guiné… E, confesso até, não tinha “consciência política” na altura… Nem grande nem pequena… Não tenho hoje vergonha de o dizer, depois de passar à “peluda”…
Quando fui mobilizado, não questionei a legitimidade da guerra… Aceitei a “canga” que me puseram em cima, como o burro que puxava a nora, lá no quintal de um dos vizinhos dos meus avós de São João dos Caldeireiros… Mas depois vi coisas, na tropa e na guerra, de que não gostei. E isso terá enviesado a maneira de ver o que se passava em Portugal, a partir de 1972. De resto, tinha tido uma educação, no mínimo, “religiosa e conservadora”, propícia à aceitação resignada da "ordem estabelecida", como então se dizia… O Vaticano II, o Concílio, levara tempo a chegar a Portugal, mas começava a “fazer estragos”, e um deles foi o progressivo despovoamento dos seminários...
Gostava de gabar-se de que ainda tinha algumas boas relações, que vinham do tempo em que um dos antepassados, do lado do ramo materno, fora juiz-conselheiro e par do reino no tempo do senhor Dom Carlos. Não quis humilhá-lo perguntando-lhe o que era isso de ser “par do Reino”… e lembrando-lhe que em 1910, há mais de 70 anos, tinha caído a monarquia em Portugal…
Para desgosto da mãe, que devia ser uma pessoa intelectual e moralmente exigente, ele nunca fora bom aluno, tirara o quinto ano dos liceus, se calhar à rasquinha, pelo oque eu deduzi. O que não era normal nos filhos dos professores primários, formatados para serem os primeiros da turma. Mas tinha jeito para línguas, mais do que eu, que era um cepo. Vá lá, eu safava-me no latinório, que era uma língua morta, e desenrascava-me no francês de praia…
O Bacelar era o que se podia dizer um sedutor nato, tinha sorte, garantia ele, junto do “sexo fraco”. Mas também fazia facilmente amigos de ocasião. Tinha olho azul e era alourado. Tinha uma bela cabeleira. Enfim, era bem “apessoado” e caprichava no vestir. Mas eu não lhe dava grande trela, não tinha pachorra para lhe ouvir as aventuras amorosas desde o tempo do colégio dos jesuítas… Secretamente, invejava-lhe a sorte de ter tido, nessas matérias, melhores professores do que os meus…
Ao Bacelar não era totalmente estranha a “região saloia” (, como ele abusivamente dizia), já que tinha passado dois ou três meses, mais a norte, nas Caldas da Rainha como 1º cabo miliciano, monitor no Curso de Sargentos Milicianos, antes de ser mobilizado para Angola. Expliquei-lhe que a “região saloia” ia das muralhas de Lisboa até Mafra… O Dom Afonso Henriques poupara os mouros, não os passando pelo fio de espada, como era norma, bárbara, em tempos de cruzadas, mas mandara-os cultivar alfaces fora das muralhas. Enfim, esta era a historieta que me contara um dos meus instrutores, na “Máfrica", se calhar ele próprio ainda com sangue mouro nas veias...
Quis o destino que fôssemos os dois parar àquele antro de públicas virtudes e vícios privados, desde o tempo do senhor Dom João V… O "cubículo" da repartição de finanças era, só por si, um casarão, onde apesar do eco, não se falava alto. O chefe impunha o seu tom de voz, mavioso, de ilhéu terceirense, se bem me lembro. Acho que ele era da terra do Vitorino Nemésio, Praia da Vitória. Raramente aparecia em público. Passava a maior parte do dia, no seu gabinete, a preparar-se para o “próximo concurso” que nunca mais chegava...
Ah!, também não gostava de ver o Bacelar a puxar do o “cartão da PIDE/DGS”, como eu lhe chamava com sarcasmo, quando íamos ao “Ouriço” ou atéao bar do hotel!... Ele tinha cá uma lata!... Eu, pelo contrário, recusava-me a fazer uso do cartão da DGCI. Penso que nunca puxei por ele para me impor a alguém ou entrar num estabelecimento da vida nortuna, que de resto só frequentava para fazer companhia ao Bacelar.
Desde o início que o gajo não simpatizou comigo, o adjunto, por alegadamente eu ser “filho de Ansião”. O homem devia ter tido algum conflito com o diretor-geral, no passado. E quem pagava, por tabela, eram os “afilhados”…
Inconsolável, fui pôr o caso ao chefe da repartição e falei-lhe do meu tio-avô, diretor de finanças…. Enfim, para não se chatear com o seu adjunto, alargou a minha área de competência com a contribuição predial que era “muito trabalhosa”, e retirou-me o correio e o expediente, que era coisa de escriturário…
Em jeito de protesto, eu no dia seguinte pedi logo transferência para Viana do Castelo ou Braga, conforme as vagas…
O “serviço melhor” já tinha dono, três ou quatro funcionários do “grupinho do adjunto” controlavam as “principais áreas de poder”: contencioso, fiscalização externa, imposto sucessório, imposto profissional, imposto complementar, contribuição industrial… Eram todos da terra, quer dizer “saloios”, com exceção de um de fora, mas já com raízes familiares em Mafra.
Acabei por descobrir, por portas e travessas, que este era também o “grupinho das meninas”: uma vez por mês iam a Lisboa, a uma casa de passe clandestina, controlada por uma “madama” com muito boas relações com a hierarquia da DGCI… Creio que era à sexta-feira da última semana do mês… Percebia-se pelas conversinhas, entre eles, na segunda-feira de manhã, que a noitada tinha sido em grande, acabando numa conhecida marisqueira das Portas de Santo Antão…
Contei tudo isto ao Ravasco, que ficou indignado e mostrou-se solidário comigo. Afinal, quem paga tudo isso ?, interpelava-me ele. A minha consideração pelo meu colega alenyejano aumentou mais um ponto ou dois. Mas não alterou nada da minha situação ali dentro. Sentia-me deslocado, infeliz, com saudades da minha gente e da minha terra.
O Bacelar levou o carro dele, eu fui num outro, não queria ser votado ao ostracismo logo nos primeiros dias. Percebia-se que cultivavam boas relações com alguns dos maiores contribuintes. Era costume, por exemplo, um deles, muito conhecido, ligado à indústria de alimentação e bebidas, oferecer, pelo Natal, uma lauta ceia aos funcionário da repartição de finanças. Era uma tradição já arreigada, não só nas contribuições e impostos, como no restante funcionalismo da província, incluindo os tribunais. Noutras ocasiões ia-se a uma marisqueira de Ribamar da Ericeira,
Nesse final de ano de 1972, eu e o Bacelar também fomos convidados. Parecia mal não alinhar, logo no nosso “primeiro ano”. Sabíamos que estávamos “à prova”, debaixo de escrutínio… O chefe, esse, delegou no adjunto. Parecia-nos um homem decente, mas fraco em termos de autoridade… Chamavam-lhe o “açoriano”…
Nessa “ceia de Natal do fisco”, entre “charutos cubanos” e “conhaques franceses”, ouvi a história do fundador da empresa que, no tempo da guerra de Espanha, aprendera a fazer contrabando de “essência de laranja”, e acabara por abrir uma fabriqueta de “pirolitos”…O segredo do negócio ? A água, o acesso a água, “muita e de boa qualidade”… Percebi depois que, com a “guerra de África”, as exportações haviam aumentado em flecha…Era um dos fornecedores da Intendência Militar. Lembro-me de ter visto a marca, na Guiné… Mas eu não bebia refrigerantes, com carradas de acúcar, que só faziam aumentar a sede…
A minha santa ingenuidade, a minha crença, parva, na honestidade e bondade intrínsecas do ser humano, sofreu mais um duro golpe. Eu tinha idade para ficar de pé atrás contra certa gente. Afinal, aquilo de administração pública tinha pouco. O tal adjunto era apenas a ponta do iceberg. Entristecia-me ter colegas daqueles a trabalhar a meu lado. Infelizmente tinha que lhes sorrir e apertar a mão direita enquanto, com a mão esquerda, eles enfiavam no bolso o “santo antoninho”, a nota de vinte paus, que o pobre do contribuinte saloio lhes deixava debaixo da capa do “processo"... O "processo”, o terror de qualquer pequeno contribuinte !!!...
Mas, adiante. O acontecimento mais marcante que vivi em Mafra Dois, no tempo em que lá estive, enquanto trabalhador dos impostos, foi o 25 de Abril de 1974. Não por nenhum acontecimento local, digno de especial nota: não vi movimentação de tropas, alvoroço de tropas, viaturas, chaimites, tiros para o ar, nada disso… Tudo se decidiu alguns quilómetros mais a sul, na capital. Mas antes tenho de recordar aqui uma cena, das minhas memórias de Mafra Dois, que nunca mais esquecerei, enquanto pelo menos não apanhar o Alzheimer.
(Continua)
© Luís Graça (2021)
Último poste da série > 27 de agosto de 2021 > Guiné 61/74 - P22489: A galeria dos meus heróis (41): De companheiros de infortúnio a amigos para a vida - Parte I (Luís Graça)
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