segunda-feira, 23 de agosto de 2021

Guiné 61/74 - P22478: CCAÇ 1439 (Xime, Bambadinca, Enxalé, Porto Gole e Missirá, 1965/67): A “história” como eu a lembro e vivi (João Crisóstomo, ex-alf mil, Nova Iorque) - Parte XII: Mina A/C em 21/8/1966, e violento ataque ao Enxalé em 9 de setembro



Armamento do PAIGC: Metralhadora Pesada Degtyarev (DShK),cal. 12,7 mm, m/ 938/56, de fabrico soviético,  também conhecida, na gíria do mato, como Deka, Desseque ou DCK (*)



João Crisóstomo 
(a viver em Nova Iorque desde 1977)


1. Continuação da publicação da publicação das memórias do João Crisóstomo, ex-alf mil, CCAÇ 1439 (1965/67)


CCAÇ 1439 (Xime, Bambadinca, Enxalé,
Porto Gole e Missirá, 1965/67) : a “história”
como eu a lembro e vivi
(João Crisóstomo, luso-americano,
ex-alf mil, Nova Iorque) (**)


Parte XII:

Dia 20, 21 e 22 Agosto: Op Gorro


Não me parece que o relatório contenha uma “completa” informação sobre esta operação Gorro. Contudo eu não me lembro de pormenores que me possibilitem contradizer o que está escrito. A info pode estar correta, mas está definitivamente incompleta. 

Se me não engano depois do rebentamento do engenho explosivo em que sofremos vários feridos, alguns deles graves, a CCaç 1439  voltou para o quartel no mesmo dia. O relato não menciona isso, mas dá a entender que a operação Gorro se prolongou no dia seguinte, dia 22.

Eu fazia parte deste deslocamento em que sofremos o rebentamento de uma mina, mas não me lembro da finalidade deste deslocamento. Não me lembro sequer se estávamos picando a estrada ; acredito que não. Não sei se era eu que estava a comandar a coluna (, penso que não!),  pois a presença do médico de batalhão dá-me a entender que o efectivo das NT era mais do que um simples pelotão e que não era eu quem estava a comandar as NT.

No fim do relato deste dia vem mencionado que,  além do Médico , o "Furriel Mil da CCav 1482 Higino F. Silva" também se distinguiu nesta acção ; o que confirma as minhas reservas sobre o relato, como está escrito.

Lembro sim que eu ia na frente ao lado do condutor, o António Figueiredo. Iamos numa GMC, uma viatura pesada. E eu não ia aí por acaso: eu sabia do natural nervosismo dos condutores de viaturas, especialmente em casos assim em que se "confiava” que "aquela estrada” era segura e não havia minas. E quis (, o que tentei fazer sempre durante todo o meu tempo na Guiné), "cutir confiança e descanso” de que não havia motivos para demasiados medos. Não quis nunca que houvesse nos meus homens a percepção de que eu pedia deles o difícil, ficando eu em local ou posição menos perigosa. Isso foi norma que segui desde o primeiro dia até voltar de regresso. E sei que os meus soldados o sentiam assim pois um dia sem querer eu tive disso provas. Como passo a descrever:

Lembro-me de estar em Bambadinca, creio que foi durante o mês que estivemos lá, antes de irmos para Enxalé. Sei que à minha frente apareceu um indivíduo que eu à primeira vista nem sabia quem era , mas logo o reconheci. Era o Jaime, ainda meu primo afastado, que vivia numa aldeia perto do meu casal e tinha sido meu companheiro de escola. Tenho bem vivo o que se seguiu, pois nunca esqueci mais o que me disse nesse dia. Depois de longa conversa (,ele estava no mesmo batalhão que eu, mas numa outra companhi),  ele disse-me que "tinha uma coisa para me dizer” . E era que os meus soldados lhe tinham pedido para ele falar comigo; que "eles gostavam de mim, mas que eu era muito afoito”; e que não devia ser assim pois era muito perigoso para todos”. "Oh senhor Alferes", disse , imagine como o seu paizinho ia ficar se ele sabia disto!”.

Retomando o que me lembro: sei que de repente houve um grande estrondo e eu fui pelos ares. Dei comigo batendo com a cara no chão do lado direito da viatura; a minha G3 a meu lado, de cano enterrado no chão. A mina tinha sido preparada para rebentar na segunda passagem: a roda da frente passou, e a mina rebentou com o impacto da roda de trás. Os que vinham atrás, incluindo o médico do batalhão, foram todos pelos ares ; se tivesse sido uma viatura mais ligeira, o impacto teria causado vários mortos com certeza. 

 Felizmente que tínhamos tido o cuidado de reforçar dentro do possível todas as nossas viaturas pesadas. Havia mesmo uma viatura a que chamávamos "o granadeiro" que foi reforçada com chapas de aço a toda a volta, para a tornar "à prova de bala”; o chão da viatura ficou com duas camadas, de cimento e areia entre as duas camadas. O fim dela era exactamente de ir à frente de colunas para servir de ‘rebenta minas”…neste dia o granadeiro não fazia parte da coluna.

Lembro bem o ter ouvido disparos que me pareceram ser ao longe, como que alguém a dizer que tinha ouvido o estrondo da mina; mas não tenho lembrança de qualquer "emboscada” séria como dá a entender este relatório. Lembro sim de termos tomado posições de seguranca, e embora não lembre o “ tendo-se organizado um grupo de perseguição” acredito que se tenha procedido a buscas nos arredores, para prevenir quaisquer surpresas. 

 Lembro a chegada do helicóptero, que se destinava à evacuação do 1º cabo José Manuel Afonso Ferreira; e sabíamos que o médico Alferes Francisco Pinho da Costa também apresentava dificuldades; não sabíamos porém a sua gravidade, pois ele não deixava de prestar socorros a toda a gente. Só nos disse da sua gravidade quando o helicóptero já estava a chegar e ele disse que também tinha de ser evacuado: depois de violentamente projectado pelo sopro da mina , ao cair no chão tinha partido as pernas…

Copio literalmente o que está escrito no relatório sobre esta “op. GORRO”:

(...) "Dia 20, 21 e 22 Agosto — A CC 1439 realizou a Op Gorro na zona do chão balanta que consistia numa Batida na região de Colicunda. Tendo sondado o espírito da população balanta , parece o mesmo estar saturado da pressão In. manifestando a mesma popoulação desejar colaborar com NT. Não houve contactos com IN.exerceu-se uma acção de captação e simpatia na população balanta. Foi uma operação de grande desgaste físico.>>

Em 21 de Agosto as nossas tropas acionaram um engenho explosivo tendo simultaneamente sofrido uma emboscada na estrada de Porto Gole-Enxalé entre Porto Gole e Ressunhá. Apesar das NT sofrerem o rebentamento deste engenho explosivo,  reagiarm eficazmente à emboscada IN tendo-se organizado um grupo de perseguição e tendo o IN dispersado, urtando-se ao combate.

Do rebentamento do engenho explosivo resultaram danos materiais e físicos:

(i)n Destruição de uma viatura GMC

(ii) Feridos das NT:

  • Alf Mil Médico Francisco Pinho da Costa, do BCAÇ 1888, evacuado
  • 1º cabo 682 1364 José Manuel Afonso Ferreira, evacuado
  • 1º cabo aux. enfer. 647 4664, Alexandrino Pestana F. Leitão
  • 1º cabo 182 6865 Carlos Tibúrcio Nunes
  • 1º cabo 7351565, José Luís Fernandes Martins
  • Soldado condutor 8563364, António de Almeida Figueiredo
  • Sold 22665 António Francisco Caneca de Oliveira
  • Sold 651 7665 Álvaro de Sousa
  • Sold 0483065 José Dionísio Vieira de Castro
  • Sold 09/63 Nagna Chete, da 1ª CCaç
  • Sold da Polícia Administrativa 241/64 , Buli Mané.

Distinguiram-se nesta acção o Alferes Mil. Médico Francisco Pinho da Costa e o Furriel Mil da CCav 1482, Higino F. Silva.
 
Dia 9 de setembro de 1966- O Quartel de Enxalé sofreu um violento ataque IN:

Copio o que consta no “relatório":

(...) "Dia 9 de setembro de 1966 -  O Quartel de Enxalé sofreu um violento ataque IN tendo este feito uso pela primeira vez nesta zona do canhão sem recuo além da Met Pes 12,7 e toda a gama de armas aut. com bazuca e morteiros 82 e 60.

Todo o pessoal reagiu da melhor maneira, opondo ao IN uma resistência tenaz. O ataque durou duas horas e dez minutos. Durante a madrugada organizou-se um grupo de perseguição, tendo sido detectado um grupo IN o qual depois de alvejado abandonou uma Met Pes 12,7 reagindo à força de perseguição com granadas de mão.

RESULTADOS OBTIDOS- O IN sofreu baixas em número não estimado. Foi apreendido o seguinte material:

  • Uma Met Pes. 12,7 Degtyarev m/938/46 (DShK)
  • Um cunhete de transporte c/1 G.E. Mort 82 e embalagem c/9 cgr.Blt.
  • Uma granada de mão of. (RG4)
  • Um carregador c/ cartuchos calibre 9 mm P.M. Beretta

As NT sofreram os seguintes feridos ligeiros:

  • Furiel Mil Eduardo José Ferreira de Oliveira
  • Soldado nº 56/65 Américo Fernandes

Referência elogiosa do Comandante Int. Militar: “Motivo de muito apreço a captura da Metralhadora Pesada 12,7 mm”. (...)

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Nota do autor:

Para não ser acusado de omissão e "desculpas de mau pagador” , devo acrescentar que tenho ouvido várias vezes que eu tive um papel pouco lisonjeiro neste acontecimento:

Com razão ou não, aqui fica o que várias vezes me têm dito : que o ataque, assim dizem, devia estar a ser preparado para ter lugar na manhã do dia seguinte mas que eu de alguma maneira forcei o IN a atacar mais cedo do que tinham intenção de fazer. Que eu fui à tabanca e aí acendi uma lanterna de mão. E o IN, pensando que eu estava os estava a descobrir, no mesmo momento abriu fogo e começou o ataque. Assim dizem !

Não me lembro mas é natural que fosse eu que estava de oficial de serviço nesse dia; se decidi ir à tabanca estava de serviço com certeza. A verdade é que eu não tinha em Enxalé nenhuma “bajuda” especial; mas, talvez para ajudar a passar o tempo, decidi dar uma vista de olhos pela tabanca de Enxalé que ficava mesmo pegada ao quartel, separada deste apenas uns 50 a 100 metros com uma rede de arame farpado a meio. Não me lembro dos pormenores senão do tiroteio que começou quando eu estava junto do arame farpado; e eu nem a minha G3 tinha trazido comigo. Lembro, sim, do inferno de ataque que de repente explodiu. E lembro de me ter atirado ao chão onde permaneci de cara e barriga contra o chão por muito tempo sem me mexer; e depois, não sei quando nem porquê, decidi que podia voltar-me: e de costas colado no chão eu via as balas tracejantes passando por cima. Eu ouvia bem o inferno do ataque e a nossa resposta; não sei quanto tempo passei nessa posição. Lembro que depois de muito esperar ( meia hora, duas horas? não faço a mínima ideia…) o fogo parou e eu fui a rastejar ( como eu tinha bem aprendido e praticado em Mafra…) e cheguei ao quartel. 

 Os meus cotovelos e os meus joelhos eram uma chaga… e lembro no dia seguinte o Zagalo todo empolgado a organizar um grupo para ir atrás do IN antes que este tivesse tempo de regressar aos lugares/bases de onde tinham vindo. Não me lembro desta mencionada metralhadora pesada, mas lembro ouvir que tinham visto muitos rastos de sangue, mas que não havia nenhum morto ou ferido, que o IN tinha tido muito tempo durante a noite de os levar com eles.    

____________

Notas do editor:


(...) Características desta arma:

Origem: URSS
Calibre: 12,7 mm
Data de fabrico inicial: 1938
Comprimento: 1,625 m
Velocidade Inicial à Boca do Cano: 860 m/s
Alcance Prático em Tiro Terrestre:  2000 m
Alcance Prátio em Tito Anti-Aéreo: 1000 m
Peso: 35,5 Kg
Alimentação: Fitas de 250
Cadência de Tiro: 540 a 600 tpm
Munição: 12,7 x 108 mm
Funcionamento: Arma automática, a funcionar por gases.



4 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Camaradas, quantas toneladas de material foram apreendidas ao PAIGC durante a guerra ? Alguém já fez as contas ? E que significado podiam ter essas apreensões ? Para as NT eram "roncos",e até eram convertíveis em "patacão", com destaque para as minas A/C e A/P...

Se os "roncos" fossem a verdadeira medida do sucesso político-militar, a guerra estaria sido ganha logo nos primeiros anos... Mas não, a contabilidade da guerra, de todas as guerras, é infinitamente mais complexa...LG

Valdemar Silva disse...

Mais um testemunho de quem viveu com a guerra, com uma descrição de quase estarmos, também, dentro toda aquela acção de combate.
Foi assim a guerra na Guiné, e passados mais de 50 anos ainda nos lembramos perfeitamente de todos aqueles acontecimentos.
Os jovens e até os mais velhos que já não foram mobilizados, e ainda bem, não conseguem fazer uma pequena ideia do que foi a guerra na Guiné. Leiam este testemunho do nosso camarada ex-Alf. Mil João Crisóstomo e imaginem estar a ver um filme da guerra do Vietname, que da nossa não temos ou os que temos não dão a imagem verdadeira.

Aproveito este comentário para cumprimentar o meu caro amigo João Crisóstomo, que muito me sensibiliza com os seus telefones directos de Nova Iorque a saber do meu estado de saúde e falar um pouco comigo por saber que vivo sozinho.
Da última vez que me telefonou (6ª.feira 13) foi de manhã e como tinha o Concentrador do oxigénio ligado e a máscara de ventiloterapia colocada não ouvi e só depois me apercebi do telefonema.
O João Crisóstomo é uma pessoa extraordinária sempre preocupado com o bem estar doutras pessoas e de causas das mais diversas situações. Desde as Gravuras do Côa, aos problemas da Independência de Timor, visitas ao Papa e sobre a questão do importante feito de Aristides Sousa Mendes, o João Crisóstomo vai a todas, incluindo fazer parte da organização das tertúlias "Encontros do Bacalhau" que se realizam por Portugueses em todos os Continentes.
Obrigado meu caro João Crisóstomo.
Abraço e boa saúde
Valdemar Queiroz

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Valdemar, sobre o que escreves
relativamente ao nosso comum amigo e camarada João Crisótomo é justo e verdadeiro. Foi ele que me pediu o neu número de telemóvel. Tal como o Renato Monteiro que me deu o teu... Somos mais do que um simples blogue...

Tabanca Grande Luís Graça disse...

João, olha que uma Degtyarev dava nas vistas, pesada ou ligeira, dava nas vistas... Nunca apanhei nenhuma, só lhe vi as cápsulas das munições 12.7 e sobretudo os estragos nas pobres tabancas fulas... Abraço matinalterado. Luís