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domingo, 17 de janeiro de 2021

Guiné 61/74 - P21775: Fotos à procura de... uma legenda (137): Pistas de leitura para uma festa do fanado mandinga, em 1973, em Bigene, região do Cacheu (Texto: Cherno Baldé; fotos: António Marreiros)



Foto nº 1


Foto nº 3


Foto nº 4

Guiné > Região de Cacheu > Bigene > CCAÇ 3 (1973/74) > A festa do fanado... mandinga


Fotos (e legendas): © António Marreiros (2021). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1.  Mais um precioso comentário do nosso amigo e colaborador permanente Cherno Baldé, desta vez às fostos do António Marreiros, inseridas no poste P21760 (*) .

Voltamos a reproduzir, embora em formato mais reduzido, as belas imagens captadas pelo nosso camarada António Marreiros em Bigene, em 1973. O Marreiros, um algarvio que vive há muito no Canadá, foi alf mil, CCAÇ 3544, Buruntuma, 1972, e CCAÇ 3, Bigene, 1973/74.





António Marreiros

Legendas para as fotos de uma festa do fanado,
em Bigene, em 1973




Cherno Baldé
 

Caro amigo Antó
nio,

Devem ser fotos tiradas em Bigene a julgar pelo ambiente, população e a manifestaçao cultural em presença.

As fotos nºs, 1, 3 e 4 são do mesmo dia e da mesma festa de animação de um fanado mandinga de rapazes que já devem estar no mato h+a cerca de uma semana.

Os guardiões do fanado, lambés, voltam à aldeia com um ou dois kankurans ou cancurans (o tal ser mascarado com um tecido vegetal) que não é suposto ser conhecido e cuja origem e destino são desconhecidos tal como a origem do bem e do mal que ele vem exorcizar e extirpar a fim de proteger os jovens fanados (iniciados) que, supostamente, no preciso momento se encontram num estado de vulnerabilidade face às forças ocultas.

A festa é da comunidade, incluindo homens e mulheres, mas a animação é sobretudo dos mais novos entre jovens e raparigas, familiares dos iniciados ou fanados, que cantam e dançam dando conhecimento a todos que a vida e a saúde das crianças que se encontram na barraca do fanado estão bem protegidas pelo espirito do kankuran.

De casa em casa vão recolhendo alguns donativos em produtos alimentares que servirão para o sustento da barraca durante alguns dias e assim por diante.

A duração média de um fanado (periodo iniciático) é variavel entre 1 a 3 meses. Há casos extremos, verificados entre certos grupos (Balantas e Nalus) que podem durar até 6 meses.

A festa do fanado é um ritual de iniciação que já existia antes da chegada das grandes religiões dos livros ou abraâmicas e continuam a ser feitas já com alguma influência destas com a eliminação dos aspectos mais feticistas das religiões tradicionais africanas.




Foto nº 2 > O António Marreiros no meio dos blufos, balantas


A foto nº 2 não deve estar relacionada com as outras, pois que se trata de jovens blufos, balantas em migração. Nesta fase das suas vidas são capazes de tudo, porque consideram-se livres das restrições da sociedade e é também a fase da moldagem do seu espírito e capacidades de guerra e de resiliência que os prepara para a vida futura onde a astácia, a camuflagem e a coragem sero os elementos mais apreciados e valorizados.

Durante a minha infância, e tão idiota que era, participei em três fanados diferentes no mesmo ano (1969).

Primeiro levaram-me para o fanado dos fulas, tipico dos Fulas-forros a que pertencia que durou mais ou menos um mês.

Duas semanas após a minha saida, eis que os jovens Fulas-pretos, por sua vez, deviam ser submetidos ao mesmo ritual, mas como diziam que o nosso era tão leve que mais parecia fanado de mulheres, lá fui outra vez para ver com os meus próprios olhos em que é que era, de facto, diferente. Desta vez não fui submetido ao corte físico [do prepúcio] como da primeira vez e, no fim, depois de dois meses, constatei que não era muito diferente daquilo que ja conhecia do meu primeiro fanado.

Passado um més após a saida deste último, era a vez de os mandingas celebrarem o seu fanado e, eis senão que o menino Cherno, sempre insatisfeito e curioso, queria ver com os próprios olhos como era o tão propalado fanado mandinga.

Apos três meses de vai e vem entre a barraca no mato e a aldeia para transporte de comida e água para os fanados-novos, incluindo os preparativos e as festas semanais dos kankurans na aldeia, finalmente fechamos a barraca, voltamos a aldeia num ambiente de grande frenesim festivo.

Mas, a constatação final era que tudo não passava de pura propaganda para a valorização de grupo e a única diferença a considerar, de facto, era a animação dos kankurans e o incomparável talento e capacidade de alardear e fazer propaganda e folcore sócio-cultural, típico dos (artistas) mandingas.

Factos e evidências que justificam o nascimento e sobrevivência do provérbio guineense que diz, em crioulo:"Duno di boca mas duno de mala".

Em tradução livre: Mais vale ter uma boca refinada do que uma mala cheia de dinheiro", ou seja, a aparência (a propaganda) quando bem utilizada, vale mais do que a riqueza (conhecimento, trabalho, o saber fazer). [O provérbio popular português diz o contrário: "Antes sê-lo  que parecê-lo", LG. ]

Este conceito, também, é universal, acho eu e hoje mais que nunca. (**)

Com um abraço amigo,

Cherno Baldé

sábado, 9 de fevereiro de 2013

Guiné 63/74 - P11078: (Ex)citações (210): Fanado, circuncisão, excisão: diferenças interétnicas (Pepito)



Guiné-Bissau > Região de Tombali > Catesse > 2010 > Bajuda, a frequentar a 6ª classe da escola local. Legenda: " O ano de todas as esperanças. Djari Queita é a jovem rapariga do Grupo Teatral de Catesse, em plena floresta de Cantanhez, que se distingue pela animação e dinamização das actividades culturais de rapazes e raparigas, em especial de teatro, dança e música tradicional. Está a estudar na escola local, tendo transitado para a 6ª classe, nível muito elevado para uma jovem daquela zona rural, que tem como principal profissão a produção de óleo de palma Anda muito contente e diz que este ano, é o ano de todas as esperanças".Foto tirada em 1 de dezembro de 2010, usando uma Canon Difgital IXUS 85 IS. Foto da Galeria da AD - Acção para o Desenvolvimento. Reproduzida com a devida autorização...

Foto (e legenda): © AD - Acção para o Desenvolvimento (2013). Todos os direitos reservados.




Pepito, ao canto superior direito... Reprodução parcial de imagem constante do artigo do magazine da TAP, Up, disponível no sítio da AD - Acção para o Desenvolvimento. (Com a devida vénia...).

  1. A propósito do poste P11075, e da foto do fanado em Darsalame, da galeria da AD - Acção para o Desenvolvimento, segue-se um comentário do nosso amigo Pepito (que ontem encontrei no Colombo, com o seu filho Ivan, e um casal amigo, quando íamos, eu e o João, para a nossa sessão de ginásio... Como veem, meus amigos e camaradas, o Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande!... O Pepito está cá porque a senhora sua mãe, decana do nosso blogue, a dra. Clara Schwarz, vai fazer 98 (!) anos no dia 14 deste mês):

Caro Luís

Para as pessoas menos atentas à cultura africana, há o hábito de confundir fanado com circuncisão, o que não é correto.

Nos balantas o fanado é uma cerimónia de passagem de idade, em que o jovem se torna adulto e já pode usar o barrete vermelho (entre outras coisas). Durante a cerimónia, há de facto o fanado, isto é, o corte do prepúcio [, dobra de pele que reveste a glande do pénis,] , tal e qual o fazem os judeus. E ninguém quer eliminar estas cerimónias. O que se quer é conferir maior higiene e evitar a transmissão do HIV/SIDA através da "faca".

É nas etnias muçulmanas, sobretudo, que se dá o fanado das mulheres, isto é a excisão. Essas sim, aplicam o corte do clitóris e são atentórias da dignidade feminina. Pessoalmente acredito que, um dia, esta prática deixará de existir. Até porque cada vez se encontram mais jovens que se recusam ir ao fanado. Vai ser uma luta entre gerações e é lá que ela vai ser decidida. 

Comparando, e uma comparação tem sempre limites, é o que se passa na Europa com a violência física dos homens sobre as mulheres. É uma questão cultural e só a esse nível é que poderá ser combatida definitivamente.

Por isso mesmo deve-se notar que a foto da AD [, à direita,] se refere ao fanado dos homens balantas. 
abraço
pepito

____________

Nota do editor:

Último poste da série > 8 de fevereiro de 2013 > Guiné 63/74 - P11075: (Ex)citações (209): O fanado, visto porcolons e colonizados...(António Rosinha / Cherno Baldé)

terça-feira, 29 de junho de 2010

Guiné 63/74 - P6654: José Corceiro na CCAÇ 5 (13): Ritual do Fanado no Aquartelamento de Canjadude

1. Mensagem de José Corceiro (ex-1.º Cabo TRMS, CCaç 5 - Gatos Pretos , Canjadude, 1969/71), com data de 18 de Junho de 2010:

Caros amigos, Luís Graça, Carlos Vinhal, J. Magalhães.
Como me tinha comprometido, no P6320**, trago mais uma vez ao Blogue o tema do Fanado em Canjude, Guiné.
Deixo ao vosso critério a publicação, ou não, assim como a inclusão das fotos onde acharem apropriado.

Um Abraço
José Corceiro


José Corceiro na CCAÇ 5 (13)

RITUAL DO FANADO NO AQUARTELAMENTO DE CANJADUDE

Desde criança, com seis ou sete anos, tanto quanto me lembro, que nutro particular interesse por matérias relacionadas com os seres Vivos (a Vida) e a sua interacção com o meio circundante. A curiosidade, o gosto, a vontade de mais saber, foi evoluindo para temas mais específicos, na área da Biologia (Citologia, Histologia, Fisiologia, Anatomia, Genética, Bioquímica, etc. etc.).

Sempre admirei e fico estupefacto, ao confrontar-me com o alto nível de organização social das formigas, e outros insectos, ou seja, a Eusocialidade. Lembro-me dos tempos de criança, as traquinices que eu fazia ao descontinuar os corredouros da passagem das formigas, limpando nos trilhos os seus vestígios de marcação, suspendendo assim a sua azáfama laboriosa, ver as suas resistências até se organizarem novamente e partirem à luta do quotidiano, não sabendo eu, na altura, nada sobre ácido fórmico (metanoico) ou sobre o poder das feromonas. Verificava, inicialmente, a reacção de indecisão e pânico gerado no grupo dos insectos, por lhe faltarem os rastos guias, marcados com feromonas, no seu carreirinho que os orientava rumo ao alvo alimentício, até que se ordenavam e disciplinavam, para logo de seguida prosseguirem, com a sua estafa, em piso adjacente ao descaracterizado, com destino ao objectivo, nos dois sentidos, sem desfalecimento, cansaço, ou desmotivação, mas, antes sim, com expediente, determinação e afoiteza, pugnando pela sobrevivência do formigueiro.

Recordo também a minha perplexidade e admiração, devido à majestosa estrutura social e energia dinâmica das abelhas, na sua labuta infatigável para governar e perpetuar a vida. Intrigava-me a rapidez com que chegavam à descoberta do mel, por mais camuflado que estivesse, elas apareciam num ápice e iam direitinhas ao mel, que eu colocava em caixinhas da pomada dos sapatos, já vazias, em sítios escondidos e de difícil acesso, a dois ou três quilómetros de distância do local onde estavam as colmeias, o apiário, que era do meu avô, um pequeno industrial de mel e seus afins (aguardente, a cera…), que tinha umas centenas de cortiços com enxames de abelhas.

Mais deslumbrado ficava eu quando o meu avô crestava as colmeias, geralmente duas vezes por ano, cujo mel era em cada época de diferente densidade, viscosidade e cor, consoante a captação do néctar, pelas abelhas, era mais ou menos plurifloral. Também era em função do peso que a colmeia tinha e conforme a variação das Estações do Ano, assim como a mudança do local dos cortiços para regiões de mais ou menos floração, que se aferia se devia haver segunda cresta, estes factores tinham muita influência no armazenamento do mel na colmeia.

Logo que o meu avô despregava e levantava o tampo superior do cortiço, ao tirar as “sovinas” (“viros”, pregos de madeira feitos dos caules das “xaras” estevas) e me deixava ver o interior da colmeia, com capelo enfiado na cabeça e depois de utilizar a mecha para afugentar as obreiras, podia observar os seus labirintos de acessos e movimentações, habilmente arquitectados pelos laboriosos animaizinhos, que os dimensionavam com um alinhamento e aprumo constantes, cujos edifícios nada mais eram do que os favos de mel, devidamente organizados e distribuídos pelas trancas cruzadas do cortiço que os suportavam. Ficava intrigado e maravilhado, como é que um insecto tão pequenino a laborar no escuro, conseguia ordenar com tamanha perícia, precisão e beleza, tão preciosas obras de arte, concluídas com todo o rigor matemático, quer na uniformidade de enfileiramento dos acessos, quer na perfeição da arrumação dos favos. Nos favos, os seus alvéolos todos geométricos e homólogos, obedecendo ao rigor das leis trigonométricas, cheios de mel e tamponados com tamanha mestria, tornavam-se tentação para os saborear, despertado no homem o desejo de saquear as colmeias constantemente.

Nos dias de cresta, eu não faltava a esse acontecimento, aguardado com ansiedade e euforia e, logo pela manhã, todo prazenteiro, deslocava-me para o local da faina, onde com curiosidade ficava atento ao desenrolar de todas as tarefas dos crestadores com a crestadeira em punho, para fazer a cresta. Eu, logo que presumisse ser oportuno, seleccionava um favo que me parecia ser o mais perfeitinho, ainda que todos iguais, para me deliciar e besuntar.


Foto 1 - Livro que o meu avô me deu quando eu tinha 9 ou 10 anos.

Ainda hoje guardo um livro que o meu avô me deu, sobre Apicultura, escrito em Espanhol, porque na época não havia nada escrito em Português sobre o tema, andava eu na escola primária.

Tem sido esta curiosidade intrínseca na minha génese, que me tem acompanhado pela vida fora e, foi talvez, por condão a ela, que me ia metendo em palpos de aranha, quando da minha falta de prudência ultrapassei o limite do razoável e quis tirar fotos na mata ao Altar de Rituais do Fanado, onde as meninas de Canjadude iam a ser mutiladas, (Fanado) como relatei no Poste 6320.

Foto 2 - No terreiro sagrado da Tabanca, com o Povo reunido, creio que vedado ao sexo feminino, dá-se inicio aos rituais festivos. Vê-se à frente o Sr. Capitão Costeira, no centro da foto.

Foto 3 - Animal sacrificado, cabrita, que faz parte do ritual e cujas vísceras, e outras partes do corpo, são colocadas numa taloca de árvore sagrada, como oferenda ao Deus Alá.

No comentário que fiz no Poste 6320, prometi que traria o tema do Fanado novamente ao Blogue, isto porque no espaço de um ano houve uma mudança muito acentuada na mente e no procedimento, dos Homens Grandes da Tabanca de Canjadude, para encarar as tradições e dar outra permissividade a toda a problemática que envolve o cerimonial do Fanado. Deu-se uma abertura, salto de gigante, impensável, porque pela primeira vez em Canjadude foi facultado (convidados) aos militares metropolitanos, que se envolvessem um pouco, nos rituais festivos da Tabanca, quer assistindo fisicamente, quer nas tarefas de organização dos meios de suporte, de forma a poder criar condições e disponibilizar estruturas com mais potencialidades de salubridade, para que a execução do Fanado fosse operado em local menos inclemente, com utensílios e meios mais higienistas (anti-sepsia), de forma a minimizar os efeitos funestos das infecções e seus colaterais.

Foto 4- Reunião dos Homens Grandes das etnias representadas, Anciães, a planear o desenrolar do ritual, vendo-se no meio, o Sr. Capitão Costeira.

Foto 5 - Momento solene de passagem de penhor.

Esta abertura de comportamento da parte dos civis de Canjadude, deve-se em parte ao empenho e envolvimento do Sr. Coronel Arnaldo Silveira Costeira, que na época como Capitão, foi um dos quatro Comandantes na CCAÇ 5, que eu conheci. Foi a diligência e a visão para por em prática, toda uma política de reconciliação e entrosamento à comunidade civil, levada a cabo pelo Sr. Capitão Costeira, homem com sensibilidade, sensatez, sentido de responsabilidade e dever, que estimulou toda uma conduta de avizinhamento, favorável para os militares e civis. Soube interpretar e aproveitar, no bom sentido, as deliberações das linhas orientadoras da política que aspirava implementar na Guiné, o Comandante-Chefe, Sr. General António Spínola, (vulgarmente chamada “psico”) tão propalada na altura em que o lema era “por uma Guiné Melhor”. A partir daqui, creio eu, que as portas do Aquartelamento Militar de Canjadude, ficaram mais permeáveis e acolhedoras às celebrações das solenidades civis, dando assim um contributo e prova de compromisso para uma aproximação sadia entre civis e militares, assim como ficou implícito uma confluência de sinergias propícias à melhoria da qualidade de vida da população civil, contribuindo de alguma maneira para um ajuste de vontades. Houve uma mudança perceptível para melhor, com mais confiança, acolhimento e doação, na coabitação dos civis com os militares, desde que eu cheguei a Canjadude, até sair de lá, algo melhorou.

Foto 6 - Deões juntos com a criançada e com os animadores de festividades, cujo trio se vê em último plano, de pé, tendo um polo verde.

Foto 7 - Início da preparação das meninas de Canjadude que iam ser Fanadas, com os familiares.

Em rituais de Fanado, as crianças ficaram um pouco mais protegidas, ao ser feito no Aquartelamento, onde se criaram algumas condições de salubridade e assepsia, não tantas quantas o acto exigia, mas já foi positivo. É digno de destaque o precioso contributo do envolvimento do pessoal de enfermagem que estava a postos para socorrer alguma urgência, ou se algo descambasse para além do propósito. Neste âmbito, pode dizer-se que já foi uma pequena vitória.

Para mim, é muito complicado compreender a circuncisão nos dois sexos como imposição religiosa, ou a base que sustenta a sua execução. É lógico, que no homem, quando necessária, por uma questão de sanidade, ou disfuncionalidade, (fimose, com anel prepucial muito apertado, podendo provocar estrangulamento) deve ser praticada em condições higiénicas.

A abominação, pela circuncisão masculina, dobrou ao ver dois miudinhos na “enfermaria” de Canjadude, a fazer curativo ao pénis, com a glande e área do sulco coronal, tudo infeccionado devido a uma má prática da circuncisão e, à dilação de tempo que mediou até os familiares decidirem, com tibieza, que as crianças precisavam de ser observadas e tratadas. Uma das crianças aparentava já não ter glande peniana, confundia-se glande com coroa peniana. Por aquilo que vi, fiquei sem saber se foi no acto da circuncisão, em que um auxiliar distende o prepúcio com uma das mãos, num sentido, retraindo a glande com a outra mão, no sentido oposto, com o pénis apoiado num cepo (base de encosto) para decepar o prepúcio com objecto cortante. Não sei se terá sido ao executar a acção de eliminar o prepúcio, que terá falhado a orientação do cutelo rumo à direcção do objectivo e, mutilaram acidentalmente parte da glande, ou se foi devido à evolução da infecção, que já estava em estado avançado, pois mais parecia que ia tudo gangrenar, porque os familiares só recorreram à enfermaria em último caso e com desconfiança. O que esta criança padecia/ceu, pois até urinar se tornava suplício …

Foto 8 - Preparação dum bebé para ser Fanado.

Foto 9 - Meninas de Canjadude a serem preparadas (perliminares) para o Fanado.
Ora, se eu era um inconformado e execrava a circuncisão masculina da maneira e razão pela qual era feita, muito mais me repugnava o acto da excisão do clitóris e dos pequenos lábios vaginais, nas meninas, ou seja a Mutilação Genital Feminina. Acção horrenda, impossibilitando e negando à mulher o direito ao prazer sexual, além de todos os inconvenientes para a saúde mental e física, assim como ficam sequelas, durante a vida, geradoras de graves problemas nefastos para a função da maternidade. Ainda que na mulher, a região púbica seja pouco ramificada por terminações nervosas, mutilar sem anestesia e anti-sépcia, e sabe-se lá com que tipo de objecto cortante, deve ser horripilante para a criança o feito que a fanateca executa ao fanar os órgãos do corpo da infeliz fanada. (nos partos quando a dilatação não é suficiente e há perigo de rasgar a abertura vaginal, o mais provável é que o médico, para controlar e orientar o rasgo, se antecipe e dê um corte a frio, (episiotomia) na zona do períneo e, é depois provável, que a sutura do corte até seja feita sem anestesia, atendendo à particularidade de insensibilidade da região púbica da mulher).

A MGF é uma prática execrável, e é lamentável que os Portugueses, nos séculos que estiveram à frente dos destinos da Guiné, nunca tivessem tido a preocupação, para ir minimizando a barbárie, que é, a prática da execução da Mutilação Genital Feminina.

Foto 10 - Rapazes de Canjadude calçados a caminhar na Tabanca rumo ao Aquartelamento para serem Fanados.

Foto 11 - O Sr. Capitão Costeira, como anfitrião, a receber e a cumprimentar à entrada da porta do Aquartelamento, os rapazes que se dirigiam para o local onde iam ser Fanados, a quem desejava felicidades.

Pelos relatos e descrição que me foram feitos por nativos de Canjadude, a forma como era efectuada a MGF, era dum barbarismo primário, consumando-se o fanado da pobre criança, na presença das outras meninas do grupo, insurgindo-se estas, negativamente e repudiando a que estava a ser fanada, caso esta chorasse ou tivesse lamentações. No cerimonial as meninas caminhavam descalças.

Nos preparativos que antecediam o acto da circuncisão dos rapazes, posicionavam-se em alinhamento, sendo incentivados por um adulto, a entoar cânticos guerreiros para exorcizar os espíritos malévolos e maus-olhados, assim como serviam, o extasiar dos cânticos, para expulsar o medo e incutir coragem e orgulho aos efebos.

Foto 12 - Rapazes no local onde estavam a ser Fanados, dentro do Aquartelamento, lado direito quando se saía para Nova Lamego, entre as rochas e o abrigo das praças, a entoar hinos guerreiros dirigidos por um adulto. Podem ver-se os biombos e estruturas, instalados pelos Militares. Aqui, os rapazes já estão descalços, em sinal de pureza e humildade para terem contacto com a terra.
Pelo que sei do fanado dos rapazes, estes não assistiam visualmente à circuncisão do companheiro, cada um avançava por sua vez para o local onde era executado o acto, ouvindo-se de seguida gritos lancinantes deste, quando lhe eliminavam o prepúcio. Logo de seguida, ele já fanado, saía do local aos saltos, a rir e a dizer que já era homem. No cerimonial os rapazes caminhavam calçados.

Em Canjadude estavam representadas quase todas as etnias do povo da Guiné, pelos militares da CCAÇ 5, e suas famílias. Cada etnia realizava o fanado nos seus membros em idades distintas. Havia etnias que o executavam logo em bebés e outras só o faziam já em adultos.

Foi insensibilidade dos nossos governantes, ao longo de anos e anos, ignorarem esta prática aberrante, sobre tudo no sexo feminino, sem que nada tenha sido feito para a debelar, quer em termos de educação, sensibilização, ou sanidade, faltou coragem e arrojo, para enfrentar o problema, embora o fármaco fosse difícil de administrar, mas era preciso curar esta tradição anormal e desviante no ser humano, mas nada foi feito, mesmo agora, parecem andar adormecidos os defensores da libertação da mulher! Foi pena…

Um abraço para todos e boa saúde.
José Corceiro

P.S.
Lanço um repto a algum camarada que tenha sido efectivamente Fanado e que com conhecimento de causa, nos possa tecer algum comentário, esclarecedor, sobre o significado das diversas etapas do ritual porque passam, até ser Fanado, referenciando as próprias fotos.
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 24 de Junho de 2010 > Guiné 63/74 - P6641: Os Nossos Seres, Saberes e Lazeres (22): José Corceiro, um bom filho, um melhor pai, um avô babado

(**) Vd. poste de 5 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6320: José Corceiro na CCAÇ 5 (10): Dia de Fanado em Canjadude

Vd. último poste da série de 3 de Junho de 2010 > Guiné 63/74 - P6527: José Corceiro na CCAÇ 5 (12): Canjadude visitada por dois ilustres Generais

sexta-feira, 30 de novembro de 2007

Guiné 63/74 - P2316: E as Nossas Palmas Vão Para... (2): Os que lutam, na Guiné-Bissau, contra a Mutilação Genital Feminina (MGF)

Guiné > Zona Leste > Cidade de Bafatá > Finais de 1969 > Vista aérea da mesquita de Bafatá. A Zona Leste da Guiné (região de Bafatá e Gabu) é aquela onde se pratica mais a Mutilação Genital Feminina (MGF)... As populações islamizadas representam quase metade dos guineenses.


Arquivo pessoal de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71).

Foto: © Humberto Reis (2006). Direitos reservados


1. Mensagem, de 20 de Novembro, que nos chegou de Matosinhos, enviada pelo A. Marques Lopes, um tertuliano sempre atento ao que se passa na nossa Guiné-Bissau... Aproveitamos para daqui saudar aqueles e aquelas que na Guiné-Bissau lutam contra a MGF que é uma prática indefensável, mesmo à luz do relativismo cultural... (LG).


(i) Assunto: Presidente do parlamento da Guiné-Bissau quer aprovação de legislação contra a Mutilação Genital Feminina (MGF) (1)


Bissau, 19/11

O presidente da Assembleia Nacional da Guiné-Bissau, Francisco Benante, disse hoje que quer ver aprovada pelos deputados a legislação que combate a MGF, prática que tem vindo a aumentar no país.

"É uma prática retrógrada que é preciso banir da nossa sociedade, por ser
atentatória à dignidade das nossas crianças e raparigas" - declarou Francisco
Benante, na abertura da primeira sessão parlamentar do ano legislativo de
2007/08.

Para a segunda figura do Estado Guineense, a MGF "é uma prática que não tem nada com os imperativos religiosos". Francisco Benante prometeu provocar o debate sobre a questão na sessão parlamentar do próximo mês de Fevereiro.

A prática da MGF na Guiné-Bissau tem vindo a aumentar, segundo um estudo realizado por uma organização não-governamental (ONG), a Plan, que é guineense. Esse estudo abrangeu várias tabancas do país e as conclusões referem que as motivações e as razões que têm levado ao aumento da prática da MGF teriam a ver com uma falsa interpretação do Islão... Para alguns dignatários religiosos, a MGF seria um "passo necessário para [a rapariga] se tornar muçulmano".

"As raparigas muçulmanas têm ser mutiladas antes dos seis anos de idade, caso contrário não podem praticar a religião e a família será responsável pelo pecado", refere o estudo da Plan. A verdade é que a MGF não está mencionada no Corão, e não é portanto uma obrigação religiosa para os crentes.

Ainda segundo o estudo supracitado, a MGF não só está a aumentar como é praticada em crianças com cada vez menos idade...

O Unicef estima que 2.000 jovens são fanadas, anualmente, no país, e que entre 250 a 500 mil mulheres sofrem as consequências médicas e psicológicas da MGF. De entre os problemas que preocupam as autoridades e os profissionais de saúde, umd eles é o risco da transmissão do vírus do HIV/Sida, quando as fanatecas usam a mesma faca em várias cerimónias do fanado... Por outro lado, as lesões provocadas nos órgãos genitais da mulher facilitam a transmissão do vírus do HIV/Sida no futuro.

O governo quer criminalizar a prática da MGF, ressuscitando um projeto de lei que proíbia o fanado com multas e pena de prisão, elaborado, em 2001, pelo Instituto da Mulher e da Criança (IMC), de parceria com organizações de direitos humanos.

"Sem querer ofender a religião ou a cultura de uma ou outra etnia, temos de envolver todos os atores sociais e políticos" disse recentemente Adelina Na Tamba, ministra da Solidariedade Social, Família e Luta contra a Pobreza.

(ii) O fanado alternativo

Na Guiné-Bissau, as férias escolares - que vão de Julho a Setembro - são a época alta das fanatecas, as mulheres grandes que vivem e dependem do fanado. É nesse período do ano que as famílias guineenses enviam as filhas para ser iniciadas pelas fanatecas.

A organização não-governamental Sinim Mira Nassiquê (em língua mandinga, Nós Pensamos no Futuro) , convocou na primeira semana de Agosto de 2007, na capital, Bissau, um encontro com fanatecas e activistas para reflexão sobre os perigos do fanado sobre a saúde feminina, incluindo o risco de contrair o HIV/Sida.

Entre 2000 e 2004, a Sinim Mira Nassiquê notabilizou-se por ter tentado ensaiar, no país, a experiência do fanado alternativo, em que as raparigas eram levadas para o mato para conhecer a tradição e ser submetidas aos ritos de iniciação ou de passagem (da infância para a puberdade), sendo todavia poupadas à cruel e perigosa MGF. O fanado alternativo não se cosneguiu impor, face às pressões corporativas das fanatecas, ao lóbi religioso islâmico e ao peso dos líderes tradicionais

A MGF é praticada especialmente na Zona Leste, nas regiões de Gabu e Bafatá, por algumas das três dezenas de etnias da Guiné-Bissau, e nomadamente por todas as etnias islamizadas (fulas, mandingas, beafadas, saracolés, cassangas e mansoncas), que representa cerca de 46% da população. Entre os fulas, que representam 23 por cento da população, o procedimento consiste na excisão do clítoris e dos lábios da vagina. Os beafadas e os mandingas limitam-se à excisão clitoriana. Entre os bijagós, que são animistas, faz-se uma iniciação ritual, com tatuagens, mas sem MGF.

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Fonte: Adapt. por L.G., de:

Angola Press - 19 de Novembro de 2007

Agência de Notícias da Aids - 19 de Novembro de 2007

PlusNews - Notícias e análises sobre HIV-SIDA em África Bissau, 10 de Agosto de 2007 > GUINÉ-BISSAU: Alunas em férias, fanatecas ao trabalho

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Nota de L.G.:

(1) Vd. posts de:

25 de Setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2131: Mutilação Genital Feminina: É crime, diz explicitamente o novo Código Penal (A. Marques Lopes / Luís Graça)

10 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1580: Fanado ou Mutilação Genital Feminina: Mulher e direitos humanos: ontem e hoje (Luís Graça / Jorge Cabral)

15 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLVI: Conferência sobre a Mutilação Genital Feminina (Luís Graça)

14 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLVII: A festa do fanado ou a cruel Mutilação Genital Feminina (Jorge Cabral)

3 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXCVII: Memórias de Guileje (1967/68) (Zé Neto)(5): ecumenismo e festa do fanado

4 de Maio de 2005 > Guiné 69/71 - XII: O silêncio dos tugas face à MGF (Mutilação Genital Feminina)

domingo, 14 de janeiro de 2018

Guiné 61/74 - P18213: Álbum fotográfico de Luís Mourato Oliveira, ex-alf mil, CCAÇ 4740 (Cufar, dez 72 / jul 73) e Pel Caç Nat 52 (Mato Cão e Missirá, jul 73 /ago 74) (24): ronco balanta em Cufar, a festa de circuncisão ('fanado') dos rapazes ('blufos')



Foto nº 1


Foto nº 2


Foto nº 3 


Foto nº 4


Foto nº 6


Foto nº 7


Foto nº 9



Foto nº 8


Foto nº 10


Foto nº 5

Foto nº 12


Guiné > Região de Tombali >  Cufar > CCAÇ 4740 (1972/74) >  1973 > Ronco balanta, a festa da circuncisão ('fanado') dos rapazes ('blufos')



Fotos (e legendas): © Luís Mourato Oliveira (2017). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].



1. Mais fotos do álbum do Luís Mourato Oliveira, nosso grã-tabanqueiro, que foi alf mil inf, de rendição individual, na açoriana CCAÇ 4740 (Cufar, 1.º semestre 1973) e, no resto da comissão, comandante do Pel Caç Nat 52 (Mato Cão e Missirá, 1973/74). (*)

Afinal, o Oliveira ainda esteve umas largas semanas em Cufar com o António Graça de Abreu, do CAOP1 (,  pelo menos desde junho até agosto de 1973), antes de ir, no 2º semestre, para o setor L1 (Bambadinca), comandar o Pel Caç Nat 52 e fechar a guerra...

Durante a sua comissão foi sempre uma apaixonado pela fotografia. A sequência que hoje publicamos, a preto e branco, é notável, retratando um acontecimento que poucos de nós puderam apanhar... Ele chamou-lhe simplesmente "ronco"... Mas trata-se (, e eu confirmei isso com ele ao telefone) da festa da circuncisão ('fanado') dos rapazes ('blufos'), que se passava em três ou quatro momentos e espaços: tabanca (preparativos, anúncio, batuque), bolanha, tabanca,  floresta (cerimónia da circuncisão p.d. e transmissão de saberes) e, mais tarde, o regresso de novo à  tabanca (**)... É pena não podermos legendar com detalhe cada uma das fotos... Este 'fanado' (masculino) era (e continua a ser) um aspeto central da cultura balanta. O médico que estava então em Cufar, um alferes miliciano (Faria, se não erro) tentou que a pequena ciriurgia (ablação dp prepúcio) se realizasse em condições de higiene, segurança e assepsia. Em vão...

2. Veja-se o que diz o dicionário sobre o vocábulo "blufo":

blufo | s. m.
blu·fo
(balanta blufo)
substantivo masculino

1. [Guiné-Bissau] Rapaz não circuncidado.

2. [Guiné-Bissau] Jovem inexperiente.

3. [Guiné-Bissau] Indivíduo considerado estúpido.

4. [Guiné-Bissau] Dança executada na cerimónia de circuncisão.

"blufo", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, https://www.priberam.pt/dlpo/blufo [consultado em 14-01-2018].
___________

Notas do editor:


(...) Em 1951, James Pinto Bull, nascido em 1913 em Bolama, funcionário colonial, ao tempo administrador de circunscrição, e com carreira de deputado pela frente, três vezes eleito pelo círculo da Guiné para a Assembleia Nacional, escreve no Boletim Cultural da Guiné um artigo intitulado “Subsídios para o estudo da circuncisão entre os Balantas”.

É uma escrita direta, de pendor marcadamente divulgativo, chama à atenção para o “fanado” e para o modo como os Balantas encaram esta cerimónia religiosa, começando logo por referir que os “grandes” das tabancas apresentam-se com o tradicional “lopé” e trazendo enrolado pelo corpo pedaços de corda, vão à autoridade local pedir autorização para “deitar o fanado”.

Segue-se uma descrição vivacíssima:

“Dada a autorização, rompe imediatamente o tamborilar de um pequeno tambor para levar a nova aos indígenas reunidos nas moranças e com danças alusivas à cerimónia que se vai iniciar, os velhos regressam à tabanca. Toda a noite se ouve o barulho do “ẽbõbor” (tambor grande, anunciando às tabancas distantes a realização do fanado, convidando os jovens a virem alegrar com a sua presença a grande festa. 

"Rompe a aurora e principia a concentração da turba nas proximidades da tabanca onde se realiza o fanado. A falange engrossa rapidamente e os assistentes vão-se aquecendo, não só pela ação do calor que sufoca, mas também pela do álcool. O mestre-cerimónia dá o sinal para se fazer a concentração geral. Começa a marcha e centenas de indígenas lançam-se em correria desenfreada, parecendo à primeira vista que se trata de um ataque guerreiro, pois quase todos os do sexo masculino ostentam espadas e cacetes. 

"O grupo dos futuros circuncisos esforça-se por abrir caminho a fim de se dirigir para o porto ou bolanha mais próximos, onde besuntam o corpo com lama. Em correria louca e entoando cânticos variados, os blufos regressam à tabanca, formando grupos separados, para que cada um possa mostrar o seu valor. Continua nos arredores da tabanca o barulho ensurdecedor dos tambores, misturado com milhares de vozes e com a gritaria infernal dos mais alcoolizados. 

"O sol vai declinando e, enquanto os futuros circuncisos se reúnem na tabanca para tomarem a última refeição ainda como blufos e receberem as mezinhas para os proteger contra os feiticeiros durante a permanência na barraca, a multidão alegra-se cada vez mais, chegando a tomar o aspeto de verdadeira orgia. Todos estão em maior ou menor grau sobre a ação etilisante do álcool”.

(...) “As mulheres e as bajudas estão completamente excitadas sobre a dupla ação do álcool e algumas delas não resistem à tentação de se deixar agarrar pelo blufos que sabem tirar partido destas oportunidades. É que nesse dia tudo é permitido, desde o adultério, que para certos maridos até constitui honra, por verem que as suas mulheres foram muito apreciadas, até a própria violação das bajudas, facto que alguns pais perdoam, não exigindo a costumada reparação material”.

É então que o mestre-cerimónia, velhos e rapazes já circuncidados seguem para a bolanha para que se cumpra a operação. A festa acabou. Os futuros circuncisos já chegaram à bolanha e estão atolados pelo menos até aos joelhos. Vamos regressar ao relato:

“Começa então a operação feita pelo parente mais próximo, a qual consiste no corte do prepúcio, por um ou mais golpes ao contrário do que se sucede nas outras tribos em que o corte tem que ser rápido e com um único golpe. Acaba a operação, os pacientes recolhem-se a um local antecipadamente escolhido, em princípio numa mata próxima da tabanca, e onde é feita previamente uma clareira protegida por uma paliçada. 

"A permanência varia de um a três meses, e enquanto os circuncidados ali permanecerem, as famílias são obrigadas a preparar-lhes as melhores comidas e a confecionar os tradicionais e caprichosos panos de fanado. 

"Terminado o tempo julgado necessário, os circuncisos descem às povoações, formando um único grupo, envolto nos panos do fanado. Cumpridas estas regras, o irresponsável blufo que até vivia em comum com os seus camaradas, adquire todos os direitos e deveres de homem, podendo construir a sua palhota e arranjar mulher para constituir família”.

(...) Uma última nota, James Pinto Bull irá falecer num acidente de helicóptero, em Julho de 1970, faleceram entre outros, José Pedro Pinto Leite, considerado como uma das grandes promessas da Ala Liberal. (...)

quarta-feira, 5 de maio de 2010

Guiné 63/74 - P6320: José Corceiro na CCAÇ 5 (10): Dia de Fanado em Canjadude

1. José Corceiro, no seguimento do Poste 6301 (Convívio dos Gatos Pretos), conta como a sua curiosidade lhe podia ter saído cara, pois não avaliou que estava a profanar uma cerimónia religiosa tão importante na religião islâmica.


José Corceiro na CCAÇ 5 (10)

DIA DE “FANADO” EM CANJADUDE

Tinha, se o tempo o permitisse, a ideia de relembrar o que aconteceu em Canjadude 40 anos antes, ou seja, em 24 de Abril de 1970, quinze dias antes e quinze dias depois, mas o tempo não deu para tudo.

Criei seis blocos principais com fotografias adequadas aos temas a saber: - Bloco, Hino dos Gatos Pretos - com fotos do aquartelamento e sua evolução, do que era e do que ficou, quando em Agosto de 74 foi entregue ao PAIGC, isto com a sonoridade de gravações feitas e, cantadas por Gatos Pretos em Canjadude. – Bloco, Falecidos - onde estavam incluídas as fotos, da época, dos que há conhecimento que faleceram. – Bloco, Ausentes - onde estavam as fotos daqueles que tinham desejo de estar presentes, mas que por motivo de doença, ou outros imponderáveis, não puderam marcar presença. – Bloco, Organigrama - que inclui um trabalho feito pelo nosso Gato Preto, Alberto Antunes, ex-Furriel de Transmissões, que substituiu o José Martins na Secção de Transmissões na CCAÇ 5. É um trabalho apurado, que queima muito a pestana, e só com o empenho do Alberto Antunes, se tem conseguido avançar, que consiste em elaborar uma base de dados, com fotografia de cada um e respectivos dados. – Bloco, Gatos Pretos - o bloco maior, com mais de seiscentas fotos, ordenadas por assuntos que representam o viver e a história da Companhia, onde todos os Gatos Pretos que foi possível reunir são intervenientes (actores). Por último, e é duma parte deste que vou falar – Bloco, Rituais e Costumes Indígenas - onde uma parte das fotos dizia respeito ao ritual da Circuncisão nos Homens e Excisão das Mulheres.

Foto 7 > Preparação dos meninos de Canjadude, já de cabeça rapada, para o “Fanado” (Circuncisão).

Foto 8 > Preparação das meninas de Canjadude para o “Fanado” (Excisão Feminina)

É sobre excisão feminina que vou relatar o que me aconteceu em Canjadude, no ano de 1970. Conto esta estória, não só por a ter incluído no bloco de Rituais Indígenas no convívio, mas também por o tema ter sido abordado no Poste 6243 por Filomena Sampaio.

Sempre considerei e considero, que há alguns costumes e tradições em determinadas etnias da Guiné, que são aberrantes e me arrepio só de falar nelas, entre as quais cito a circuncisão no homem, da maneira como era feita (circuncisão cirúrgica sim, quando necessária) e a excisão na mulher que é um acto repugnante, mutilando-lhe o único (e pouco) tecido eréctil que a mulher tem, que é o clítoris. Não importa que religião seja, mas jamais um ritual religioso, ou tradição por ela imposta, pode contribuir para a mutilação do corpo do ser humano. A religião deve dignificar e elevar o Homem e contribuir para um relacionamento de responsabilidade e respeito pela vida própria de cada ser humano. Só por professar determinada religião, não devemos agir às cegas seguindo os seus ditames e, acatar as suas imposições.

Corria o ano de 1970, eu sabia que estava para breve a cerimónia da excisão das meninas de Canjadude, pois já tinha havido a circuncisão dos rapazes, dos quais eu não tinha conseguido tirar fotos. Um militar africano não islamizado, com o qual tinha excelente relacionamento, que sabia do meu interesse pelo cerimonial do “Fanado,” veio ter comigo e informou-me que se realizava no dia seguinte o ”Fanado” nas meninas da Tabanca, cujo altar do ritual era logo à entrada da mata, do lado da pista aérea. Levou-me ao local, onde já havia preparativos para a execução do acto.

Eu, nesse dia, de máquina fotográfica armadilhada e meia disfarçada, despercebidamente vou-me infiltrar na mata, próximo do local da cerimónia. Em determinado momento, as meninas todas em fila, cobertas com um pano da cabeça até aos pés, caminham em direcção ao local da cerimónia. A fila é encabeçada por três ou quatro mulheres e há duas ou três que acompanham lateralmente a fila, talvez para orientar as caminhantes, porque duvido que com a cara tapada consigam ver o percurso da caminhada. De entre as mulheres, não dava para perceber qual seria a “Fanateca” (a mulher que executa o trabalho).

Foto 9 > Preparação das meninas de Canjadude para o “Fanado” (Excisão feminina)

Fotos 10; 11 e 12 > Deslocação das meninas de Canjadude, para (sacrifício) o altar dos rituais na floresta. Na foto 12, pode ver-se um pai (presumo) com uma criancinha ao colo com as vestimentas do “Fanado”.

Foto 13 > Celebração de Graças em Canjadude, vendo-se muitos militares, para que tudo corra bem no “Fanado”.

Eu, impaciente e nervoso, mantenho-me observante e sossegadinho, meio camuflado, nem pestanejava e a fila dirigia-se para o local do ritual. Mas foi Sol de pouca dura, pouco tempo depois, quando me preparava para tirar a primeira foto, fui descoberto e, gerou-se tamanho alvoroço que tive que fugir a sete pés do local para o Aquartelamento.

Não sei explicar como, mas passados uns escassos minutos, após ter chegado ao aquartelamento e me ter dirigido para o abrigo de Transmissões, já estavam todos os Homens Grandes na porta de entrada da Tabanca para o Aquartelamento, a exigir a minha presença (eles todos me conheciam por causa de andar sempre armado em fotografo). Eu receoso que o meu acto se divulgasse e chegasse ao conhecimento dos superiores e que assumisse outras proporções, pois sabia o mal que tinha feito, fui ter com eles e por intermédio do militar que estava à porta onde eles estavam, pedi-lhes que me desculpassem porque eu estava a passar acidentalmente pelo local do acontecimento. Só que eles não estavam para desculpas e exigiam, que entregasse a máquina fotográfica, ou chamavam o Capitão. Eu tentei negociar com eles, prometendo-lhe que lhes tirava fotos gratuitamente, mas estavam inflexíveis. Eu bem tentei argumentar que foi mero acaso estar ali de passagem, mas não os consegui convencer. Por fim, o militar lá os conseguiu demover das suas intenções e acordámos, que eu lhes entregava o rolo que estava na máquina e lhes tirava 20 fotos gratuitamente. Tive que cumprir o estipulado.

Andei uns dias que não me atrevi a ir para a Tabanca sozinho, porque vi ódio nos olhos de alguns. Era normal, eu ir mesmo de noite, sozinho para a Tabanca, com receio contido, fi-lo muitas vezes, pois tinha um bom relacionamento com todos os moradores. Após este episódio tornei-me mais cauteloso.

A minha intenção, ao pretender tirar as fotos, era de pureza total, e somente compreender como se executava um processo que eu considerava indigno. Era a minha curiosidade dos 22 anos de idade a actuar.

Para todos os tertulianos, muita saúde e um abraço.
José Corceiro
__________

Notas de CV:

José Corceiro foi 1.º Cabo TRMS na CCaç 5 - Gatos Pretos -, Canjadude, 1969/71.

Vd. poste anterior de 2 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6301: Convívios (142): Encontro dos Gatos Negros da CCAÇ 5 ocorrido dia 24 de Abril de 2010 (José Corceiro)

Vd. último poste da série de 19 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6188: José Corceiro na CCAÇ 5 (9): Resposta a comentário ou eu e os meus registos

terça-feira, 9 de março de 2010

Guiné 63/74 - P5962: Antropologia (17): A Condição da Mulher em Cacine, em 1972 (Juvenal Candeias)

Guiné > Região de Tombali > Cacine > Binta, a bajuda contestatária, recusou  o casamento forçado com um homem grande




Guine > Região de Tombali > Cacine > "Hospital Central de Cacine”: todas as especialidades (incluindo partos)

Foto: © Juvenal Candeias (2010). Direitos reservados.


1. Mensagem, com data de ontem, do Juvenal Candeias, ex-Alf Mil da CCAÇ 3520, Estrelas do Sul (Cacine, Cameconde, Guileje, 1971/74):

 Assunto: A Condição da Mulher em Cacine, em 1972


 Camaradas,


Não quero deixar passar o Dia [Internacional] da Mulher sem vos enviar este texto, singela homenagem  à Mulher Nalú, que muito admirei, pela sua força, coragem e importância na comunidade.


Tomara que essa força e coragem tenha entretanto sido devidamente orientada!... Penso que ao texto deveria antes chamar Elementos para o Estudo da Condição [da Mulher]... deixando para os sociólogos - parece que há um aí bem perto - o verdadeiro estudo da Condição  da Mulher em Cacine.


Como diria Filinto Barros, este texto não é "nem sociologia, nem história, nem política, é tão-somente um conjunto de memórias com 38 anos.


Um forte abraço a todos.


Juvenal Candeias


PS. À atenção do Luís Graça: observa a fotografia da enfermaria de Cacine. Do lado direito podes ver como era o bunker cujas ruínas fotografaste há relativamente pouco tempo.


2. A CONDIÇÃO DA MULHER EM CACINE, EM 1972
por Juvenal Candeias


Em Cacine predominava a etnia Nalú, tradicionalmente animista, convertida ao Islamismo por influência dos Sossos, etnia minoritária, mas culturalmente mais evoluída

A islamização dos Nalús transformou completamente a sua cultura, afectando de modo significativo a condição social da mulher. O casamento poligâmico forçado, o trabalho feminino e o fanadu (mutilação genital da mulher) surgiram como novas realidades ou revestiram aspectos totalmente distintos.

- O CASAMENTO

O casamento, que tradicionalmente era feito por troca, passou a ser feito por compensação (pecuniária e/ou em géneros).

Quando as jovens tinham 12 ou 13 anos, apresentavam-lhes um homem dizendo-lhes que era o seu marido. Não havia relações sexuais prévias, não havia namoro, não havia nada que permitisse à mulher conhecer o marido, muito menos decidir se com ele queria viver!

A negociação das bajudas (mulheres jovens) era feita no momento, por proposta efectuada pela família do pretendente à família da jovem, mas o comprometimento de bajudas ainda na infância, também era vulgar. Neste caso, o noivo passava desde então a ajudar a família da noiva, até que esta, alguns anos mais tarde, lhe fosse entregue.

O número de mulheres de cada homem dependia da sua capacidade financeira e determinava mesmo o seu estatuto social na comunidade.  Não eram raros os homens grandes (velhos) com 3 ou 4 mulheres, algumas bastante mais jovens. É que, para além do eventual interesse sexual, as mulheres significavam também mão-de-obra barata.

O casamento imposto, verdadeira violência psicológica exercida sobre as mulheres, raramente tinha contestação, por um lado, porque se efectuava logo a partir dos 12 anos, quando a mulher tinha pouca possibilidade de se opor, por outro lado, devido à pressão social que a própria comunidade exercia sobre as eventuais contestatárias.

Contudo, esporadicamente ocorriam alguns casos, como o de uma bajuda, residente na Tabanca Nova – reordenamento estrategicamente colocado junto à picada, a meio caminho entre Cacine e Cameconde – que perante o iminente casamento negociado pela família com um homem grande, mais interessada num jovem, recusou, acabando por fugir para o mato, onde andou sozinha cerca de uma semana.

De nada lhe serviu! Encontrada e repreendida, o castigo terá sido severo, uma vez que durante bastante tempo ninguém viu a Binta!

O ambiente familiar, com várias esposas de um mesmo homem que entre si se designavam por cumbossas, era, naturalmente, de grande rivalidade, salvo quando a diferença etária entre as cumbossas era significativa, situação em que as mais velhas, a troco de trabalho, podiam mesmo dar alguma protecção às mais jovens.


Apesar de toda esta envolvência, as crianças eram tratadas como filhos por todas as cumbossas, independentemente de quem fosse a verdadeira mãe. Era uma original, mas real situação de crianças com várias mães!

No âmbito do casamento também a herança era um fenómeno original e penalizador da condição da mulher. A viúva não tinha direito a herdar os bens do marido. Os mesmos eram herdados pelos irmãos, fazendo a mulher, ela própria, parte da herança do falecido marido.

Para além de perder o marido e os bens, via-se na contingência de integrar uma nova família a quem era obrigada a servir e ainda a manter relações sexuais com um novo homem que, naturalmente, também não escolhera!

A extrema submissão a que as mulheres estavam sujeitas levava a que questionar uma mulher,  sobre as diferentes situações de violência no seio do casamento, era obter, invariavelmente, a resposta, por estas ou por semelhantes palavras: “sempre foi assim…”, “é Deus que quer…”

- O TRABALHO DA MULHER

O casamento a que nos referimos, determinava que a mulher via a sua posição degradada, fora convertida em servidora, verdadeira escrava da luxúria do homem, que a transformara em simples instrumento de produção e reprodução.

Esta situação acabava por influenciar, ironicamente, a posição preponderante que a mulher desempenhava no seio da família e a importância da sua acção na comunidade. De facto, à mulher estava atribuída a responsabilidade da alimentação, vestuário, manutenção da casa e educação dos filhos, áreas em que os homens não tinham a mínima interferência.

A família não se sustentava só com o que comprava com os parcos rendimentos obtidos pelos homens mas, sobretudo, com o que resultava de a mulher transformar muitas horas de trabalho.

Algum destaque deverá ainda ser dado à educação dos filhos. Era garantida em exclusivo pelas mulheres que, contraditoriamente, acabavam por ser as transmissoras de comportamentos e valores enraizados, ligados a um processo de socialização de que elas próprias eram as principais vítimas.

As crianças do sexo feminino eram preparadas pelas mães para o processo de submissão à vontade do homem e da comunidade e as do sexo masculino para perpetuarem o domínio dos homens.

O analfabetismo era outro problema grave. Atingia valores extremamente elevados nos homens e era total nas mulheres.

O Furriel Miliciano Lopo mantinha uma escola primária a funcionar diariamente, onde nunca conseguiu ter um aluno do sexo feminino!

Estas horas de trabalho invisível desenvolvido pelas mulheres eram fundamentais para garantir a economia doméstica e a evolução da comunidade e da cultura da própria etnia. Para os homens, contudo, este trabalho pouco contava, estava praticamente oculto atrás da fachada da família poligâmica, permanecendo invisível, porque não se traduzia em produtos visíveis.

Muitas horas de rude desgaste diluíam-se magicamente, permanecendo na clandestinidade a forte contribuição da mulher Nalú para a comunidade.

À mulher competia ainda outro trabalho, um pouco mais visível… Apanhar ostras e proceder à sua venda - a cotação da bacia de ostras era de 10 pesos – apanhar mangos, cultivar mandioca e mancarra, semear arroz… enfim, pouco restava para os homens fazerem, para além das rezas e do descanso tranquilo nas suas cadeiras de encosto!

Sempre que a tropa passava pela tabanca em deslocações de trabalho ou de patrulhamento, o cumprimento era um paradigma:
- Eh pessoal! Manga de trabalho!

A resposta, indolente, vinha lá bem do fundo da cadeira:
- Manga deeeele!

- O FANADO

O fanado, ou mutilação genital feminina, dizia-se ser um processo mais amplo, que podia descrever-se como uma cerimónia ou ritual de iniciação que preparava as jovens para a vida adulta, para a sua responsabilidade na comunidade e para a habilidade de continuar a cultura da própria etnia.

O fanado tinha na mutilação genital feminina a sua face mais negra. Ocorria na época das chuvas, altura em que as mulheres padidas (que tinham sido mães recentemente) se ocupavam da construção das barracas do fanadu, integralmente em material vegetal e longe da tabanca.

Tudo o que se relacionava com o fanadu não tinha intervenção do homem, que estava até impedido de se aproximar do local da cerimónia.

Eram as mulheres padidas que “montavam segurança” nas imediações do local e um cusco da nossa Companhia teve mesmo direito a perseguição e caça, no meio de tremenda algazarra, salvando-se apenas com a entrada no aquartelamento, após longa corrida.

Construídas as barracas, apenas as meninas que iam ser sujeitas ao fanadu (com cerca de 10 anos), as fanatecas e algumas mulheres grandes, lá entravam!

O que acontecia no interior das barracas, durante semanas, ninguém sabia com absoluta certeza.

O fanado era um ritual secreto do qual apenas se conhecia a mutilação genital e a transmissão, pelas mulheres grandes, dos valores atrás referidos.

Constava, contudo, que a mutilação era efectuada pela fanateca, que dispunha de uma faca própria para o efeito, que os cortes eram efectuados a frio, sem sombra de anestesia, sucessivamente a todas as bajudas, sem condições sanitárias, sem sequer a faca ser esterilizada após cada utilização.

Esta intervenção provocava problemas imediatos de hemorragias e infecções de que se desconhecia a exacta dimensão, uma vez que, devido ao carácter secreto da cerimónia, o facto não era muito comentado e nenhuma jovem podia recorrer a apoio médico.

As consequências nefastas do fanado projectavam-se sobre o futuro das bajudas e agravavam-se com maternidades precoces. Hemorragias e outros problemas no momento do parto eram comuns e levavam as mulheres a recorrer às enfermarias militar e civil, aqui já sem grandes inibições.

Em casos extremos, mas não raros, verificava-se mesmo a incapacidade para ter filhos.

Apesar de todos estes problemas, a mulher Nalú nem um gemido largava ao parir e levantava-se imediatamente a seguir ao parto, para efectuar a limpeza total do local.  Era uma questão cultural, de honra e prestígio.

O fanado era, portanto, uma cerimónia absolutamente generalizada. Não passar pelo fanado era algo de inconcebível, determinando a exclusão social, a discriminação, a recusa de casamento e de tarefas no seio da família, dado que a jovem não tinha sido purificada. Se as bajudas não fossem ao fanado,  as suas preces não seriam ouvidas, por mais que se lavassem nunca ficariam limpas…

Consequentemente, e em casos extremos, as próprias mães chegavam a fazer o fanado às filhas!

De resto o fanado era uma festa que se prolongava por várias semanas, em que o principal programa era comer, beber (apesar da islamização) e dançar!

Juvenal Candeias

Março 2010

______________

Notas de L.G.:

(*) Vd. postes de:

18 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5295: Histórias de Juvenal Candeias (6): Padaria de luxo em Cacine

16 de Outubro de 2009 > Guiné 63/74 - P5113: Histórias de Juvenal Candeias (5): Vicente, o Piu

16 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4961: Histórias de Juvenal Candeias (4): Há periquitos no Quitáfine

1 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4623: Histórias de Juvenal Candeias (3): Um Manjaco em chão Nalú

12 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4323: Histórias de Juvenal Candeias (2): Incêndio no Rio Cacine

7 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4299: Histórias de Juvenal Candeias (1): Pirofobia ou a mina que não rebentou por simpatia

6 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4294: Tabanca Grande (136): Juvenal Candeias, ex-Alf Mil da CCAÇ 3520, Cameconde (1972/74)

(...) Era Alferes Miliciano, Atirador, com recruta e especialidade em Mafra a que se seguiu Tavira durante 3 meses!



Mobilizado para a Guiné, fui formar Companhia no BII 19, no Funchal, donde saí com a Companhia de Caçadores 3520 para Bissau, onde cheguei ao fim da tarde de 24 de Dezembro de 1971 (que rica noite de Natal, no Cumeré!!!)


Após a IAO no Cumeré, fomos parar a Cacine (mais o destacamento de Cameconde), onde permanecemos até final de Outubro de 1973! (...)