sexta-feira, 5 de julho de 2019

Guiné 61/74 - P19949: Notas de leitura (1193): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (13) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Março de 2019:

Queridos amigos,
A malta da BCAV 490 já está a beber o seu cálice de fel, o bardo Santos Andrade não pára de nos contar desditas, apanham-se armas na guerrilha, morre-se de ambos os lados, há sol inclemente, mosquitos cruéis, emboscadas e patrulhamentos, caminhamos para o final de 1963, em Bissorã, em 14 de janeiro irão todos do cais do Pidjiquiti até ao Como, começando por desembarcar na Praia de Caiar.
Faz-nos hoje companhia um escritor açoriano com vários regressos literários pela Guiné, desta feita "Braço Tatuado", conta-nos histórias avulsas, o drama central é o do Niza, que não se conformou que a sua Lena desse o dito por não dito, era uma espera longa demais, o Niza não suportou a rejeição, aqui temos o relato de toda a tragédia que chegou a Dunane num aerograma. Histórias de guerra que todos conhecemos. Mas aqui, a qualidade literária de Cristóvão de Aguiar impõe-se por si só.

Um abraço do
Mário


Missão cumprida… e a que vamos cumprindo (13)

Beja Santos

“Amigo Diogo Augusto
duas armas apanhou
foi este rapaz louvado,
bom serviço desempenhou.

Foi ao pôr do dia
que saiu o 1.º e o 3.º pelotão.
Junto ao senhor Capitão,
todo o pessoal seguia.
Ele nos carreiros os metia,
por entre qualquer arbusto,
muitas vezes, com muito custo,
avançavam pelas bolanhas.
Tem para contar muitas façanhas
amigo Diogo Augusto.

Até ser de madrugada,
numas tabancas estiveram,
mas dormir nunca puderam,
por causa da bicharada.
O Tavares, bom camarada,
muitas picadas levou:
o clarim adormecido ficou
a um canto encostado
e nesse dia o tal soldado
duas armas apanhou.

Quando os aviões chegaram,
voltaram à mata de Fajonquito
onde houve conflito
quando os bandidos os avistaram.
Ao 185 apontaram,
mas falhou a escorva do malvado.
Ele voltou-se para o lado
matando dois dos três.
E a 18 deste mês
foi este rapaz louvado.

O Furriel Pacífico se feriu
quase no último dia,
feriu-se um rapaz de Artilharia
quando a mina explodiu.
O pelotão de António Mestre seguiu
socorrendo o que se passou.
O Varela e o Joel alinhou
com o Diamantino, boa pessoa,
que entre Bissorã e Mansoa
bom serviço desempenhou.”

********************

Entrou-se na rotina da guerra, patrulha-se, fazem-se colunas, captura-se armamento, explodem minas. Refletia sobre as atividades da CCAÇ 675 em Binta, sob o comando do Capitão do Quadrado. E nisto a memória esvoaça para outras paragens que as de Bissorã ou Mansoa ou Farim ou Guidage, vai-se para o Leste, há um alferes que vive em Dunane, dá pelo nome de Arquelau de Mendonça, é o escritor Cristóvão de Aguiar, aqui será várias vezes invocado, hoje circunscrito a coisas que escreveu no seu romance “Braço Tatuado”, 1.ª edição em 2008:
“Os camiões estão estacionados em frente do ex-estabelecimento comercial de um libanês, transformado em edifício de comando e secretaria. Os motores aquecem, roncando. Tudo a postos: rações de combate, cartucheiras à cinta de cada combatente, sacos de campanha cor de azeitona, com alguma roupa interior, maços de cartas e aerogramas amarelos, a cor do desespero. Só falto eu. Acabei de atravessar a parada, ainda me vou demorar um pouco na secretaria, tenho de ultimar, com o nosso Primeiro Gervásio, a guia de marcha do pelotão: ‘Por ordem de S. Ex.ª, o Comandante-Chefe, segue para a sede do batalhão de Nova Lamego, onde aguardará ordem de marcha para Dunane, o Primeiro Grupo de Combate desta Companhia, a fim de reforçar, sempre que necessário, as forças estacionadas no sector militar constituído por Nova Lamego, Piche, Canquelifá e Buruntuma. Vai abonado, assim como todos os seus homens, de alimentação até hoje inclusive…”.
Um pouco antes, o autor já apresentara a CCAÇ 666, o mesmo número da Besta do Apocalipse, a última parte do Novo Testamento que revela o mistério de Deus julgando e destruindo o mal, a fim de implantar o Seu Reino sobre a Terra.
E apresenta-nos Dunane:  
“Fica num mamelão da planície que se alonga de Piche a Canquelifá. Pode-se avistar léguas de terra arborizada, por vezes concentrada em mata virgem, outras raleando nas lalas, ou despindo-se por completo nas bolanhas, rios secos que, na época das chuvas, se transmudam em pântanos onde o indígena cultiva o arroz, praticamente abandonado nesta zona de ninguém e armadilha para os grupos de combate que aí se atolam até ao pescoço”.

O autor é expedito em contar histórias avulsas, sem rigor de espaço e de tempo. Uma para exemplo:
“O Alferes Leite morreu cerca de um mês antes do regresso definitivo a Lisboa. Tinha o seu grupo de combate intacto – um pelotão independente de artilharia sediado no destacamento de Cambaju há cerca de dois anos. A zona era pacífica e assim havia de continuar por bastante tempo.
Passeavam-se pelas tabancas ao redor, mantinham estreitas ligações com a população indígena, composta sobretudo pelas etnias Fula e Mandinga.
Duas vezes por semana, às quartas e sextas, quase todo o grupo de combate ia ao rio abastecer-se de peixe. No destacamento só ficavam os rancheiros, o radiotelegrafista, o cabo cripto e os faxinas de serviço. O alferes acompanhava o grupo da coluna. Ele próprio conduzia o jipe, os restantes iam num Unimog velhinho e lá seguiam na sua rotineira missão piscatória. Em vez de se lançar a rede às águas, lançavam-se duas ou três granadas ofensivas que explodiam debaixo de água. Pouco depois, aparece à tona uma espessa toalha de peixes mortos. Escolhem-se os mais grados e de melhor qualidade e deixam-se os restantes para serem comidos pelos jacarés ou debicados pelas aves de rapina… Desta vez o Alferes Leite foi estraçalhado por um crocodilo. O calor chicoteava a pele tisnada e ele quis, como de costume, dar um mergulho para se refrescar. Mergulhou e nunca mais apareceu. Quero dizer, apareceram mais tarde os restos de uma perna e um pedaço de tronco. Vieram encaixotados para a metrópole”.

E irrompe o cenário da tragédia, o seu personagem chama-se Niza:
“Na mão direita a carta já desdobrada. Pelos vincos se nota que deve ter sido lida e relida. Procura em mim uma testemunha ou um confidente que lhe confirme ou arrede a teia das desconfianças urdidas no íntimo com babas suspeitas…
‘Ó meu alferes, faça-me o favor de ler esta carta e diga-me depois com toda a franqueza se a Lena não está, por meias palavras, dando o dito por não dito…’. Ao fim de a ler, fiquei com a certeza que estava. Mas não lhe disse. Procurei antes, à minha maneira, tanger-lhe os bordões de um invisível instrumento a ver se lhe arrancava o tom de outra melodia. Fui dizendo que tivesse calma. A Lena, notava-se nas entrelinhas da carta, gostava muito dele, só que estava cansada de esperar e tinha de esperar outro tanto e quem espera, meu amigo… Terminei a cantilena com um lugar-comum, desses que se lançam à água como bóia de salvação, ‘Hás-de ver, Niza, que na próxima carta ou aerograma tudo se compõe e ela muda o seu pensar, ora se muda. E o namoro fica de pedra e cal…’
O Niza desesperou, o alferes Arquelau de Mendonça apercebe-se que se chegou ao último acto quando viu o destacamento em reboliço, toda a gente a correr para se esconder, o Niza de arma apontada ameaçando quem ousa aproximar-se. Até o cozinheiro deixou os caldeiros ao lume. O Niza avisa que dispara se o alferes der um passo adiante. O alferes tenta parlamentar, o Niza ameaça, e despeja para o ar, em rajada, quase todo o carregador da espingarda. ‘O meu alferes é o maior culpado da minha desgraça; se me tivesse proibido de fazer a tatuagem, já havia remédio; agora que estou fodido não vou nem quero ficar sozinho – vão todos ficar fodidos comigo…’. Rasga a manga da camisa, aos palavrões principia a esfolar o local da tatuagem. Nesse instante caiem-lhe três homens em cima, o Niza é imobilizado. Segue para os serviços de psiquiatria do Hospital Militar. “Três dias após a chegada ao hospital, o Niza apareceu morto. Enforcou-se com os lençóis da cama. Quando o encontraram pendurado, já enegrecido, um dos furriéis enfermeiros, atraído pelo vermelho vivo do sangue ainda a escorrer-lhe do braço direito, ainda conseguiu soletrar as palavras insculpidas na pele – Amor de Lena...”

Inevitavelmente, este romance de guerra não escamoteia o horror que uma mina antipessoal provoca:
“De súbito, um estampido. Vem dos lados da dianteira da coluna. Num instinto adquirido, toda a gente se manda para o chão. Era a emboscada, já há muito esperada. Não se trata de emboscada. Tão só uma mina antipessoal que explode debaixo de um pé do Furriel Simões. Ao aproximar-me do local, deparo com um homem enegrecido, autêntico autóctone, e fico por momentos mais descansado... Num ápice se desfaz o momentâneo alívio. O sinistrado é mesmo o Furriel Simões. Ficou negro da explosão. Voou-lhe a bota do pé esquerdo juntamente com o pé. Procuram-se ambos, mas tal deve ter sido o sumiço que nunca mais se encontraram. Do tornozelo para baixo, não existe nada. Corre apenas uma bica de sangue. O furriel grita pelos filhos que deixou algures no norte do continente. Acode-lhe o furriel enfermeiro com uma injecção de morfina e estanca-lhe o sangue com os coagulantes que traz na bolsa dos primeiros socorros e enrole-lhe com gaze e uma ligadura a parte final da perna. Por fim, cai num sono de pedra. Vai agora estendido numa maca de campanha transportada por quatro homens”.

Em pinceladas largas, aqui se registam as memórias desse açoriano de S. Miguel, que em breve regressará à nossa companhia para se juntar ao bardo Santos Andrade que em breve nos irá contar a batalha do Como.

(continua)
____________

Notas do editor

Poste anterior de 28 de junho de 2019 > Guiné 61/74 - P19925: Notas de leitura (1191): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (12) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 1 de julho de 2019 > Guiné 61/74 - P19936: Notas de leitura (1192): “Cambança Final”, por Alberto Branquinho; Sítio do Livro, 2013 (Mário Beja Santos)

2 comentários:

Valdemar Silva disse...

Muito interessante.
E em Dunane também houve diarreia, quase geral, por causa do consumo de marisco estragado. Foi encomendado aos 'frescos' para a festança de fim do ano 1969, mas o calor sofrido no transporte desde Bambadinca estregou o petisco. E nessa noite, mesmo com 'descargas' pelo meio, conseguiram repelir um ataque à tabanca.

E quantos 'Amor de Lena' não andarão por aí, nunca esfolados, mal explicados, desconfiados, amargurados, apenas recordados, já desbotados?

Valdemar Queiroz

Valdemar Silva disse...

No P4876 Cristóvão Aguiar diz ter estado em Contuboel e em Sonaco, em 1966, a viver com a esposa em casas fora do Quartel.
Mas, em Sonaco nunca ouvi dizer ter havido tropa fixa. Será que Cristóvão Aguiar vivia em Sonaco e estava de serviço no Quartel de Contuboel?

Valdemar Queiroz