quarta-feira, 3 de julho de 2019

Guiné 61/74 - P19942: Historiografia da presença portuguesa em África (166): Teixeira Pinto e as operações na ilha de Bissau, 1915 (2) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Setembro de 2018:

Queridos amigos,
Para os historiadores, nomeadamente para quem trabalha no período chamado de pacificação e ocupação da Guiné, é documento incontornável, o Capitão João Teixeira Pinto dá conta das escolhas a que procedeu para encontrar tropas auxiliares, enumera os seus colaboradores próximos, a Operação do Oio, sobre o Oio e sobre os Papéis do Churo, que antecederam a campanha de Bissau, aqui minuciosamente descrita. Teixeira Pinto era profundamente detestado por uma ala militar e pela Liga Guineense, é lastimável não possuirmos as peças concludentes que iluminem todo este processo que levou ao afastamento do capitão, que mais tarde viu o seu nome ressarcido. Uma das queixas foi a brutalidade exercida, os troféus de guerra e as pilhagens dos irregulares. Abdul Indjai saiu altamente beneficiado, é nomeado régulo do Oio, e depois perseguido, acusado das piores infâmias. Mamadu Sissé sairá pela porta triunfal, o seu nome é apresentado ao longo de décadas como o símbolo da lealdade guineense a Portugal.

Um abraço do
Mário


Teixeira Pinto e as operações na ilha de Bissau, 1915 (2)

Beja Santos

O relatório que o Capitão Teixeira Pinto dirigiu ao Governador da Guiné, em 1 de setembro de 1915, referente à coluna de operações contra os Papéis e Grumetes revoltados da Ilha de Bissau, é um documento-chave para a compreensão do que foram as últimas operações da chamada pacificação da Guiné continental, em 1915. O documento, em sede dos Reservados da Sociedade de Geografia de Lisboa, foi reproduzido no Boletim da Sociedade vinte e um anos depois, e tem sido documentado por alguma historiografia. O interesse que lhe conferi foi ver certas correções introduzidas e desenhos das operações, mas na verdade fica-se sem saber se são da autoria do capitão ou de quem ofereceu a cópia à Sociedade de Geografia de Lisboa.

No texto anterior, Teixeira Pinto comenta a derrota do inimigo e a necessidade de se proceder a uma conquista efetiva da Ilha de Bissau. Procede a um balanço:
“Tivemos 3 soldados feridos e nos irregulares 88 baixas, sendo 70 feridos e 18 mortos. Entre os feridos estava a chefe de guerra Mamadu Sissé, que depois de pensado não quis ficar no hospital, continuando à frente da sua gente. Todos se portaram com uma valentia que não há palavras para o poder descrever. Saliento o tenente de guerra que fez o seu batismo de fogo mostrando durante o combate muita energia e muito sangue frio, parecendo mais um guerreiro encarniçado nas guerras africanas do que um novato saído há pouco da Escola de Guerra.
O inimigo atacou com muita valentia e muito convencido pelos massacres que nós sofremos em 1891 e 1894 que eles nos massacraram e que tomariam conta da vila cujas casas comerciais e mulheres eles já tinham dividido entre si.”

Dias depois, começa a marcha sobre o chão Papel, com a seguinte formação:
“Na frente, para desenvolver sobre o alto de Bandim ia o Mamadu Sissé. Em seguida ia Aliburi (filho de Abdul Indjai) para desenvolver à direita dele onde apoiava a sua esquerda e, em seguida, os Futa-Fulas de Alfá Mamadu Seilú com os seus soldados e a metralhadora. Da retaguarda, marchava Abdul Indjai com a sua gente pronta a aparar o ataque do lado de Antula”.

O inimigo rompe fogo, a coluna passou todos os obstáculos e repeliu para além dos altos de Intim e Bandim. “Nesse dia de luta de 1 contra 10, com inimigo bem armado com armas aperfeiçoadas, bastante cartuchame e com a lenda de invencível, cada soldado, cada irregular, cada voluntário foi um herói. Graduados regulares e irregulares portaram-se de tal modo, mostraram tanta energia, tanto sangue frio, desenvolveram tal actividade que não sei descrever o entusiasmo e o reconhecimento que me invadiu quando à tarde estávamos acampados sem se ouvir um tiro no mesmo sítio em que acampou a coluna de 1908, que foi sempre mais ou menos hostilizada pelos inimigos”.

Está a coluna acampada no alto de Bandim há escassos dias, dá-se novo ataque dos Grumetes e Papéis, é repelido. “Durou duas horas o fogo, tendo nós tido 27 feridos e 4 mortos. Nesse dia, prevenia a praça que avançava no dia imediato sobre Antula e que fizessem o bombardeamento de Antula das 8 às 9 horas e que às 9 horas eu romperia a marcha, podendo às 9 e 30 horas atirar alguns tiros de granada sobre as povoações que deixávamos para evitar que viessem na nossa retaguarda”.

Segue-se um auto e na manhã seguinte a coluna prepara-se para uma luta rendidíssima em Antula, considerada pelos Grumetes e Papéis como chão sagrado, o Governo nunca tinha ali ido ao som de guerra.
Segue-se a descrição:
“A coluna levava marchando na frente em atiradores o chefe de guerra Mamadu Sissé com a sua gente apoiada pelo pelotão de soldados e metralhadora. No flanco esquerdo em fila indiana, a gente de Alfá Mamadu Seilú e Cherno Bacar. No flanco direito, também em fila indiana, a gente de Aliburi que apesar de ferido continuou em serviço. Na retaguarda, estendidos em atiradores, parte dos irregulares sob o comando directo de Abdul que marchava no centro com a reserva, pronto a acudir no ponto mais ameaçado. Encontrámos resistência fraquíssima. Papéis e Grumetes que estavam na povoação, depois de algum tiroteio, fugiram quando viram soldados e irregulares carregarem para o assalto. Perseguidos, deixaram bastantes mortos. Não tivemos mortos nem feridos e tínhamos tomado o chão sagrado. Ficou tão limpo de inimigos o território que às 15 horas o 2.º Sargento Vilaça e o voluntário Jorge Karam seguiram para Bissau por terra a levar a feliz nova da tomada de Antula sem mortos ou feridos”.

Dias depois de acampados em Antula, seguem para Cujá, nisto ouve-se forte tiroteio na retaguarda, era um ataque de Grumetes e Papéis. Segue-se até Jaal, com mais ou menos tiroteio, na mata, Grumetes e Papéis faziam uma gritaria ensurdecedora. Carrega sobre o inimigo, debaixo de chuva intensa. Jaal estava abandonada. Na manhã seguinte, o inimigo voltou a fazer fogo sobre o acampamento dos irregulares, carregou sobre o inimigo, foi desalojado. É neste contexto que Teixeira Pinto é ferido, marcha-se para Safim, o capitão entregou o comando ao Tenente Sousa Guerra e recolheu-se à lancha-canhoneira Flecha. Enumeram-se várias escaramuças dias a fio. Dias depois, a coluna progride para Contume e Bor, que foram tomadas. O inimigo ataca o acampamento de Bor, novamente repelido. Bor é cercada, o Tenente Sousa Guerra vai em seu auxílio. Grumetes e Papéis não resistem ao ataque a Cumeré. É neste enquadramento que se dá um episódio marcante. Em meados de julho, o régulo de Tor comunica a Teixeira Pinto que quer entregar armas e espadas. Foram então enviados mensageiros ao régulo do Biombo para que ele mandasse dizer se queria paz ou guerra.

Importa reproduzir na íntegra a prosa de Teixeira Pinto:
“Iniciámos a marcha às dez horas e meia e chegámos a Tor às doze e meia. Encontrámos o rei e os seus grandes sentados debaixo de umas grandes e lindas árvores. É um rapaz novo e simpático. À nossa chegada não estava ainda confirmada a sua nomeação. O povo queria-o, mas o rei de Biombo queria outro, por este não ser inclinado à guerra. Quando chegámos, este apresentou-se como rei e como tal ficou. Tinha junto algumas espingardas e espadas (…) Enviámos ao régulo do Biombo para que ele mandasse dizer se queria paz ou guerra. À noite vieram dois enviados dele trazendo meia dúzia de armas de pedreneira muito escangalhadas, dizendo que o régulo queria paz mas não podia juntar mais armas porque os rapazes as não entregavam. Percebi que era troça e mandei-lhe dizer que no dia seguinte iria para o Biombo e se ele realmente estava em boas condições e não queria guerra, que nos esperasse à entrada da povoação com as armas da sua gente. No dia seguinte, seguimos para lá e à entrada do Biombo estava uma árvore muito grande e grossa a que chamam aqui poilão, do lado da nossa marcha havia um monte de 80 espingardas encimadas por uma bandeira branca.
Do lado oposto estava o régulo com alguns dos seus grandes. Logo à chegada da guarda avançada da coluna e quando estavam a ver umas armas, partiu uma descarga feita pelos Papéis que se achavam emboscados por detrás de um morro de terra cercado por purgueiras, escapando por pouco de ser atingido o chefe de guerra Abdul Indjai. Não esperava semelhante traição e o régulo foi preso. Houve tiroteio rijo que durou até à tarde, tendo nós 17 feridos e 3 mortos. Interrogado o régulo, declarou que ele nunca se submeteria porque ele odiava os brancos, que tinha mandado sempre 500 homens a cada combate que tinha havido e que enquanto ele fosse vivo e houvesse um Papel do Biombo, haviam de fazer guerra ao Governo, e que se morresse e que se no outro mundo encontrasse brancos, que havia de fazer guerra.”

E este importante documento termina assim:
“Permita-me, Senhor Governador, que eu fale dos meus valentes colaboradores para os quais eu não encontro palavras no meu coração de português, nem para exprimir todo o meu reconhecimento pelo valioso serviço prestado à nossa querida Pátria, nem por saber traduzir todo o meu desejo de que lhes fossem dadas recompensas condignas.
Singelamente, descrevi os serviços prestados pelos meus auxiliares e irregulares e voluntários, mas V. Ex.ª decerto com a sua clara inteligência saberá compreender aquilo que a insuficiência da minha pena não soube dizer.
Como resposta àqueles que diziam que em Bissau não queriam que se fizesse a guerra aos Papéis e Grumetes, basta ler as linhas anteriores em que indivíduos e casas comerciais de Bissau cederam gratuitamente os seus barcos e concorreram com dádivas e provas inequívocas de simpatia”.

Régulo Mamadu Sissé, fotografia de Domingos Alvão, o régulo esteve presente na I Exposição Colonial que decorreu no Porto, em 1934.
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Nota do editor

Último poste da série de 26 de junho de 2019 > Guiné 61/74 - P19920: Historiografia da presença portuguesa em África (164): Teixeira Pinto e as operações na ilha de Bissau, 1915 (1) (Mário Beja Santos)

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