quarta-feira, 10 de julho de 2019

Guiné 61/74 - P19966: Historiografia da presença portuguesa em África (166): Alfa Moló Baldé e o mito fundador do reino de Fuladu, em 1867 (Cherno Baldé) - II (e última) Parte


Guoleghal, a ave mensageira do conto de Canhánima (Sancorlã) e de Fuladu ... Grou-Coroado (Balearica Pavonina). Conhecida na Guiné, coloquialmente, como ganga... Havia muitos na grande bolanha de Bambadinca.

Foto (e legenda): © Armando Pires (2010). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Notas de leitura:  ALFA MOLÓ E O MITO FUNDADOR DO REINO DE FULADU - II ( e Última) Parte (*)

por Cherno Baldé [, foto à direita]


(iii) A passagem e as predicações místicas do Marabu El-Hadj Omar Tall

Foi por ocasião das suas longas e numerosas peregrinações através do continente que El-Hadj Omar passou na região de Firdu a caminho de Futa-Djalon. A data desta passagem do Marabu "toucouleur" [subgrupo, muçulmano, de língua fula, que vive sobretudo no norte do Senegal, resultante da mistura de fulas com outros povos na época de Koli Tenguella] é controversa. 

A tradição oral, diz-nos Abdarahmane, avança a data de 1854, mas esta última não está em conformidade com as fontes escritas que situam esta passagem do sábio Toucouleur por Futa-Djalon em meados de 1845. De qualquer modo, para o caso que nos interessa, é que quando ele chega a Sulabali, vai directamente à morança (casa) do nobre, Samba Egué.

Chegado a entrada da morança deste, ele cumprimenta em voz alta, à maneira muçulmana, dizendo: « Assaláamu alaykúm, matchubhê Allah ! » (Salvé, servos de Deus !). Mas, o termo « matchubhê » (Servos) utilizado na fórmula do religioso islâmico, não convinha aos membros da família dos Fulas-forros que o intimaram a continuar para a morança dos « matchubhé » que era do outro lado.

Mol Egué (futuro Alfa Moló) tinha ido a caça, como habitualmente. O Homem Grande foi recebido com todo o respeito por Cumba Udé (mulher de Moló Egué) que, segundo algumas fontes orais, tinha percebido por intuição que o peregrino não era um homem vulgar. Ela fez tudo o que era necessário para que o arabu tivesse as condições de hospitalidade dignas do seu nivel e notoriedade. Outra das versões sustenta que Molo Egué tinha recomendado à sua esposa para cuidar de qualquer estrangeiro que se apresentasse durante a sua ausência.

Com essa preocupação na cabeça, a mulher vai buscar a única galinha que possuíam em casa no momento e, como mandavam as regras, a levar ao Marabu, pedindo-lhe que a mandasse imolar de acordo com o rito muçulmano o que serviria para a preparação da sua refeição. O velho, conhecedor de toda a situação, tendo agradecido a mulher, ordenou-lhe para devolver a galinha onde ela a tinha retirado,  ou seja em cima dos seus ovos, pois que o seu marido estaria brevemente de regresso trazendo consigo alguma peça de caça que serviria para preparar o jantar. Com estas palavras a mulher ficou ainda mais aflita e não sabia o que fazer perante tamanho assombro.

Quando Moló Egué regressa a casa, a mulher vai ao seu encontro e diz-lhe : « Moló, vai tomar banho e veste-te convenientemente, pois temos hóspedes em casa ». Depois de colocar no corpo as suas melhores vestes, ele vai cumprimentar o Marabu, tendo este ficado por alguns dias antes de se despedir. Teria sido durante aqueles dias que o Homem Grande teria informado ao Moló Egué da sua missão, relacionada com a necessidade da islamização das populações pagãos de Firdu e que passava, necessariamente, pela conquista do poder das mãos dos irredutiveis pagãos soninquês.

Moló Egué ouvindo atentamente a predicação e conselhos do velho sábio, defendia-se, educadamente, tanto quanto podia e sabia, que ele era um homem humilde sem meios e sem qualquer ambição de poder e ainda por cima de condição servil; que os mandingas estavam bem organizados e eram muito aguerridos etc. Todavia, não podendo fugir ao que lhe estava predestinado, o velho acabou por convencê-lo a desafiar o seu destino, dando-lhe todas as garantias que ele era a pessoa indicada para superar o desafio de combater e vencer os mandingas e acabar com os abusos a que, diariamente, eram sujeitos.

Para isso, seria preciso preparar-se seriamente, discretamente e sobretudo respeitar escrupulosamente as directivas que lhe iria dar, a saber : primeiro, matar alguns elefantes, totém dos mandingas e extrair das suas panças os orgãos vitais que serviriam para a confecção de mesinhas de protecção e de invulnerabilidade. De seguida seriam retirados e postos à venda os dentes dos elefantes para a compra de armas e pólvora que ele esconderia em lugar secreto. 

A segunda directiva consistia na criação de um carneiro ao qual ele daria uma poção mágica (nassi). Depois o Marabu diz-lhe « quando o Farim (chefe de provincia) mandinga vier tomar o teu carneiro para comer, sabes que chegou o dia e podes passar à acção com os teus homens sem hesitar ».

Após ter dado estes diferentes conselhos, o Marabu despediu-se. Moló Egué, bom conhecedor das pistas que atravessavam a floresta, acompanhou-o até a actual localidade de Dandum (perto de Bafatá), onde se separam. Aqui o Marabu o teria dito que aquele local seria o limite do seu reino, desde o rio Gâmbia, o que veio a acontecer. Desde então, Dandum será para o Alfa Moló, um lugar abençoado e, quando sentiu a proximidade da sua morte, escolheu aquele lugar para ser enterrado (o que, segundo Armando da Silva, teria acontecido entre finais de 1881 e principios de 1882, posto que em Julho de 1882 o seu irmão, Bacar Demba, se apresentou em Geba, na qualidade de monarca, para a assinatura de um novo tratado com as autoridades portuguesas).

As tradições orais normalmente são muito fecundas e algumas vezes contraditórias quando se trata de relatar a história da passagem do Marabu "Toucouleur", El-Hadj Omar, pelo território de Gabu. Todavia todos são concordantes relativamente aos três elementos considerados fundamentais : a recepção do Marabu por Cumba Udé, o Elefante e o Carneiro.

Em jeito de conclusão, Abdarahmane na sua tese, revela-nos que a narrativa desta passagem se articula à volta destes três elementos fundamentais que estão na base da história e a tornam mítica para não dizer legendária. Para Abdarahmane, a dimensão mítica deste encontro vai encontrar a sua verdadeira razão de ser no estatuto dos dois protagonistas da cena : O Marabu, impregnado de Islão e da mistica religiosa,  e o Caçador, detentor de conhecimentos místicos pré-islâmicos, em que, em vez de uma confrontação lógica, como seria de esperar, assistimos a uma convergência que, a hospitalidade concedida por uma mulher pobre e de classe mais baixa da sociedade, vai selar para sempre. 

Para além do símbolo mítico deste encontro inesperado e fortuito se profila o destino de um homem, de um povo e de um país inteiro. Assim, a passagem do predicador, El-hadj Omar, no Firdu vai acentuar a necessidade de se organizar as hostes, a fim de retirar o poder das mãos dos mandingas, acabando com a sua dominção secular.


(iv) A luta pela emancipação ou quando o escravo liberta o seu mestre.

Moló Egué (Alfa Moló) tinha seguido à risca todas as instruções que o Marabu "Toucouleur" lhe havia dado. Com efeito, ele criou um carneiro e seguiu as instruções recomendadas. A partir desse dia, Alfa Moló reuniu aqueles que estavam a sua volta como auxiliares e aprendizes do ofício da caça, convocou todos os homens grandes dentre os Fulbhê, para os informar que ele iria lutar contra os chefes mandingas cujas atitudes e abusos os causavam enormes prejuizos. 

Os grandes dentre os fulbhê consideraram a operação demasiado arriscada, na medida em que os combatentes da parte dos fulas ainda não estavam preparados e suficientemente aguerridos. Preocupados com as consequências desastrosas que dai poderiam advir em caso de derrota, muitos dentre os nobres recusaram participar na revolta contra os mandingas. Foi então que Alfa Molo proferiria a frase que entraria nos anais da historia épica de Fuladu, com a frase seguinte : « Máh-ôn mballi-kam fêlludê sébbhê; Máh-ôn mballi-kam dogdê ("Ou vocês me ajudam a combater os mandingas ou, então  ajudarão a fugir").

Quando viram que o Alfa Moló estava decidido a dar luta ao poder dos Soninquês, numerosos fulas dentre os chamados « nobres » fugiram para outras províncias distantes, enquanto que alguns deles, muito poucos, aceitaram o sacrifício do combate pela emancipação que se apresentava no horizonte. 

Segundo Abdarahmane, a guerra teria sido feita em duas fases distintas. O reino mandinga [do Gabu] enfraquecido pela desorganizaçao e sobretudo por querelas e dissenções internas, aliado ao disfuncionamento dos poderes central e provincial, não conseguia manter a sua unidade e força para se defender contra os ataques repetidos dos exércitos fulas. Este disfuncionamento dos dois poderes tinha conduzido à independência progressiva dos Farin-mansa (governadores de província) que continuavam a exercer um peso crescente sobre os seus súbditos.

A provincia de Firdu que parecia, por excelência, ser a dos fulas, não podia escapar a esta situação de crise generalizada. O chefe desta provincia, Mofa Djenu ou Karabuntim Sané para outros (Roche,  1985), com capital em Kansonco, semeava o terror nesta província do reino que era a mais distante e a mais rica de todas as outras, em virtude do elevado número de fulas nela radicados. 

Os fulas de Firdu eram prósperos, mas o seu gado e as suas colheitas eram objecto de assaltos permanentes da parte dos mandingas. Este facto levou a que, os fulas conduzidos por Alfa Mol atacassem Kansonco e destruissem a sua capital (Bercolon) defendido por guerreiros mandingas. Aproveitando esta situação de confusão  e com o apoio dos Almames de Futa-Djalon, em 1869 (Roche 1985), de Bundu e de combatentes "Toucouleurs" de Kabada, os fulas destruiram todos os cercados (tatas) mandingas. As províncias tombaram umas atrás das outras e com elas a dominação dos mandingas.

Uma das mais importantes consequências desta guerra seria a dispersão da população através do territorio "pacificado". Com efeito, a extensão do povoamento dos fulas foi feita após esta guerra. Confinados, no início, em zonas de pastagens, os fulas dispersam-se e reocupam as antigas aldeias mandingas, conservando, muitas vezes, o antigo topónimo (Bercolon, Cambaju, Mansajã, Canquelifa, Salquenhe, Contuba, etc. etc). E passaram a plantar arroz nas mesmas bolanhas que pouco tempo antes eram propriedade exclusiva dos seus suseranos mandingas.

 A partir deste momento assistimos a uma reconfiguração do território e a paulatina estabilização a favor dos fulas. O Firdu que era apenas uma provincia passou a ser um estado independente com a designação de Fuladu. Todavia seria de curta duração, pois este período coincide com a ofensiva « diplomática » de algumas potências europeias, nomeadamente Portugal e a França,  e a concorrência para a posse efectiva dos territórios da região.

Entretanto, no decorrer deste período agitado de recomposição política, económica e social, o Fuladu será atravessado  por clivagens sociais que deixam transparecer em filigrana o que serão, mais tarde, as relações, por um lado, entre os antigos senhores do território, os mandingas, que continuavam a tentar recuperar a sua hegemonia perdida, organizados em grupos de guerrilha no interior do mato,  e os fulas, na condição de novos detentores do poder ; por outro lado, entre os  «Jiáabhé» (antigos servos comummente chamados na literatura colonial de fulas-pretos) e  os «Rimbhé» (antigos senhores, chamados de fulas-forros).

Estas guerras, dissenções e clivagens sociais, ainda não estavam bem resolvidas quando as potências coloniais tomaram conta desses territórios, em finais do séc. XIX e princípios do séc. XX.  Os fulas, depois dos primeiros reencontros e reconhecendo a superioridade tecnológica e militar dos europeus, escolheram a estratégia das alianças em lugar de oferecer resistências condenadas ao fracasso. 

E, passados alguns anos, quando os nacionalistas iniciam a mobilização para a luta de libertação nacional no território da antiga Guiné-portuguesa, a percepção dos chefes tradicionais fulas, agudizada pela estratégia da administração portuguesa, é que era mais uma tentativa de recuperação do poder da parte dos seus arqui-inimigos mandingas, facto que não estava longe da verdade, porque se a elite dirigente [do PAIGC] era urbana e escolarizada, nas fileiras dos seus combatentes no mato, pelo menos no Norte, a maior parte eram mandingas, o que era inaceitável para as elites fulas.

A independência da Guiné-Bissau, concedida ao PAIGC por Portugal em 1974, foi um duro golpe sofrido pelos fulas, uma autêntica traição aos seus interesses estratégicos e de sobrevivência como grupo que, tudo somado, talvez preferissem continuar a guerra, em vez de capitular e entregar o país aos «bandidos » que, já era sabido, para além da retórica pseudo-revolucionária, a única coisa que sabiam fazer e bem, era oprimir e roubar o bem alheio. 
Numa das suas intervenções sobre as lutas contra a dominação e opressão social e económica das populações em África e referindo-se, provavelmente, a rebelião bem sucedida de Alfa e Mussa Moló Baldé, Amílcar Cabral dizia assim : «sempre que os africanos fizeram grandes lutas para acabar com a dominação dos outros, acabaram por se tornar, eles mesmos, ainda piores tiranos para os seus povos do que aqueles que tinham combatido no passado ». 

Sim, verdade, uma grande verdade, sobretudo se tivermos em conta o que representa hoje o brilhante legado do seu Partido no nosso pobre país, a Guiné-Bissau. (**)

Cherno Abdulai Baldé
Bissau
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Bibliografia:

Ngaidé Abdarahmane : Le royaume Peul du Fuladu, de 1867 a 1936 (L’Esclave, le Colon et le Marabout, 1997/98, Thèse de doctorat de troisième cycle en histoire, UCAD (Université Cheik Anta Diop, Faculté des Lettres et Science Humaines, Dakar, Sénégal.

Gloria Lex : Le Dialecte Peul du Fouladou (Casamance, Sénégal); Thèse de doctorat en Linguistique et Phonétique.

Mouhamadou Moustafa Sow, Professeur d’histoire, Lycée Régional de Kolda, Sénégal, Blogue Seneweb.
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 8 de julho de 2019 > Guiné 61/74 - P19956: Historiografia da presença portuguesa em África (164): Alfa Moló Baldé e o mito fundador do reino de Fuladu, em 1867 (Cherno Baldé) - Parte I

8 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Cherno, o poderoso e temível senhor da guerra, mandinga, dos meus primeiros tempos (julho / agosto de 1969) chamava-se Mamadu Indjai... Tem 23 referências no nosso blogue, imagina!... Também não é caso para menos: se não tivesse participado ma conjura que levou ao brutal assassínio de Amílcar Cabral, em 22 de janeiro de 1973. hoje ser celebrado na Guiné-Bissau como "herói da liberdade da Pátria" e teria nome de rua em Bissau... Recordo-me bem do "ódio tribal" que havia, nomeu tempo, entre fulas e mandingas... Na CCAÇ 12, só havia dois pobres... mandingas, contra uma centena de fulas e futa-fulas... (Não se fazia, felizmente, a distinção, humilhante, entre fulas-forros e fulas-pretos)...

https://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/search/label/Mamadu%20Indjai




https://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/search/label/Mamadu%20Indjai

Tabanca Grande Luís Graça disse...

1 DE MARÇO DE 2018
Guiné 61/74 - P18369: Manuscritos(s) (Luís Graça) (139): Um triste tuga entre três tristes fulas... Elegia para as vítimas da "justum bellum" do comandante Mamadu Indlai


Além de um poema, escrevi a seguinte nota:

(...) Muitos dos nossos camaradas nunca viram o rosto do IN, nem vivo nem morto... Durante a minha comissão, na CCAÇ 12 (1969/71), fizemos diversos prisioneiros, entre guerrilheiros e população civil... Mas o Mamadu Indjai, o Bobo Keita ou Mário Mendes, nunca lhes pus a vista em cima... Destes três, Mamadu Indjai foi fuzilado pelos seus antigos camaradas, Bobo Keita morreu de morte natural, em Lisboa, e Mário Mendes foi abatido pela minha antiga CCAÇ 12...

O nosso blogue tem feito luz sobre estes homens que nos combateram... Temos vindo a juntar as peças do puzzle... E sabemos hoje um pouco mais sobre quem foram estes homens que lutaram por um ideal, uma causa que consideravam justa ("justum bellum"), mas também espalharam a morte, o terror, a miséria e a dor no setor L1 ou setor 2 (para o PAIGC)... As populações civis foram as vítimas da violência, de parte a parte...

Durante anos Amílcar Cabral (e o seu partido, o PAIGC) foi glorificado e levado ao céu dos mitos... , foi para o olimpo dos deuses e dos heróis... Hoje voltamos à terra, e a realidade é muito mais "mesquinha", ou seja, "humana"...

A PIDE/DGS (e seguramente outras polícias secretas, desde a do Sekou Touré, às francesa, russa, sueca e outras) tinham os seus "olhos e ouvidos" no próprio seio do PAIGC... Não sei se Mamadu Indjai foi agente da PIDE/DGS, e se vendeu por 30 dinheiros como Judas, tal como sugere o historiador e nosso grã-tabanqueiro Leopoldo Amado...

Seja como for, mais de meio século depois, temos dificuldade em perceber como é que um homem inteligente e experiente como Amílcar Cabral (, mas também egocêntrico, vaidoso e ingénuo, como outro líderes revolucionários) se "deixou cair na armadilha" que o levou à morte: ao que parece, toda a gente sabia, menos ele, da traição que se estava a preparar debaixo da sua janela...

O que leva um "herói da liberdade da Pátria", como Mamadu Indjai, a tornar-se um "vilão" e um miserável "traidor"? Bom, isso é outra história... Infelizmente, a história está cheia de vilões e traidores...

Temos 21 referências no blogue sobre este homem... que pôs o lado meridional do chão fula a ferro e fogo nos primeiros meses da época das chuvas de 1969." (...)

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Temos de ter cuidado com o que escrevemos, e sobretudo com as generalizações abusivas: Dizer que todas as guerras de "libertação" acabam em regimes de "opressão", é simplista e redutor... Temos que nos socorrer da História: houve "revoluções" que deram origem a "Estados de direito"... Infelizmente, os "bons" exemplos perecem restringir-se a uma parte do Hemisfério Norte, a começar pelos EUA (que se livraram de uma sangrenta cruel guerra civil, em 1861-1865, com mais de um milhão e meio de mortos, entre civos e militares), sem falar do "genocídio" dos povos indígenas norte-americanos...

No caso da Guiné-Bissau, o PAIGC não quis (ou não conseguiu) sair de cena... E Portugal, a braços com a "revolução dos Cravos", lavou as mãos como Pilatos... Portugal "saiu de cena", como lhe convinha...

Povo "ciclotímico", nós, os portugueses, ainda não saímos da "grande depressão" que foi o fim da guerra colonial...(que nunca devia ter acontecido, porque perdemos todos, a começar pela Guiné-Bissau, Angola, Moçambique, Cabo-Verde, São Tomé e Príncipe, Timor: era possível outra "saída de cena" da última potência imperial da Europa)... A guerra colonial nunca deveria ter acontecido, o 25 de Abril nunca deveria ter acontecido... Mas, pensando bem, a Nação mais antiga da Europa (dizem...) não terá tido mais de 100 anos de liberdade em 800 anos de existência, desde a revolução liberal de 1820... A Guiné-Bissau vai já em mais de 40 anos de existência, ainda não conseguiu construir um Estado de direito, nem sequer um Estado... E isso dói-nos, a todos os verdadeiros amigos do povo guineense, seja eles descendentes de fulas, mandingas ou povos ribeirinhos como os balantas...

Anónimo disse...

Caro amigo Cherno Baldé,
Agradeço vivamente mais estes dois interessantes e ilucidativos textos com curiosos detalhes.
A capital da província do Firdu – Kansancó – citada no texto, não é a povoação Gam Sancó que surge em várias antigas cartas portuguesas e a que me referi no meu Post n 18172 de 4-1-2018?
E já agora lembro o meu derradeiro comentário ao seu post nº 19919 de 25-6-2019 que ficou sem resposta, e que a seguir trancrevo.
Caro amigo Cherno Baldé,
Muito obrigado por mais um interessante texto – e curiosa história!
O tratado de Alfá Moló com as autoridades portuguesas é de 21 de Dezembro de 1880, portanto mesmo no fim desse ano. O tratado com seu irmão Dembel, que se apresentou em Geba declarando que seu irmão Moló havia falecido e que também ele desejava assinar com o governo português um tratado de amizade é de 30 de Julho de 1882. Foi entre estas duas datas que Alfá Moló faleceu, e eu diria que possivelmente em finais de 1881 ou primeiros meses de 1882. E como Dandum fica muito perto de Geba, não seria mesmo a seguir a Moló ser sepultado, que Dembel se apresenta em Geba?
Pode o Cherno dizer-nos alguma coisa sobre as dificuldades que os fulas-pretos tiveram em submeter o Oio, habitado pelos mandingas soninqueses – o que nunca terão conseguido – e que levaram à ideia de que este era “invencível”, com eventuais repercussões no conflito travado anos 60-70 do século passado?
Abraço amigo,
Armando Tavares da Silva

Abilio Duarte disse...

Caro Cherno,
Gosto imenso das suas crónicas. O relato da chegada dos Fulas e dos Mandigas, ao Gabú, é de historiador, e me espanta, como, hoje consegues tanta informação e documentação, sobre o que se passou há mais de um século.

Para mim, tudo isso não é novo, mas é mais completo e esclarecedor.

Quando estávamos em Paúnca, (C.Art.11), tínhamos uma radio " Rádio LACRAU", onde eu, o Valdemar, apoiado pelo Transm. Silva, produzíamos uma emissão, para ser ouvida nos abrigos e valas.

Nessas emissões, além da música, que era minha, discos e cassetes, havia sempre um soldado Fula, que contava, muitas histórias, semelhantes, aos teus relatos, e através da quais, tomamos conhecimentos das guerras, entre os Fulas e o Mandingas. O narrador contava a história em Fula,Crioulo e depois em aportuguesado.

Era uma maneira de manter o pessoal acordado, e garanto que tinha bastante audiência.

Pois chegou-nos ao conhecimento, que na tabanca, muita gente houvia o nosso programa.

Saudades, da terra vermelha. Abraço

Abílio Duarte

Cherno Baldé disse...

Caro amigo Armando da Silva,

Nao tinha respondido até agora, porque no fundo nao me parecia relevante, mas porque insistes tanto vou dar o meu ponto de vista com base naquilo que penso saber e, também, posso specular um pouco.

Soninqués invenciveis????... Tinham alternativas???...Seguir para onde???...

Na Guiné, todos os grupos etnicos consideram-se "invenciveis", a começar nos Papeis (de Bissau???), os Felupes, Djolas e Biafadas. E o que dizer dos Balantas, cuja designaçao corrente, actualmente, foi transformada em "Invictos" !!!??? Sera assim mesmo???

Para mim, estes epitetos so servem para alimentar o "Ego" destes grupos e mais nada. Nao ha nem houve no passado nenhum grupo que fosse invencivel de forma absoluta, penso eu.

Vejamos:

Os mandingas, reza a historia, quando chegaram nesta regiao submeteram todos que encontraram no seu caminho, assimilando/integrando outros e empurrando para a costa aqueles que conseguiram fugir e afastar-se para zonas, até la, inabitaveis e construiu o primeiro estado conhecido desta regiao da Africa. Os Farins mandingas e sua aristocracia foram, mais tarde, derrotados pela Confederaçao Islamica de Gabu que juntou fulas de Gabu (Fulacundas), Futa-Torancas, Futa-Fulas e mandingas muçulmanos (Morcundas). E, foram estas guerras que empurraram alguns restos de Soninqués para a regiao de Oio, onde se juntaram a outros grupos que ja la estavam, seja, Balantas, Biafadas e alguns fulas pastores, avidos de Liberdade e independencia e aversos a religiao islamica e seus principios de sujeiçao as leis da charia que nao compreendiam. Muitas localidades tomaram designaçoes (toponimos) que ja existiam no Leste/Nordeste da Guiné.

Por outro lado, as potencias europeias ja estavam no terreno quando se iniciou a Guerra para desalojar os Soninqués do poder e estes (europeus) tinham a sua visao, estrategia, interesses e meios completamente diferentes dos "indigenas" a que se propunham controlar, para o bem do comercio e civilizar dentro dos canones europeus e cristaos. E quantas vezes estas estrategias nao passavam por manipular e agudizar as contradiçoes e clivagens existentes entre nativos???

Sabes quantas vezes o Alfa e Mussa Molo, que tinham um tratado de amizade e de protecçao com as autoridades portuguesas, pediram aos administradores de Farim e Geba, para permitir aos seus exercitos atravessar o rio Farim para combater os Oincas no seu reduto??? Estes pedidos eram aceites??? NAO, nunca foram aceites (ver livro de pelissier sobre a Senegambia). Porqué??? Porque nao eram do interesse de Portugal, que nao viam com bons olhos a penetraçao de Mussa Molo no territorio da Guiné (a partir de 1886), por desconfiarem, com ou sem razao, que ele trabalhava para os Franceses.

Sabes quem matou o Mamadu Guidali (chefe Fula e régulo de Gabu e Forrea) em Buba em meados de 1881/83 e porqué???? Foi por ordem da administraçao portuguesa, porque ele nao obedecia, convenientemenete, as ordens da administraçao portuguesa e, também, porque a politica do momento passava por proteger os Biafadas contra a dominaçao dos fulas que eram numerosos pela extensao e cujo poder era mal visto e podia contrariar os interesses de Portugal na regiao.

Em resumo, o Oio é uma extensa regiao constituida de floresta densa dificil de penetrar. Tradicionalmente nao era uma regiao soninqué, mas sim Banhum, Biafada e Balanta (Brassa). Os soninqués chegaram na segunda metade do sec. XIX, derrotados e corridos em Gabu. Durante a fase de ocupaçao colonial, foram protegidos pela administraçao portuguesa que, ela mesma, nunca tinha conseguido conquistar e dominar, antes da campanha de Teixeira Pinto em 1912/15. Na Guiné, todas as etnias se consideravam "invenciveis", porque, Segundo R. Pelissier, a administraçao portuguesa, embora constituida por homens corajosos, da raça dos Marques Geraldes e Graça Falcao, nunca tinha os meios necessarios e capazes para se impor junto de "povos indigenas" muito belicosos.

Com um abraço amigo,

Cherno Baldé



Valdemar Silva disse...

Viva Duarte.
Já me esquecia que da nossa CART11, em Paunca, era emitida a 'Rádio Lacrau'.
Grande programa de Rádio com os teus discos de musica anglo-americana e os de Zeca Afonso, Fanhais, Freire e Adriano, do saudoso Aurélio Duarte.
Realmente, havia várias rubricas de histórias dos nossos soldados fulas e as inesquecíveis 'Aventuras do Velho Lacrau' do 2º. Sarg. Almeida.
Parece que a nossa CART11 e, depois, quem nos seguiu CCAÇ11, fez história na população de Paunca ao ponto de ainda hoje haver uma equipa de futebol local chamada 'Os Lacraus de Paunca'.
O Cherno Baldé é simplesmente uma Enciclopédia Viva que temos a sorte de poder consultar sobre qualquer assunto da Guiné.
Abraço e saúde da boa
Valdemar Queiroz

p.s. É pena o nosso ex-fur.mil. Silva (Transmissões), realizador e produtor da 'Rádio Lacrau' não fazer parte do nosso blogue, para nos contar muito sobre os programas.

Manuel Luís Lomba disse...

Caro Cherno Baldé
Venho apresentar-te a minha rendição à genuinidade da tua história da tua Guiné, que não deixou de ser nossa, de coração.
Abr.
Manuel Luís Lomba