sexta-feira, 12 de julho de 2019

Guiné 61/74 - P19972: Notas de leitura (1197): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (14) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 25 de Março de 2019:

Queridos amigos,
Santos Andrade nunca escondeu que não procurava fazer poesia mas simplesmente narrar ou fazer crónica. Estou a tomá-lo a sério, em breve a história do BCAV 490, que o nosso confrade Carlos Silva tão amavelmente me emprestou, virá à baila, será companhia até final do relato.
Na batalha do Como serão convocados Armor Pires Mota e Alpoim Calvão, temos textos de altíssima qualidade. Por essa altura, se acaso este modo de abordar as coisas for aliciante para a nossa sala de conversa, já muita gente entrou em cena, com depoimentos, fotografias, comentários alusivos à crónica do nosso bardo. Oxalá que assim seja, tanto pelo dever de memória como pelo vigor da recordação dos vivos, que aqui estamos a homenagear.

Um abraço do
Mário


Missão cumprida… e a que vamos cumprindo (14)

Beja Santos

“A missão continuou
sofrendo-se grande emboscada.
A Companhia do Ventura
foi muitas vezes atacada.

A 3.ª Companhia
à meia-noite saiu
e de manhã cedo se viu
um bando cheio de rebeldia.
O Moita fogo fazia
e um terrorista tombou
uma arma lhe apanhou
e os enfermeiros dele trataram
e como prisioneiro o levaram.
A missão continuou.

Por um carreiro tudo caminhava
e chegou-se a uma povoação
que só tinha habitação
quando a noite chegava.
De dia só quem lá estava
era uma velha de pele enrugada.
Foi por nós interrogada,
mas pouco descobriu,
e para a mata connosco seguiu,
sofrendo-se grande emboscada.

Na mata o ataque se deu
às 3 horas do dia.
Houve 11 feridos na Cavalaria,
incluindo o que morreu.
O Joaquim da Costa muito sofreu
precisamente nesta altura.
Também sofreu muita amargura
o amigo José Revez
pois atacada em Morés
a Companhia do Ventura.

Não tinham água para beber
e já havia poucas munições.
Por intermédio das transmissões
veio a avioneta abastecer
onde trouxe também comer
porque não tínhamos nada.
Uma coisa tão amargurada
não esperavam de passar.
E a 489 com azar
foi muitas vezes atacada.”

********************

O bardo não esconde as agruras da vida operacional, ora encetada, o Morés era o osso mais duro de roer. E viaja a recordação para outro livro de Cristóvão de Aguiar, de nome “Ciclone de Setembro”, com primeira edição em dezembro de 1985, três partes com títulos saborosos: "Terra de Ventos"; "Os Ventos da Guerra" e "O Futuro de Ventos". Obra da qual mais tarde o escritor açoriano irá buscar o barro para o livro “Braço Tatuado”.
Logo um texto de enorme ferocidade, tem a ver com o drama de um guia prisioneiro:
“O prisioneiro está sentado num abatis. Continua algemado e assim ficará para todo o sempre. Guarda-o o soldado Capitão Castelar. Segura-lhe a ponta da corda amarrada à cintura. Daqui a pouco vai morrer. A este nem lhe dão tempo sequer de regressar ao aquartelamento.
O furriel enfermeiro, criatura a quem a guerra apurou os sentimentos humanitários, e outros, lembrou-se de ir dar de comer ao guia algemado. Leva-lhe o comer à boca. Tem a ração de combate aberta sobre um corpo decepado. Volta-se, tira uma garfada de atum, corta um pedacito de bolacha, e deposita tudo na boca do prisioneiro. À ilharga do indígena, o soldado-sentinela não está gostando da brincadeira. Nota-se-lhe o enfado na cara. E a revolta. Sempre que o enfermeiro se volta para se fornecer de alimento, aproveita o soldado a ocasião para calcar os pés do indígena com as botifarras, às vezes com a coronha da G3. Da boca do guia nem um ai se ouve, sorri apenas.
Vejo a cena, vou-me aproximando. Continua o soldado, mesmo verificado que o encaro com acinte e raiva, pisando os pés do prisioneiro. Estão já em sangue. O furriel, embebido no que está fazendo, não dá por nada. Ao abeirar-me da sentinela, não em contenho e dou-lhe uma funda bofetada. Tenta ripostar-me. Não lhe dou tempo e prego-lhe outra ainda mais rija e ameaço-o com a Parabellum: Se continuas a fazer tal filhadaputice, ponho-te em sangue, meu cabrão nojento.
Ele nem tentou reagir, mas disse-me: O meu alferes é tão turra como ele, se não o fosse, não me tinha batido, ameaçado com a Parabellum e escarrado na cara; é por causa deles e de outros como ele que andamos neste martírio; o meu alferes vai-me pagar”.

É nestas andanças que o horror muda de figura, aqueles militares ficam horrorizados com a tragédia que houve na frente da coluna:
“De súbito, um forte estrondo na direcção em que seguiram as duas viaturas. O nosso Capitão Farias fica lívido e ordena-me: Ó Mendonça, siga você com o seu grupo de combate nas respectivas viaturas e veja-me o que sucedeu. Arranco com o meu pelotão, vamos todos sem pinga de sangue, em silêncio. Nunca mais se escutou qualquer outro rebentamento nem tiroteio de resposta. Os Unimogs voam aos solavancos pela picada adiante. Ao longe, muito ao longe, principiamos a divisar as duas viaturas. Estão imobilizadas. Cada vez nos vamos aproximando mais. Alguns soldados descem dos Unimogs em andamento. Querem, à fina força, ser os primeiros a chegar ao pé das outras viaturas para darem a notícia. E ela vem de imediato: Meu alferes, estão todos mortos na primeira viatura; na segunda não há ninguém, nem rasto de sangue, foram, com toda a certeza, todos apanhados à unha e levados pelos turras.
Tenho a bússola dos sentidos desorientada. Não sei para que lado me hei-de virar. Os mortos já não precisam de auxílio, estão como hão-de ir. O pior são os outros, os da viatura rebocada. Será que fugiram? Será que foram feitos prisioneiros? Os pensamentos atravessam-me a cabeça em farrapos.
Todo eu sou aliás um farrapo. Chega o capitão com o resto da coluna. Vem pálido mas aprumado. Desce do jipão e vai de imediato espreitar os estragos. Após curta vistoria, vira-se para mim e ordena: Alferes Mendonça, nomeie meia dúzia de voluntários para ir para dentro da viatura dos mortos; quero os cadáveres alinhados no estrado da carroçaria. 
Chegámos a Piche à boca da noite. Os outros dez já lá estavam há muito. Fizeram cerca de vinte quilómetros em pouco mais de hora e meia. Alguns iam feridos com estilhaços das granadas que os guerrilheiros lançaram para dentro da primeira viatura. O Pombal, soldado condutor da segunda viatura, foi o primeiro a lá chegar. Ao entrar dentro do arame farpado que rodeava o aquartelamento de Piche, caiu redondo no meio do chão. E só deu acordo de si muito depois de termos lá chegado”.

É a hora da despedida de Cristóvão de Aguiar, com outra recordação deste mesmo livro, uma consideração bem difundida sobre as atribuídas valentias do soldado português, sabemos bem o porquê de tal exaltação, uma forma de anfetamina que procurava resultados, e que alguns deu:
“Em campanha, disse-me um dia o segundo-comandante do Batalhão, o nosso soldado é o melhor do mundo. Desde que tenha vinho e correio, nenhuma chatice entra com ele. Veja, nosso alferes, quem são as pessoas que se abalam por problemas psicológicos e têm, na sua maioria, de ser evacuados para a psiquiatria: alguns furriéis milicianos e uma chusma de oficiais do quadro complementar, sobretudo os provenientes das universidades, abarrotados de filosofices políticas e antipatrióticas. O mesmo já não acontece, por exemplo, aos graduados vindos da Academia e dos seminários. Esses são compenetrados de dever e resignação, habituados à dureza e à disciplina da vida, formados no amor à Pátria. Mas é no nosso soldado, bronco e simples, que se encontra o nosso melhor material humano e logístico. Vê na tropa um súbito céu de fartura. Por isso, nosso alferes, nunca viu nenhum soldadinho sofrendo da caixa dos pirolitos. Logo que se lhe dê vinho, rancho e correio a tempo e horas, nada o derrubará”.

O bardo fez recruta e especialidade, que formou Batalhão e rumou para a Guiné, conta as horas difíceis vividas em Bissorã e nos arredores, afinal há temíveis emboscadas, mas nada comparado com o que dentro de alguns meses irá ficar conhecido pelo nome da Batalha do Como.

(continua)
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Nota do editor

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Último poste da série de 11 de julho de 2019 > Guiné 61/74 - P19969: Notas de leitura (1196): "SE SENTES NÃO HESITES", por Manuel Clemente; alma dos livros, 2019 (Mário Migueis da Silva)

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