sábado, 29 de junho de 2019

Guiné 61/74 - P19930: Memórias de Gabú (José Saúde) (84): Rapaz franzino, de reposta fácil e acertada. O Dias e sua rebeldia. (José Saúde)

1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem da sua série. 

Memórias de Gabu


Rapaz franzino, de reposta fácil e acertada

O Dias e sua rebeldia

Natural de Setúbal, uma cidade que se espraia nas maravilhosas águas do rio Sado, o furriel miliciano Dias assumia o dom de um peculiar militar essencialmente altivo. Estava-lhe, quiçá, na massa do sangue. A sua singularidade na guerra apresentava-se consubstanciada à exemplar rebeldia, não obstante tratar-se de um escriturário que procurava cumprir a missão que lhe tinha sido dada. As esferográficas não lhe davam dificuldades de maior e nunca se familiarizou com as G3.

A sua estatura física era algo débil. Franzino, de resposta fácil e acertada, o Dias não dava tréguas ao mais arrojado camarada. O protesto surgia naturalmente. Era, pressuponha-se, um eterno insatisfeito e não lidava nada bem com a hierarquia militar, isto de entre outros contratempos que a missão na guerra obrigava.

Muitas foram as vezes que se sentava à mesa, para almoçar ou jantar, sem proferir uma única palavra. Havia ocasiões que chegava com frases escritas num cartaz em cartão, outras  vezes numa folha “A4”, e colocava esse panfleto à frente do prato da refeição. “Temos protesto”, comentava a malta. 

O conteúdo desses ditos resvalavam, na generalidade, para o campo da protestação. Murmúrios silenciosos que eram tão-só revoltas que lhe iam na alma. Recusava uma pequena observação de camaradas com os quais vivia quotidianamente. Remetia-se, por vezes, a um profundo silêncio.

Nós, despertos para os dizeres da sua linguagem escrita nos ditos folhetos, muitas vezes nos interrogávamos da razão dos insubmissos desabafos. Aliás, desconfiávamos que se tratava de alguém que estava ligada à política, ou que por lá tivesse militado mas na clandestinidade. Tanto mais que o Estado Novo mostrava-se austero e sempre atento a movimentações entendidas como subversivas. Por isso, nada de avançar com conjeturas eminentemente arriscadas.

Todavia, o Dias jamais deu a entender qualquer manifestação política que porventura o pudesse comprometer. Ainda assim, a dúvida persistia entre os camaradas. Aliás, o silêncio do nosso amigo era de ouro. Se preparado, ou não, para um possível confronto de ideias, embora a índole fosse diversa, não o soubemos enquanto a guerra permaneceu.

Lembro-me as indiretas para os sargentos, homens com uma ou mais comissões no conflito africano. Creio, não sustentado o discurso como certeza absoluta, que a revolta teria outros contornos. Houve ocasiões em que o Dias manifestamente surgia com um cartaz em branco. Porquê? Só ele o saberia! Nós, não.

De entre os muitos momentos em que o rapaz setubalense não estava virado para “curtir” diálogos com os camaradas, lembro-me das ocasiões em que se predisponha a uma jogatana de futebol, mas pouco ou nada comentava sobre a sua presença na equipa, ou o evoluir da peladinha.

Conhecedores do seu “malvado” feitio, a malta escancarava-lhes as portas e lá fazia parte da equipa dos furriéis. Não jogando absolutamente nada, a sua entrega ao jogo era delirante e o seu correr atrás da bola deixava a rapaziada desvairada de alegria face aos seus pequenos desabafos. Ah, era bom no ping-pong. Raramente perdia uma partida. 

Com umas pernas de “alicate” e de correria desengonçada, as suas fintas com a bola eram enquadradas com a sua própria maneira de ser. O Dias era, de facto, uma personalidade ímpar no interior do aquartelamento.

Após a Revolução de Abril, já em clima de paz, soubemos que ele e o furriel enfermeiro Navas, encetaram algumas visitas a sítios onde o PAIGC se havia instalado. Claro que de pronto deduzimos o significado da efetiva razão das suas manifestações essencialmente silenciosas.

Afinal o Dias era um elemento informado, embora num conceito básico à época, sobre o móbil da luta armada e os princípios pelos quais os movimentos de libertação lutavam num território por eles reclamado.

Soube, em tempos, que o nosso camarada Dias permanecia em Setúbal, sua terra natal, sendo que até aos dias de hoje jamais me cruzei com uma individualidade que me deixou saudades, tendo em conta a sua filosofia de vida por terras de Gabu, Guiné-Bissau.  



Um abraço, camaradas 
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523

Mini-guião de colecção particular: © Carlos Coutinho (2011). Direitos reservados.

2 comentários:

Valdemar Silva disse...

Zé Saúde
Esta é das boas:
'O conteúdo desses ditos resvalavam, na generalidade, para o campo da protestação'
(em linguagem corrente 'isto é uma merda', mas os alentejanos não gostam de dizer asneiras a não ser 'ministro dum cabrão')
Coitado do Dias, já que não tinha jeito pra jogar à bola, restava-lhe jogar à protestação.

Abraço e saúde da boa.
Valdemar Queiroz

Hélder Valério disse...

Caro Zé Saúde
Tenho comentado muito pouco (quase nada) do que nos tens presenteado com as tuas "memórias do Gabú" onde traças, entre outras coisas, as características de personagens interessantes que se foram cruzando contigo e/ou acompanhando o teu percurso, mas acredita que as acompanho e leio.
Desta vez atrevo-me a comentar pois referes um teu camarada que é e parece que ainda vive em Setúbal, onde também vivo há 44 anos e alguns meses.
Se me quiseres dar mais algumas indicações sobre esse tal Dias pode ser que consiga descobrir algumas pistas.
Pelo que descreves, parece-me mais um "revoltado" do que um "revolucionário", enquadrado em qualquer disciplina político/partidária, mas tudo será possível.
Abraço
Hélder Sousa