1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Abril de 2023:
Queridos amigos,
Não posso esconder que Mindelo me encheu as medidas, encontrei por toda a parte sinais de profundo respeito pelo passado como se tal passado fosse uma constante da identidade cabo-verdiana, um espaço singular entre a Europa e o continente africano. É num curto espaço de décadas que Mindelo tem o seu ápice, de tal modo vertiginoso que as autoridades de Lisboa abriram os cordões à bolsa para que a povoação impressionasse quem andava naquelas viagens transoceânicas, sente-se que aos poucos o casco histórico vai sendo recuperado, tem havido imensa cooperação estrangeira e a União Europeia não regateia colaborar, os dinheiros são efetivamente aplicados em termos de ranking Cabo Verde tem pouquíssima corrupção, Dá gosto ver estas praças em permanente reabilitação e transformação, Mindelo, sente-se à vista desarmada, quer competir com a Praia ser um farol cultural. Vim apetrechado de leituras, foi um prazer rever Germano Almeida e o seu O Testamento do Sr. Napumoceno da Silva Araújo, tudo se passa no Mindelo, e ao serão lia também João Lopes Filho, surpreendeu-me que ainda se pratica o fabrico do mel e do grogue recorrendo ao trapiche, mal sabia eu que dias depois, já em Santo Antão, irei ouvir o trapiche a funcionar e ver passar os carros com a cana do açúcar, que espetáculo.
Um abraço do
Mário
Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (104):
Com sangue d’África, com ossos d’Europa (3)
Mário Beja Santos
Era tal o interesse em conhecer mais e melhor este povo euroafricano que meti na sacola dos livros para a viagem obras de António Carreira, João Lopes Filho e considerei que era obrigatório rever o Mindelo através da lupa de Germano Almeida e uma das suas obras-primas, "O Testamento do Sr. Napumoceno da Silva Araújo", foi muitíssimo bom revê-lo, veja-se logo o arranque deste empolgante romance: “A leitura do testamento cerrado do Sr. Napumoceno da Silva Araújo consumiu-me a tarde inteira. Ao chegar 150.ª página o notário confessava-se já cansado e interrompeu mesmo para pedir que lhe levassem um copo de água. E enquanto bebia pequenos golinhos, desabafou que de facto o falecido, pensando que fazia um testamento, escrevera antes um livro de memórias.” É uma arquitetura espantosa a deste romance, a matéria do testamento parece registada a diferentes vozes, é uma sala de espelhos que permite a surpresa do insólito, todos aqueles que vão interferir no testamento acompanham com a vista desorbitada o mais desconhecido que o Sr. Napumoceno escondera de tudo e todos. E Germano Almeida não se acanha à crítica contundente, chegara a independência de Cabo Verde, “ele Napumoceno estava assistindo à debandada de convictos e influentes membros da União Nacional para as forças do PAIGC e ficava especialmente confuso ao ver os homens que gritavam ontem que Portugal é um todo do Minho a Timor gritarem hoje com mais força ainda que a independência é um direito dos povos, não ao referendo, não à federação, não a outros partidos, só PAIGC é força, luz e guia do nosso povo.” Ah, ainda voltaremos a este primoroso Germano Almeida, calcorreia-se Mindelo, como se disse a pé, em transporte público urbano e percorre-se S. Vicente no coletivo.
O que surpreende o visitante e que as marcas mais evidentes vêm do século XIX, quando este porto era um privilégio em viagens interoceânicas. Parece certo e seguro que não andaram aqui pela primeira vez nem Cadamosto, nem António de Noli nem Diogo Gomes, foram direitos a Santiago, Fogo e S. Nicolau, Noli até foi contemplado com a capitania da Ribeira Grande, S. Vicente parece que desabrochou no século XIX, longa foi a hibernação. Mas andando a observar pelas ruas dá para perceber como estamos num mundo completamente ímpar de mobilidade social, de uma plástica mestiçagem que saiu da sociedade escravocrata, de um povo que teve bispo no século XVI, colégios, contactos entre instruídos e letrados, a ponto de todos os estudiosos concordarem que na história de Cabo Verde as classes não são categorias fechadas, assiste-lhes a mobilidade vertical. A expressão “gente branco”, tão corriqueira aqui, não significa etnia branca, mas gente que ocupa bons lugares na escala social, como Baltasar Lopes tão pertinentemente observou. Vamos percorrer as ruas, pois então.
Tinha uma ideia de que já vira homens a jogar assim, alguém me disse que o nome do jogo é ourico, fui logo consultar o dr. Google, afinal o jogo chama-se ouri, como se pode ler: “o Ouri pertence a uma família de jogos de tabuleiro designados por Mancala. Hoje, joga-se o Mancala em quase todas as regiões africanas. O nome varia de país para país e até de tribo para tribo, com algumas variantes, embora as regras, no essencial, sejam as mesmas. Há regiões africanas onde se jogam variantes em tabuleiros com vários buracos e sementes em número proporcional aos buracos. Para Cabo Verde, foi levado pelos povos da Costa da Guiné, que foram povoar o arquipélago no século XV. Os nomes de Oril, Uril, Ori, Oro, Ouri ou Urim, entre outros, coincidem com a especificidade de cada ilha, de Cabo Verde.” Deve ser um jogo apaixonante, encontrei muita gente na rua neste entretenimento, e sempre com observadores à volta.
Importa explicar o que me entusiasma nestas casas de sobrado, virão do tempo da Mindelo próspera, uma imensidade de embarcações a chegar e a partir, o imperativo de haver um comércio desafogado. Como já percorri o Bissau Velho a desmoronar-se, mal pavimentado e certamente com saneamento relaxado, olho para estas casas bem intervencionadas e sinto-me feliz por ver que a identidade deste país não despedaçou a vastidão da memória.
São os Paços do Concelho, como se disse anteriormente, com a hora da prosperidade fez-se palácio para o governador, honroso edifício para a municipalidade, alfândega, capitania dos portos, habitação para a nova administração, dá gosto ver estas passas e estes edifícios projetados para o mar, até se respeitou no restauro a coroa régia. Há países assim, a mostrar orgulhosamente que a sua entidade cultural, a sua fisionomia própria, vem de muitos séculos atrás.
Nova surpresa, já vi e irei ver mais praias de areia enegrecida e calhaus rolados, aqui e em Santo Antão. E chega-se a este extremo de tão preciosa baía no Mindelo e temos esta vastidão de areia com águas de azul-turquesa, ali perto anda um guindaste a fazer mais hotéis, podem-me dizer que praias assim há em muitos sítios, seja, mas na minha curta viagem não voltarei a ver espaço tão aprazível, maldita a hora em que decidi não trazer fato de banho.
Uma vista do Mindelo tendo no centro o espaço de mercado, tirei a fotografia enquanto me passeava novamente na réplica da Torre de Belém, o que mais me chamou à atenção foi a imensidade de casario que se vai erguendo até àquelas colinas vulcânicas.
Da réplica da Torre de Belém já se falou, mas fascinou-me este ângulo e o contraste que provoca olhar ao fundo para a solidez das montanhas vulcânicas tendo no meio um espaço que se reorganiza, pois S. Vicente é cada vez mais um destino turístico de eleição.
Permita-me o leitor o contraste das imagens da manhã e do entardecer, o Monte Cara sempre ao fundo, pelas cercanias deste porto andei horas a fio a tentar entender a atração que provocou até Dacar e as Canárias terem ganho no jogo da concorrência. É belo porque gera ilusões aos olhos, há momentos em que parece que estamos a ver outras ilhas quando é sempre a mesma, curvando e recurvando-se, abrindo-se em enseadas. Não será por acaso que uma das atrações turísticas é andar por aqui às voltas de barco até se ter a visão de que é sempre a mesma baía.
Há na Praça Estrela um conjunto de grupos azulejares, uma oferta que veio do Porto, mostra-nos cenas do quotidiano mindelense, nada danificado nem conspurcado, tenho muito orgulho no que estou a ver, o nosso país é a maior potência mundial em azulejo, é bom que se partilhe por quem abraça a lusofonia.
Sim, há outras coisas para dizer sobre S. Vicente, onde há momentos em que parece que me sinto num Portugal longínquo, mesmo quando ali perto oiço conversas naquele ritmo vertiginoso do crioulo. Para ser franco, tirei este registo numa praia que visitei em agosto de 1970, chama-se Salamansa, era ao tempo uma vilória de pescadores, cresceu muito, alguém me explicou que sobretudo os cabo-verdianos emigrantes nos Países Baixos investem neste sítio que é bem aprazível. Eu estava a despedir-me do dia e a agradecer a quem me pôs neste mundo a excelência que esta luz me oferece.
(continua)
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Nota do editor
Último poste da série de 20 DE MAIO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24329: Os nossos seres, saberes e lazeres (573): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (103): Com sangue d’África, com ossos d’Europa (2) (Mário Beja Santos)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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3 comentários:
Já agora, um texto meu, sobre o Mindelo. Cabo Verde, Janeiro de 2020:
Mindelo, ilha de São Vicente, Cabo Verde, 14 de Janeiro de 2020
Já escrevi, a propósito de Barcelona, sobre a importância das penfriends espalhadas pelos quatro cantos do mundo, objecto de frequente correspondência. Aos 18 anos mantinha regular ligação por carta com raparigas de Lillihammer, na Noruega, de Hamburgo, na Alemanha, de Nancy, em França, de Blackpool, em Inglaterra e do Mindelo, em Cabo Verde. A moça cabo-verdiana, exactamente da minha idade, divertida e inteligente, era uma das mais assíduas no epistolário. Escrevia-me longas cartas sobre os amigos, o liceu, as nossas vidas. Falava-me destas ilhas de Cabo Verde, de onde jamais saíra, das praias, dos vulcões, da falta de água, do quotidiano difícil destas gentes. Viria a descobrir muitos anos mais tarde, para minha surpresa, que as cartas por mim enviadas ou provenientes de São Vicente, eram, na altura, abertas, lidas e copiadas por diligentes agentes da PIDE. As missivas, quase sempre ingénuas e inócuas, constam do meu processo individual organizado pela PIDE/DGS, a polícia política do regime de Salazar e Marcelo Caetano. Em 1968, 69 e 70, nos meus primeiros anos de Faculdade de Letras, em Lisboa, eu transformara-me num "perigoso esquerdista". Pertencia ao Grupo de Poesia e Canção da Faculdade, com o Zé Barreiros, a Ana Faria, o Miguel Serras Pereira, a Rita Salgado. Era o tempo dos baladeiros, da música e poesia de protesto. Fazíamos muitas vezes a primeira parte dos espectáculos com o José Jorge Letria, o Francisco Fanhais, o José Barata Moura, o Zeca Afonso, eu dizia poemas de Sophia, Manuel Alegre e António Gedeão, tudo isto em colectividades de Lisboa e arredores, sobretudo margem sul, como Almada, Barreiro e Baixa da Banheira onde o padre era o Fanhais. A PIDE andava no nosso encalço e tais actividades "revolucionárias", no que me diz respeito, acabariam por uma incorporação prematura no exército, no Curso de Oficiais Milicianos, em Mafra e depois, como alferes, no envio para um Comando de Operações no norte, centro e sul de uma Guiné em sangue, 1972/74. Mas isso são outras histórias, já contadas.
Fátima Feijóo, a menina do Mindelo, Cabo Verde, acabou por vir para Portugal estudar na Universidade de Coimbra. Arranjou namorado, teve um filho, casou. Encontrámo-nos não muitas vezes, cada um com o seu percurso de vida. Escrever-me-ia um dia de uma cidadezinha no estado de Minnesota, nos Estados Unidos da América, para onde emigrara com o marido e o filho. Depois desapareceu nas transcontinentais brumas do tempo. Onde estará hoje? Recordo-a nesta breve passagem pelo seu Mindelo, ilha de São Vicente.
Avanço, de carro, para meia volta à ilha por inóspitos caminhos, entre montes vulcânicos, rasos de vegetação. Atravesso uma aldeia pobre, um poço, alguma água, o que dá para verdejar o solo com pequenas leiras de terra e hortas onde, a muito custo, vicejam alfaces, tomates, pepinos e outros legumes que não sei identificar. Mais adiante, uma dúzia de casas, junto ao mar, dão pelo nome de Calhau, há pedra e lava vulcânica aqui pousadas pela natureza há centenas de séculos. Serenidade e silêncio absoluto. Na estrada costeira, a caminho da Baía das Gatas, horizontes imensos, o céu coalhado de nuvens flutuantes, a terra agreste, acastanhada e negra, o mar beijando areias brancas trazidas pelo vento desde o deserto do Saara. Aparecem na distância pedaços de outra ilha, Santa Luzia, recortados no céu, as águas estendendo-se pelo infinito, intensamente azul.
Regresso ao Mindelo. A praia da Laginha, convidativa e limpa, o porto, os barcos, o mercado com azulejos portugueses, os edifícios coloniais, as gentes humildes, dignas e afáveis no lufa-lufa do quotidiano. Estou talvez a puxar demasiado a tese para a minha bem assada sardinha lusitana, mas creio que nos cabo-verdeanos se sente ainda uma certa nostalgia por Portugal. Mantiveram-se de pé as estátuas dos portugueses, continuaram os nomes de ruas e lugares, permanece muita da herança dos colonizadores. Diogo Afonso, o descobridor da ilha de São Vicente, levanta-se, perscrutando o horizonte em monumento quase no centro da cidade, ao lado de uma má cópia da torre de Belém transformada em Museu do Mar. Mais adiante, Gago Coutinho e Sacadura Cabral têm direito a homenagem pela sua passagem pelo Mindelo, em 1922, a caminho do Brasil, no aviãozinho Pátria, o Benfica, o Sporting, o Porto contam com milhares e milhares de adeptos espalhados por estas ilhas, o meu motorista de hoje chama-se António Gomes dos Santos e, quase negro, diz-me ter muito orgulho num seu avô branco, português de Viana do Castelo.
Mas as ilhas são pobres, creio que existem 800 mil cabo-verdeanos emigrados, espalhados um pouco por todo o mundo. Gente que não esquece o torrão onde nasceu, que volta às suas ilhas sempre que pode, sempre que aforra umas centenas de dólares ou euros, pessoas que fazem da palavra sodade -- essa tristeza doce --, um modo depurado de sentir Cabo Verde. Cesária Évora, nascida e criada neste Mindelo, cantava assim, em crioulo:
Bo que ba es caminho longe,
bo que ba es caminho longe,
es caminho pa San Tomé,
Sodade, sodade, sodade
des nha terra, São Nicolau.
Sodade, sodade, sodade.
António Graça de Abreu
O Liceu Ludgero Lima de Cabo Verde inicio o seu percurso cerca de 1860 e com o Liceu de Goa são os primeiros estabelecimentos do ensino secundário fora da metrópole.
Valdemar Queiroz
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