1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem.
As minhas memórias de Gabu
Jovens da tabanca Rostos de inocência
Pedaços de vida de uma Guiné que conhecemos
Crianças
Camaradas,
Viajo pelas ondulantes ondas do tempo,
afirmando seguramente que recordar é viver, tal como assevera o povo e com
razão, que nós, antigos combatentes na Guiné,
conhecemos, em parte, a vivência das crianças numa tabanca localizada no
interior de um mato denso, onde o seu viver quotidiano na comunidade local, uma
comunidade, aliás, essencialmente limitada pela falta da chamada liberdade de acção,
uma condicionante que por força de uma razão maior terá de ser analisada em
toda a sua verdadeira extensão, era simplesmente uma incógnita.
Nesta
conjuntura, não entremos pelo mundo imaginativo literalmente irreal ou
pressupostamente histérico que o nosso raciocínio ético nos propõe, mas baseado
na isenção da realidade então observada. Analisemos sim, e imparcialmente, o
viver dessas crianças que habitavam encurraladas entre as duas forças inimigas
que, no terreno, não davam tréguas.
Nesses tempos, sempre hostis, as crianças
despertavam em mim, tal como sempre o fizeram, sentimentos de uma profunda
sensibilidade. Com elas, as crianças, compreendi que viver em liberdade era um
confortante revigorante para que as suas almas no calor da luta armada
reclamassem apenas paz.
Mas a guerra
é feita pelos homens, homens com os seus hobbies particulares
à flor da pele, logo os possíveis sonhos das crianças ficavam, e ainda ficam,
para trás. Para vocês crianças de outrora que conheci, hoje homens e mulheres
da região de um Gabu que dantes calcorreei, fica o meu profundo sentimento de
saudade.
Bem-haja a
vossa infantil coragem por um sofrimento que era tão-só proveniente dos
senhores da guerra. Das vossas carinhas inocentes guardarei eternamente imagens
de jovens residentes em tabancas onde as necessidades imperavam.
Neste
contexto, permitam-me deixar o meu grito de Ipiranga em conflitos armados que
deixaram e vão desmesuradamente deixando abalos: Não às guerras! Não aos
“senhores” das guerras! Não às opulências dos homens! Não às suas riquezas de
“senhores” possessores de armamentos que só matam! Não à morte de inocentes
crianças! Sim à paz! Disse.
Que sejam
vocês crianças, principalmente as que conheci nessas tabancas da Guiné, os
mensageiros de uma paz que nós, homens com carater, tão bem o desejamos.
Mais um pequeno texto do meu livro "UM RANGER NA GUERRA COLONIAL GUINÉ/BISSAU 1973/1974, Edições Colibri.
Jovens da tabanca
Rostos de inocência
Os seus olhares espelhavam uma extrema inocência. Os seus rostos, meigos, imploravam uma paz que teimosamente se esvaziava no infinito do horizonte tantas vezes nublado. As crianças são pequenos seres humanos que sempre me despertaram múltiplos sentimentos. Gosto de crianças!
A minha passagem pela Guiné – Gabu – ficou também marcada pela inequívoca afeição aos miúdos guineenses. Num flash às minhas memórias a sensibilidade das garotas e garotos, nascidos e criados numa tabanca escondida algures no mais denso mato ou na sua orla, mexeram com a minha susceptibilidade.
Deparei-me com rostos que me transmitiam visões verdadeiramente arrepiantes. Crianças que não conheciam o prazer de brincar. A guerra, essa maldita realidade constatada no terreno, impingia frágeis condições às populações para sua sobrevivência.
Crianças que não conheciam o prazer de saborear um pudim flan e que não sabiam o que era a luz elétrica e a água canalizada. A tabanca, o seu doce lar, apresentava condições muito débeis. Não tinham camas e nem tão-pouco brinquedos. Os seus corpos descansavam sobre um pano garrido que apelidavam de colchão. No interior da tabanca pouco existia. Não havia móveis nem talheres de prata para receber um ilustre convidado. Olhava e via-se… nada!
À porta da tabanca, os cuidados da mãe passavam por bater a mandioca enquanto as crianças, por vezes infestadas de moscas, esperavam encarecidamente pelo momento em que as migalhas lhe caíssem a jeito. Noutras ocasiões era o arroz que atendia os seus desejos. Comiam com as mãos!
Nas alturas do fanado, uma festa tradicional nalgumas etnias indígenas, era comum deparámo-nos com grupos de jovens no mato que tinham sido submetidos a um rito de passagem, um processo cultural, de resto, fundamental em qualquer sociedade humana que é a iniciação dos rapazes e das raparigas à idade adulta. A minha ideia inicial sobre o fanado - minha e de muitos dos meus camaradas na época - era de que se tratava de uma espécie de operação primária, feita por métodos obsoletos utilizados pelos homens e mulheres grandes aos jovens que se preparavam para despontar para uma vida sexual futura, isto é, na fase exata que implica a passagem da puberdade para a idade adulta. Sabíamos vagamente - já que a cerimónia era secreta - que os seus órgãos genitais, pénis e vagina, sofriam pequenos cortes focais, sendo a sua principal finalidade manter a tradição dos seus antepassados. Era uma pequena cirurgia dolorosa, confessavam aqueles que conheceram o sofrimento.
Mas as coisas, vistas num campo correcto, não eram bem assim. Ou seja, se no caso dos rapazes, a microcirurgia se resumia ao corte do prepúcio, no caso das raparigas trata(va)-se de uma autêntica Mutilação Genital Feminina (MGF). Sabemos que a excisão do clítoris e dos grandes lábios nas meninas, era, e é, uma prática inaceitável à luz dos direitos humanos, e como tal um crime, penalizado pela lei dos Estados modernos, designadamente Portugal e a Guiné-Bissau. Porém, a lei está longe de ser cumprida na Guiné-Bissau, face ao atavismo desta prática milenar e ao secretismo das cerimónias, que são realizadas em separado (rapazes e raparigas).
Por outro lado, as fanatecas (mulheres que fazem a excisão feminina) têm ainda, em termos simbólicos e materiais, um grande peso nas comunidades mais tradicionais (em geral islamizadas). É, no fundo, uma prática - para a qual é necessário encontrar alternativas - de há muito denunciada e combatida pela Organização Mundial de Saúde - a que acresce as suas graves implicações para a saúde sexual e reprodutiva das mulheres que são submetidas ao fanado tradicional.
O método, rude, era feito com facas de mato entre outros apetrechos caquécticos e as feridas curadas com mesinhos caseiros, asseguravam os antigos sofredores.
A juventude da tabanca era cordial. Recebiam-nos com carinho. Acontecia, e disso sou testemunha, que, com chegada da tropa branca a algumas das tabancas, a miudagem parecia “coelhos” a correrem directos às suas tocas. Deparávamo-nos, então, com os seus pequenos olhos luzidios a espreitarem do interior das tabancas os intrusos que, entretanto, tinham chegado. Depois tudo voltava à normalidade, os miúdos aproximavam-se e o convívio conhecia um novo rosto.
As crianças conviviam com as agruras da guerra. Trabalhavam no campo a par das suas mães. O pai descansava. Semeavam o milho, a mancarra, criavam galinhas, cabritos e colhiam os frutos que a Natureza gentilmente lhes oferecia.
Um espelho de sobrevivência!
Um
abraço, camaradas
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523
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Nota de M.R.:
Vd. último poste desta série de 9 DE SETEMBRO DE 2020 > Guiné 61/74 – P21341: Memórias de Gabú (José Saúde) (96): A fé na guerra (José Saúde)
1 comentário:
"As crianças conviviam com as agruras da guerra. Trabalhavam no campo a par das suas mães. O pai descansava. Semeavam o milho, a mancarra, criavam galinhas, cabritos e colhiam os frutos que a Natureza gentilmente lhes oferecia"
Zé Saúde, mais um texto com uma bela filigrana de palavras.
Sem achar nada de anormal a Natureza gentilmente oferecer frutos na Guiné, assim acontece em todo o lado, reparei quando andei por várias tabancas próximas ou mais afastadas de Nova Lamego (Gabú) de gente fula, serem homens e não mulheres em trabalhos no campo. Com excepção das lavadeiras, as mulheres trabalhavam na tabanca pincipalmente no pilão a arranjar farinha para as refeições.
E essa do pai descansava, não sei não se seria "populismo" da época por serem homens de idade avançada, que mais novos ou até trintões estavam na tropa.
Saúde da boa
Valdemar Queiroz
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