segunda-feira, 5 de junho de 2023

Guiné 61/74 - P24368: História da CCAÇ 2402 (Có, Mansabá e Olossato, 1968/70) (Coordenação: Raul Albino, 1945-2020) - Textos avulsos - Parte I: Tempo(s) de Homofobia(s) (Mário Vargas Cardoso, 1935-2023)

  

Capa do II Volume do documento policopiado "Memórias de Campanha  da Companhia de Caçadores 2402 (Guiné, 1968/70) (Raul Albino, ed. lit.), 2008,  inumerado.


1.  O nosso saudoso camarada e amigo Raul Albino (1945-2020), ex-alf mil at inf, MA, CCAÇ 2402 (Có, Mansabá e Olossato, 1968/70), publicou ainda em vida dois volumes com a história da sua unidade. 

No II Volume, que teve a coordenação fotográfica do Maurício Esparteiro, contou ainda com a participação especial do ex-cmdt da companhia, Vargas Cardoso, e do ex-fur mil SAM, João Bonifácio.  Hoje publicamos um pequeno texto do Vargas Cardoso, ex-cor inf ref, que há dias nos deixou (*). No nosso blogue, o Raul Albino também publicou, no devido tempo, 18 postes com episódios da história da CCAÇ 2402 (**).


O transmissões que era gay...

por Vargas Cardoso 

Durante o período de preparação das unidades que mobilizavam para o Ultramar, quando já tinha conhecimento do teatro de operações do destino, e se preparavam os exercícios finais, que em 1968 se faziam no Continente / Metrópole, apresentavam-se na unidade mobilizadora (no nosso caso, o Regimento de Infantaria nº 1, na Amadora) os chamados especialistas, ou sejam os elementos do comando da companhia.

De entre os condutores, enferfermeiros, mecânicos, radiotelegrafistas, trabsmissões, etc., apresentou-se-me um futuro cabo de transmissões, que durante a habitual entrevista que tive com todos os militares da CCAÇ 2402, me causou alguma preocupação, pois pareceu-me denunciar um comportamento de tipo sexual, à época, bastante anómalo.

Já não me recordo como obtive informações complementares, mas lembro-me que dias depois,  e uma vez confirmadas (em princípio) as minhas suspeitas, falei com o nosso médico, o dr. João Dória (***), manifestando-lhe os meus receios, por estar em vias de embarcar para a Guiné, um militar que iria ter uma actividade muitas vezes sozinho no seu posto de serviço.

Ficou decidido, entre mim e o nosso clínico, conseguir que o rapaz baixasse ao Hospital Militar da Estrela onde foi sujeito ao chamado teste do "prato de farinha" (****). Face às diligências do dr. Dória com os seus colegas do Hospital, chegou-se à conclusão que o rapaz era o que agora se designa por "gay".

Resultado, embarcámos com um militar de transmissões a menos, mas escapámos aos problemas que aquele militar, sendo "doente", nos poderia levantar.

Vargas Cardoso, cor ref 

Excerto de: Parte II - Comando da Companhia, textos de Vargas Cardoso. In: Memórias de Campanha  da Companhia de Caçadores 2402 (Guiné, 1968/70) (Raul Albino, ed. lit.), II Volume, 2008, documento em pdf, inumerado.

____________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 3 de junho de 2023 > Guiné 61/74 - P24363: In Memoriam (478): Mário Vargas Cardoso, cor inf ref (1935-2023), ex-cap inf, CCAÇ 2402 / BCAÇ 2851 (Có, Mansabá e Olossato, 1968/70) e ex-cmdt do BCAÇ 3884 (Bafatá, 1972/74) (João Bonifácio, ex-fur mil SAM, CCAÇ 2402, 1968/70, a viver no Canadá); Manuel Oliveira Pereira, ex-fur mil at inf, CCAÇ 3547, Contuboel, 1972/74)

(**) Vd. último poste da série > 19  de setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7010: História da CCAÇ 2402 (Raul Albino) (18): Terceiro ataque ao Olossato

(***) Julgamos tratar-se do dr. João Dória Nóbrega (1934-2021), ginecolista e obstetra.

(****) O "teste da farinha ou  do prato da farinha" era uma prática infamante, homofóbica, que esteve em voga em diversos exércitos, incluindo o brasileiro e, ao que parece, também no português.

3 comentários:

Valdemar Silva disse...

Esta é das boas: por imposição médica, um gay não seria mobilizado.

Como imitava muito bem, desta é que o Tó Quim não sabia e não lhe chegou ter cortado o dedo indicador direito.

(...vendo bem, um transmissões com uma queda para um jeitoso inimigo, não seria boa ideia...)

Valdemar Queiroz

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Espero que a história esteja mal contada, e que o médico do batalhão não tenha infrigido as regras mais elementares da ética e deontologia profissionais... Não acredito que no Hospital Militar Principal, na Estrela, o corpo clínico (incluindo os psiquiatras) recorressem ao famigerado "teste da farinha ou do prato da farinha"... para detetar a orientaçáo sexual de um mancebo... Mesmo sabendo nós que a homossexualidade era, ainda então, considerada uma doença!...

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Será um tabu no nosso blogue ?

Já a Verónica Ferreira notou que, "para lá daquilo que é partilhado, das histórias ou experiências", há/havia silêncios nas nossas memõriasd:

(...) É preciso perceber a história da qual não se fala. Aquilo que se fala é sobretudo de um sentimento de revolta, por não haver reconhecimento do Estado do sacrifício dos combatentes. O silêncio surge em relação à violência perpetrada”, constatou, dando ainda conta de outros “pequenos silêncios”, como a homossexualidade, que não é falada, ao contrário de temas difíceis que acabam por ser abordados como a deserção ou filhos que foram deixados lá. (...)


1 DE JANEIRO DE 2023
Guiné 61/74 - P23936: Mi querido blog, por qué no te callas?! (9): O nosso blogue à lupa dos lentes de Coimbra... Pequeno resumo da tese de doutoramento de Verónica Ferreira que nos caracteriza assim, em entrevista à Lusa: (i) uma espécie de comunidade de antigos combatentes à procura de um sentido para a participação na guerra colonial; (ii) com um lado nostálgico de partilha de memórias, mas também de revolta pelo sacrifício inútil e não reconhecido; (iii) com um postura defensiva e uma visão algo lusotropicalista do conflito; e (iv) onde há muitos "pequenos silêncios" e alguns tabus

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