sexta-feira, 17 de junho de 2022

Guiné 61/74 - P23359: Notas de leitura (1456): Os Jesuítas na Senegâmbia, os personagens de um insucesso (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Setembro de 2019:

Queridos amigos,
Não foi por acaso que a título excecional se detalhou no blogue a "História das missões católicas da Guiné", pelo Padre Henrique Pinto Rema. Bom seria que dispuséssemos de vários contraditórios: o que era efetivamente a presença do islamismo naquelas paragens quando ali arribámos em meados do século XV; é facto que há relatos, e muito esclarecedores, das práticas animistas naquilo que se convencionou chamar a Grande Senegâmbia, a antropologia, a etnologia e a etnografia têm efetuado importantes trabalhos sobre práticas animistas quer no continente guineense quer na área arquipelágica. Já o padre Pinto Rema na sua obra incontornável acima referida dava conta dos inúmeros escolhos que se punham à atividade missionária, o clima, a hostilidade dos traficantes de escravos e outros mercadores, a ignorância das línguas nativas, a solidão. Tudo dificultava a construção de igrejas e a catequização. O diálogo religioso com a comunidade islâmica era impossível, vivia-se em intolerância; e a perseguição aos ídolos revelava-se totalmente ineficaz. Os franciscanos foram os mais persistentes, os jesuítas vieram cheios de entusiasmo, morreram quase todos. Um deles, o padre Manuel Álvares, deixou-nos um documento sobre esse território que era conhecido como a Etiópia Menor que, estranhamente, nunca passou de manuscrito. Coisas da cultura ou da incúria cultural.

Um abraço do
Mário



Os Jesuítas na Senegâmbia, os personagens de um insucesso

Beja Santos

Fez-se referência no blogue, e de modo exaustivo, à obra fundamental de ação missionária na Guiné, “História das missões católicas da Guiné”, pelo Padre Henrique Pinto Rema, Editorial Franciscana, 1982. O padre Pinto Rema referiu-se à presença dos jesuítas, convirá dela dar mais algum detalhe. Uma das figuras fundamentais é o padre Manuel Álvares. Convém não confundir o missionário com o gramático. Sobre a obra do gramático, recomenda-se a leitura do artigo “A época e a obra de Manuel Álvares”, por Rui Nepomuceno, Revista Islenha, n.º 45, dezembro de 2009. Era também jesuíta e ficou especialmente conhecido pelo seu trabalho modelar como gramático. Este padre Manuel Álvares de que vamos falar foi estudado por Manuel Pereira Gonçalves, ele apresentou uma comunicação intitulada “Atividade e obra do padre Manuel Álvares nos rios da Guiné (século XVII), alguns apontamentos”, no Congresso Internacional de História, Missionação Portuguesa e Encontro de Culturas, consta das Atas, volume I, Cristandade Portuguesa até ao século XV, Evangelização Interna, Ilhas Atlânticas, África Ocidental, Universidade Católica, 1993.

Manuel Álvares chegou à ilha de Santiago em 1607 e pouco depois partiu para o continente africano para ajudar o padre Baltazar Barreira, que aqui missionava desde 1605. Álvares de Bissau seguiu para Quínara e depois para a Serra Leoa, ia ao encontro do padre Baltazar Barreira que aqui andava em catequização. O autor deste trabalho enfatiza as principais razões do insucesso deste trabalho de missionação: o clima é devastador, os missionários morrem como tordos, dois logo em 1604, mais dois em 1607 e mais dois em 1608. Quando chegam para missionar já os Mandingas ensinavam o Corão. Acresce que os jesuítas não conheciam as línguas nativas. O bispo em Cabo Verde insistia em mandar visitadores, tentava-se assim estimular a missionação, mas eram visitas inúteis. Para além da região muçulmana, os missionários defrontavam-se com o animismo e o seu cortejo de idolatrias. Como no passado, e até no presente, o africano animista explica o sucesso ou insucesso da sua vida e das suas atividades pela proteção do Irã. E havia uma outra condicionante bem terrível: o isolamento. A vida religiosa só se compreende quando vivida em comunidade, mesmo os Trapistas vivem em comunidade e com regras. Ora estes religiosos, sacerdotes e irmãos auxiliares, iam na disposição de construir igrejas e sentiam que naquele deserto humano não havia ninguém com quem pudessem manter um diálogo. Numa tentativa de ultrapassar esta situação, o padre Baltazar Barreira pediu ao seu superior Provincial que enviasse para a Missão da Serra Leoa pelo menos dois sacerdotes que dessem continuidade ao seu trabalho.

Nove dias após a chegada a Santiago, o padre Manuel Álvares acompanhado pelo Irmão Pedro Fernandes parte para o Rio Grande. Mais tarde, assistiu ao batismo da irmã e do irmão do rei D. Filipe de Leão, rei da Serra Leoa. Baltazar Barreira considerou que foi o casamento católico do irmão que moveu a irmã a receber o batismo. Como havia o receio de que vivendo no meio de pagãos podia perder a fé, a irmã do rei teve de abandonar o local onde vivia. Quem estiver interessado em estudar esta matéria com mais profundidade, recomenda-se a Monumenta Missionária Africana, Padre António Brásio, volume IV, a partir da página 621. Os jesuítas enviaram quinze sacerdotes ao todo, quase todos morreram. Ainda se exerceu missionação no Cacheu, que tinha uma igreja com clero diocesano e religioso e uma igreja dedicada a Nossa Senhora da Natividade. Eram muito poucos os templos no território do que é hoje a Guiné, Santa Cruz no Rio Grande teve uma igreja dedicada a Nossa Senhora, durante bastante tempo houve um clérigo que lá ia dizer missa.

Um dos mistérios da histografia missionária e dos estudos do colonialismo é nunca a obra deste padre ter passado do manuscrito, Ethiopia Menor e Descripção Geographica da Provincia da Sérra Leõa, é considerado um trabalho de referência, incompreensivelmente não está acessível ao público. O padre Manuel Álvares discreteia sobre muitos assuntos, um deles tem a ver com o catecismo, seguramente que o preparou para a sua ação missionária. Tem aspetos curiosos, vale a pena citá-los:
“Os céus, apesar de incorruptos, imperfeitos, eternos, independentes, não foram feitos por si mesmos. Receberam de alguém o seu ser. É a primeira causa criadora. Também as estrelas, os planetas e todas as coisas deste mundo tiveram a sua primeira causa criadora. Nada há que não tenha um princípio e que não remonte a sua existência à primeira causa”. Mais adiante:
“O homem atingirá o dom da imortalidade por raro privilégio de Deus, ainda que não o possamos atingir pela própria natureza. A imortalidade do homem só é pela Providência Divina, é Deus que o encaminha para o fim sobrenatural; e ao homem não é dado o prémio nem o castigo antes de morrer”.

Porque não se salva o gentio a quem não foi anunciada a mensagem evangélica? O padre Manuel Álvares é da opinião que se tiverem vivido segundo a lei natural serão salvos. E porquê? Desde que tenham adorado quem os criou; tenham falado verdade, não tenham cobiçado o alheio; tenham guardado respeito pelo alheio; não tenham prejudicado em nada o que é dos outros; tenham usado com fidelidade aquilo que lhes pertence; tenham sido fiéis a todos os princípios, mesmo os matrimoniais.

O padre Manuel Álvares morreu em 1617. No século XVII, é possível que um ou outro sacerdote jesuíta tenha, em viagem esporádica, passado por aquelas paragens da África Ocidental, mas não há memória de outra presença efetiva e continuada. Anos mais tarde, em julho de 1642, os jesuítas deixam definitivamente a missão e os últimos sacerdotes rumam em direção a Lisboa.

Vale a pena seguidamente acompanhar a ação missionária do padre Baltasar Barreira, que teve uma atividade significativa em Cabo Verde, na Guiné e na Serra Leoa.

Ritual fúnebre na Senegâmbia, final do século XVII, imagem retirada de: https://www.researchgate.net/figure/FIGURA-2-Missionario-capuchinho-queima-casa-de-idolos-na-Africa-Centro-Ocidental-decada_fig2_304710892.
Missionário capuchinho queima casa de ídolos na África Centro-Ocidental, década de 1740, imagem retirada de: https://www.researchgate.net/figure/FIGURA-2-Missionario-capuchinho-queima-casa-de-idolos-na-Africa-Centro-Ocidental-decada_fig2_304710892.
Escultura da extremidade superior de sono em bronze com representação de duas pessoas montadas, acompanhantes e provavelmente um cão, imagem retirada de: https://revistas.ufrj.br/index.php/abeafrica/article/viewFile/19406/12989.

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Nota do editor

Último poste da série de 13 DE JUNHO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23346: Notas de leitura (1455): "Era Uma Vez na Tropa, Rescaldos da guerra em desfile de memórias", por Ireneu de Sousa Mac; Europa Editora, 2022 (Mário Beja Santos)

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