Gondomar > Fânzeres > Tabanca dos Melros > 11 de junho de 2022 > Apresentação do livro “Memórias de Guerra de um Tigre Azul”, de Joaquim Costa (Rio Tinto, Lugar da Palavra, 2021, 179 pp). Teve uma assistência na casa das 7 dezenas de pessoas. Da esquerda para a direita, na mesa (*),
(i) António Carvalho (ex-fur mil enf, CART 6250/72, "Os Unidos de Mampatá", Mampatá, (1972/74), escritor, autor de "Um caminho de Quatro Passos", Rio Tinto: Lugar da Palavra Editora,2021, 218 pp., vive em Medas, Gondomar; representou o nosso editor Luís Graça, de quem leu um texto de apresentação do livro do Joaquim Costa;
(ii) Carlos Machado, engenheiro técnico, a viver em Lisboa, e ex-furriel dos Tigres do Cumbijã, CCAV 8351 (Cumbijã, 1972/74);
(iii) Joaquim Costa, o autor do livro;
(iv) João Carlos Brito, professor, bibliotecário e escritor, em representação da Editora: Lugar da Palavra. com sede em Rio Tinto, Gondomar.
Os Tigres do Cumbijã
e os trabalhos de Sísifo
por Luís Graça
Começo por saudar o nosso novo escritor, o talentoso Joaquim Costa, que nos honra a todos, antigos combatentes da Guiné, e em especial a Tabanca Grande, a que ele pertence, com mais 861 camaradas e amigos da Guiné, entre vivos e mortos. E saúdo naturalmente a Tabanca dos Melros que, generosamente, abriu as suas portas para este evento, na pessoa de um dos seus régulos, e nosso anfitrião, o Gil Moutinho.
Uma saudação muito especial para a família do Joaquim, de que ele muito se orgulha (os filhos Ricardo e Tiago, a “minha maior obra”, como ele diz, bem como a sua heroína Isabel e os seus netos).
Um alfabravo (ABraço) para os Tigres do Cumbijã, alguns aqui presentes, a sua “família da guerra”, os seus irmãos de “sangue, suor e lágrimas”, que vieram com o corpo e a alma tatuados com topónimos guineenses que levarão para a cova: Cumbijã, Nhacobá, Colibuía, Aldeia Formosa (hoje Quebo), Buba, Mampatá…
Ele é capaz ainda hoje de se lembrar de boa parte dos seus nomes ou alcunhas… Destaque para o Carlos Machado, que veio propositadamente de Lisboa, e que tem algumas divertidas e elogiosas referências no livro, não só pelos preciosos mapas, que levava consigo no mato, para eventuais pedidos de apoio de artilharia (do 2º Pel Art, que tinha 3 obuses 10,5 em Cumbijã), como pelo seu famoso bigode que era um autêntico sensor, capaz de farejar e detetar à distância a presença de inimigos nas redondezas.
Um abraço para todos os presentes nesta sessão, homens e mulheres de boa vontade, que aqui comparecem, e que tomam as necessárias precauções, não baixando a guarda face à maldita Covid que não desarma e continua por aí a fazer estragos.
Um Oscarbravo (OBrigado) ao António Carvalho, outro dos nossos escritores, vizinho do Joaquim, de Mampatá, que aceitou a ingrata mas solidária tarefa de me dar voz, nessa sessão, e de me representar nesta mesa: ainda com um mês de pós-operatório (fiz uma artroplastia total do joelho), e ainda a andar a quatro patas, ser-me-ia muito penoso fazer mais de 600 quilómetros, num só dia, para poder estar nesta festa.
Um abraço para todos os presentes nesta sessão, homens e mulheres de boa vontade, que aqui comparecem, e que tomam as necessárias precauções, não baixando a guarda face à maldita Covid que não desarma e continua por aí a fazer estragos.
Um Oscarbravo (OBrigado) ao António Carvalho, outro dos nossos escritores, vizinho do Joaquim, de Mampatá, que aceitou a ingrata mas solidária tarefa de me dar voz, nessa sessão, e de me representar nesta mesa: ainda com um mês de pós-operatório (fiz uma artroplastia total do joelho), e ainda a andar a quatro patas, ser-me-ia muito penoso fazer mais de 600 quilómetros, num só dia, para poder estar nesta festa.
Recordo que no passado dia 11 de setembro de 2021 tive a honra de estar presente, na Tabanca dos Melros, entre os convidados que apresentaram o livro de memórias do António, “Um caminho de quatro passos”. Amor com amor se paga…
Mas também é com muita pena que não posso estar desta vez, para mais em dia de festa… E começo por recordar e agradecer as palavras calorosas que o Joaquim escreveu na dedicatória autografada no exemplar do livro que me mandou para casa. Cito-o textualmente:
“Para o ‘Pai’ putativo do meu (nosso) livro de memórias de guerra, amigo recente mas já sentado na primeira fila das pessoas que mais prezo. O meu obrigado pelo contributo decisivo no nascimento do meu terceiro ‘filho’, bem como da ‘nota final’. Joaquim Costa, s/d.”
Joaquim: faço aqui uma “declaração de interesses”, não vá qualquer sombra de dúvida ficar a pairar sob o céu da Tabanca dos Melros: a paternidade e a maternidade deste teu “terceiro filho” são todas tuas… Se quiseres ser generoso comigo, aceito ficar na fotografia como uma das várias parteiras-aparadeiras que te ajudaram a ter um parto eutócico, normalíssimo, feliz, não obstante as contrariedades da pandemia de Covid-19.
O livro saiu em dezembro de 2021, sob a chancela da editora Lugar da Palavra, aqui de Rio Tinto, tem 179 páginas, 30 capítulos, e é ilustrado com cerca de nove dezenas de fotos. Felicito o editor, ou representante da editora, João Carlos Brito, aqui presente também.
Mas também é com muita pena que não posso estar desta vez, para mais em dia de festa… E começo por recordar e agradecer as palavras calorosas que o Joaquim escreveu na dedicatória autografada no exemplar do livro que me mandou para casa. Cito-o textualmente:
“Para o ‘Pai’ putativo do meu (nosso) livro de memórias de guerra, amigo recente mas já sentado na primeira fila das pessoas que mais prezo. O meu obrigado pelo contributo decisivo no nascimento do meu terceiro ‘filho’, bem como da ‘nota final’. Joaquim Costa, s/d.”
Joaquim: faço aqui uma “declaração de interesses”, não vá qualquer sombra de dúvida ficar a pairar sob o céu da Tabanca dos Melros: a paternidade e a maternidade deste teu “terceiro filho” são todas tuas… Se quiseres ser generoso comigo, aceito ficar na fotografia como uma das várias parteiras-aparadeiras que te ajudaram a ter um parto eutócico, normalíssimo, feliz, não obstante as contrariedades da pandemia de Covid-19.
O livro saiu em dezembro de 2021, sob a chancela da editora Lugar da Palavra, aqui de Rio Tinto, tem 179 páginas, 30 capítulos, e é ilustrado com cerca de nove dezenas de fotos. Felicito o editor, ou representante da editora, João Carlos Brito, aqui presente também.
E o preço de capa, meus amigos e camaradas, são dois maços de cigarros. A vantagem é que o livro faz bem à alma e os cigarros fazem mal à saúde. A mortalidade atribuível ao tabaco, num só ano, é superior à mortalidade por todas as causas (combate, acidente e doença) devida à guerra colonial, nos longos 13 anos em que decorreu (10 mil mortos, nos vários teatros de operações).
Em boa hora, e ainda em plena pandemia de Covid-19, o Joaquim começou a pré-publicar alguns excertos (mais de 2 dezenas) do livro que deu à estampa no fim do ano de 2021. Demos um título à série, “Paz & Guerra: Memórias de um Tigre do Cumbijã”… Publicaram-se até à data 27 postes, desde 2 de fevereiro de 2022. (**)
A série publicada no blogue e a versão final, agora dada à estampa sob o título definitivo, não são exatamente iguais. Todos ficámos a ganhar, a começar pelo autor, que, ao expor-se à crítica dos leitores, muitos deles antigos combatentes, receberia em troca cerca de duas centenas de comentários “a quente”.
E mais: teve mais de 3700 visualizações diretas, isto é, leitores, que propositadamente carregaram num ou mais mais links dos postes da série… O que quer dizer que o seu livro já foi lido, “on line”, por algumas centenas de pessoas…
Interessante este “making of” do livro… O que seguramente ajudou a melhorar a sua versão final.
Cabe-me enquanto fundador e editor do nosso blogue, saudar e engradecer este livro de memórias que vem enriquecer o património literário e documental da Tabanca Grande, que é uma tertúlia virtual centrada na experiência de uma guerra, a guerra colonial (1961/74), e em particular a da Guiné, sendo porventura a maior tertúlia do género, em português, quer pelo número de visualizações do blogue (cerca de 13,5 milhões, desde 2004, fora a página do Facebook) quer pelo número dos seus membros registados (= 862) quer ainda pelo volume de memórias partilhadas (mais de 23300 postes). Memórias mas também afetos. E este livro do Joaquim é sobretudo um livro de afetos.
O Joaquim Costa é mais um talento literário que o nosso blogue veio revelar, com a particularidade de, sendo um bom minhoto, natural de Vila Nova de Famalicão, a terra adotiva do autor de “A Brasileira de Prazins”, a sua prosa ter também belos nacos do português camiliano, a começar pela ironia, o pícaro, o humor e até o sarcasmo, tão bem patentes na reconstituição de algumas das suas memórias de infância e na evocação da sua família, bem como na descrição de cenas da vida castrense (a tropa e depois a guerra), cenas por que passámos muitos de nós, antigos combatentes aqui presentes, e que vivemos tão intensamente, das Caldas da Rainha até Bissau.
Perpassa pelo livro um subtil mas corrosivo humor de caserna que funcionou, na Guiné, durante a guerra colonial, em todo o lado, e sobretudo nos piores momentos... Ajudou muitos de nós a sobreviver ao Suplício de Sísifo que foi aquela estúpida, penosa, absurda e inútil guerra que nos obrigaram a manter, durante anos, sem solução, militar e sobretudo política, à vista… Até que se chega à tarde do dia 26 de Abril de 1974…
Em boa hora, e ainda em plena pandemia de Covid-19, o Joaquim começou a pré-publicar alguns excertos (mais de 2 dezenas) do livro que deu à estampa no fim do ano de 2021. Demos um título à série, “Paz & Guerra: Memórias de um Tigre do Cumbijã”… Publicaram-se até à data 27 postes, desde 2 de fevereiro de 2022. (**)
A série publicada no blogue e a versão final, agora dada à estampa sob o título definitivo, não são exatamente iguais. Todos ficámos a ganhar, a começar pelo autor, que, ao expor-se à crítica dos leitores, muitos deles antigos combatentes, receberia em troca cerca de duas centenas de comentários “a quente”.
E mais: teve mais de 3700 visualizações diretas, isto é, leitores, que propositadamente carregaram num ou mais mais links dos postes da série… O que quer dizer que o seu livro já foi lido, “on line”, por algumas centenas de pessoas…
Interessante este “making of” do livro… O que seguramente ajudou a melhorar a sua versão final.
Cabe-me enquanto fundador e editor do nosso blogue, saudar e engradecer este livro de memórias que vem enriquecer o património literário e documental da Tabanca Grande, que é uma tertúlia virtual centrada na experiência de uma guerra, a guerra colonial (1961/74), e em particular a da Guiné, sendo porventura a maior tertúlia do género, em português, quer pelo número de visualizações do blogue (cerca de 13,5 milhões, desde 2004, fora a página do Facebook) quer pelo número dos seus membros registados (= 862) quer ainda pelo volume de memórias partilhadas (mais de 23300 postes). Memórias mas também afetos. E este livro do Joaquim é sobretudo um livro de afetos.
O Joaquim Costa é mais um talento literário que o nosso blogue veio revelar, com a particularidade de, sendo um bom minhoto, natural de Vila Nova de Famalicão, a terra adotiva do autor de “A Brasileira de Prazins”, a sua prosa ter também belos nacos do português camiliano, a começar pela ironia, o pícaro, o humor e até o sarcasmo, tão bem patentes na reconstituição de algumas das suas memórias de infância e na evocação da sua família, bem como na descrição de cenas da vida castrense (a tropa e depois a guerra), cenas por que passámos muitos de nós, antigos combatentes aqui presentes, e que vivemos tão intensamente, das Caldas da Rainha até Bissau.
Perpassa pelo livro um subtil mas corrosivo humor de caserna que funcionou, na Guiné, durante a guerra colonial, em todo o lado, e sobretudo nos piores momentos... Ajudou muitos de nós a sobreviver ao Suplício de Sísifo que foi aquela estúpida, penosa, absurda e inútil guerra que nos obrigaram a manter, durante anos, sem solução, militar e sobretudo política, à vista… Até que se chega à tarde do dia 26 de Abril de 1974…
Os rumores de um golpe de Estado em Lisboa, já transmitidos pela “Maria Turra” (a voz mais famosa, e quase familiar, da Rádio Libertação, do PAIGC, que emitia a partir de Conacri), são confirmados por um camarada. Escreveu o Joaquim:
“ (…) Na tarde do dia 26, vinha eu com a minha cerveja e o meu Norte Desportivo na mão, quando o Martins se vira para mim e me diz, de forma perentória: Costa!, há mesmo ‘merda’ em Lisboa” (…) (pág. 154 )….
Com tanta excitação, o autor só se viria a lembrar do seu 24º aniversário (que foi a 27 de abril de 1974), uns dias depois, já nos princípios de maio…
O aquartelamento do Cumbijã (antiga tabanca abandonada nos primórdios da guerra), como muitos outros pela Guiné fora, do Cachil à Ponta do Inglês, de Gandembel a Mansambo, foi construído, a pá e a pica, a enxada e a motosserra, sem ajuda de máquinas e homens da Engenharia Militar… num esforço hercúleo, sobre-humano, um verdadeira epopeia que noutro país qualquer daria uma fabuloso filme...
Não é gratuito evocar-se aqui os trabalhos de Sísifo. Recorde-se que, segundo a mitologia grega, os deuses condenaram Sísifo a fazer rolar uma grande pedra de mármore, com suas próprias mãos, até ao alto de uma montanha.... Uma vez alcançado o cume, a pedra rolava novamente pela encosta abaixo até ao ponto de partida, movida por uma misteriosa força irresistível. Tratava-se de uma condenação até à... eternidade!...
Por essa razão se diz que todas as tarefas que envolvem esforços gratuitos, inúteis e absurdos são trabalhos de Sísifo... A estrada (asfaltada) de Mampatá a Nhacobá, e que vinha de Buba e devia chegar a Mejo, fundamental para neutralizar a “corredor da morte” ou “corredor de Guileje” (também chamado, pelo outro lado, “caminho do povo”, “caminho da liberdade”) não chegou a ser concluída, com o fim da guerra… Foi um verdadeiro trabalho de Sísifo, tal com a ocupação de Cumbijã, Colibuía e Nhacobá….
O Joaquim escreveu um livro com uma parte da sua história de vida, dos seus verdes anos, história que é também a de muitos de nós, e fez questão dedicá-lo aos que o amam e o estimam. A sua narrativa tem momentos portentosos sobre a epopeia de Cumbijã e de Nhacobá, os seus bravos e as suas vítimas, os seus momentos mais dramáticos e trágicos.
Um dia, quando fizermos uma antologia dos nossos melhores textos, o seu testemunho, na 1ª pessoa, sobre a Op Balanço Final, a conquista e a ocupação de Nhacobá (17-23 maio 1973), por exemplo, terá que lá figurar, com toda a justiça.
A historiografia militar, a começar pelos livros da CECA – Comissão para o Estudo das Campanhas de África, pode, em meia dúzia de linhas secas, telegráficas, resumir aquela “guerra de baixa intensidade”, num contexto, altamente desfavorável a Portugal e às nossas forças armadas, contexto diplomático e geopolítico marcado pela guerra fria e o fim dos impérios, mas também pela crise económica de 1973 e a crescente contestação do Estado Novo, com o fim expectável do marcelismo. Não foi, em todo o uma guerra para “meninos de coro”, como todas as guerras...
Faltará sempre, à escrita do historiador, o nosso "sangue, suor e lágrimas", que no nosso tempo, na Guiné, não foi uma figura de retórica. E é bom que os nossos filhos e netos saibam, por fim, que ali não fizemos só a guerra mas também a paz. E que nenhum de nós escapou ao terrível dilema de matar ou morrer, incluindo os problemas de consciência que a violência armada impõe a qualquer ser humano.
Também, este livro tem belos apontamentos de grande lirismo em que o autor consegue abstrair-se da guerra e dos seus horrores ( as minas, as emboscadas, as flagelações, os ataques, o sofrimento físico e psíquico…), e ver beleza naquela terra e naquela gente, a começar pelas as lavadeiras (obrigatório ler e reler o cap. 11, “as nossas lavadeiras… e o furriel Pequenina, pp. 75 e seguintes).
Sem poder esquecer as intermináveis noites em que ficou emboscado na frente dos trabalhos de construção da estrada para Nhacobá, o Joaquim soube tirar algum prazer e encantamento da fruição da natureza. Vou citá-lo (vd. pág. 83):
Apesar de se sentirem permanentemente vigiados pelo inimigo, aos “Tigres do Cumbijã” ninguém lhes podia roubar aquele momento inefável da manhã: “ de manhãzinha, com banho tomado e roupa lavada e já seca, não disfarçávamos a alegria, ao vermos chegar a coluna com os dois grupos de combate que nos vinham substituir” (pág. 83).
Estamos gratos ao Joaquim por dar voz a muitos combatentes, não só do nosso lado, mas até do outro lado, que nunca tiveram nem terão oportunidade de escrever, e muito menos de publicar, sob chancela editorial, as suas “vivências” e “memórias doridas” (e algumas até boas) daquela guerra e daquela terra (que, estranhamente, acabou por ficar no nosso coração, contagiando até os nossos filhos, o Tiago Costa, o João Graça, e tantos outros).
E o problema é que muitas memórias vão morrer connosco...E por cada um de nós que morre, é um livro que não se escreveu…
Não quero acabar esta nota de apresentação sem referir os sucessivos “murros no estômago” que, metaforicamente falando, o autor evoca no seu livro, a começar pelo inevitável batismo de fogo, as primeiras minas e emboscadas, o primeiro morto...
Na realidade, aqueles de nós (e fomos muitos) que passámos por essa dura, trágica, traumática experiência, sabe dar valor às palavras do Joaquim onde há raiva e impotência mas também coragem e dignidade, quando ele fala do primeiro camarada que morre ao seu lado.
O batismo de fogo era sempre uma situação-limite... E cedo aprendíamos que um homem não pode uma guerra sem odiar ...Depois, era como tudo: a guerra (e a morte) banalizava-se, tornava-se uma certa rotina... Mas os "embrulhanços" eram sempre temidos, de um lado e do outro... As balas e os estilhaços das granada ou o sopro das minas (antipessoais e anticarro) não tinham código postal... Era a roleta russa...
Diga-se, por fim, que não é um livro panfletário. Mas, mesmo sem querer fazer juízos de valor sobre a legitimidade, a condução e o desfecho daquela guerra, o autor acaba por nos mostrar, com fino mas cáustico humor, que às vezes acontecia sentirmo-nos como um bando de cegos, comandados por outros cegos, à beira de um precipício.
Felizmente o Joaquim voltou, “são e salvo”, para escrever este livro, o seu “terceiro filho”, e dar mais valor e força à liberdade, à justiça, à paz e à solidariedade.
Joaquim, hoje é um dia importante na tua vida. E seguramente tens motivos de orgulho ao apresentar, oficialmente, na Tabanca dos Melros, o teu livro (que, diga-se de passagem merece uma segunda edição, revista, aumentada e melhorada).
Luís Graça, sociólogo, editor do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. (**)
“ (…) Na tarde do dia 26, vinha eu com a minha cerveja e o meu Norte Desportivo na mão, quando o Martins se vira para mim e me diz, de forma perentória: Costa!, há mesmo ‘merda’ em Lisboa” (…) (pág. 154 )….
Com tanta excitação, o autor só se viria a lembrar do seu 24º aniversário (que foi a 27 de abril de 1974), uns dias depois, já nos princípios de maio…
O aquartelamento do Cumbijã (antiga tabanca abandonada nos primórdios da guerra), como muitos outros pela Guiné fora, do Cachil à Ponta do Inglês, de Gandembel a Mansambo, foi construído, a pá e a pica, a enxada e a motosserra, sem ajuda de máquinas e homens da Engenharia Militar… num esforço hercúleo, sobre-humano, um verdadeira epopeia que noutro país qualquer daria uma fabuloso filme...
Não é gratuito evocar-se aqui os trabalhos de Sísifo. Recorde-se que, segundo a mitologia grega, os deuses condenaram Sísifo a fazer rolar uma grande pedra de mármore, com suas próprias mãos, até ao alto de uma montanha.... Uma vez alcançado o cume, a pedra rolava novamente pela encosta abaixo até ao ponto de partida, movida por uma misteriosa força irresistível. Tratava-se de uma condenação até à... eternidade!...
Por essa razão se diz que todas as tarefas que envolvem esforços gratuitos, inúteis e absurdos são trabalhos de Sísifo... A estrada (asfaltada) de Mampatá a Nhacobá, e que vinha de Buba e devia chegar a Mejo, fundamental para neutralizar a “corredor da morte” ou “corredor de Guileje” (também chamado, pelo outro lado, “caminho do povo”, “caminho da liberdade”) não chegou a ser concluída, com o fim da guerra… Foi um verdadeiro trabalho de Sísifo, tal com a ocupação de Cumbijã, Colibuía e Nhacobá….
O Joaquim escreveu um livro com uma parte da sua história de vida, dos seus verdes anos, história que é também a de muitos de nós, e fez questão dedicá-lo aos que o amam e o estimam. A sua narrativa tem momentos portentosos sobre a epopeia de Cumbijã e de Nhacobá, os seus bravos e as suas vítimas, os seus momentos mais dramáticos e trágicos.
Um dia, quando fizermos uma antologia dos nossos melhores textos, o seu testemunho, na 1ª pessoa, sobre a Op Balanço Final, a conquista e a ocupação de Nhacobá (17-23 maio 1973), por exemplo, terá que lá figurar, com toda a justiça.
A historiografia militar, a começar pelos livros da CECA – Comissão para o Estudo das Campanhas de África, pode, em meia dúzia de linhas secas, telegráficas, resumir aquela “guerra de baixa intensidade”, num contexto, altamente desfavorável a Portugal e às nossas forças armadas, contexto diplomático e geopolítico marcado pela guerra fria e o fim dos impérios, mas também pela crise económica de 1973 e a crescente contestação do Estado Novo, com o fim expectável do marcelismo. Não foi, em todo o uma guerra para “meninos de coro”, como todas as guerras...
Faltará sempre, à escrita do historiador, o nosso "sangue, suor e lágrimas", que no nosso tempo, na Guiné, não foi uma figura de retórica. E é bom que os nossos filhos e netos saibam, por fim, que ali não fizemos só a guerra mas também a paz. E que nenhum de nós escapou ao terrível dilema de matar ou morrer, incluindo os problemas de consciência que a violência armada impõe a qualquer ser humano.
Também, este livro tem belos apontamentos de grande lirismo em que o autor consegue abstrair-se da guerra e dos seus horrores ( as minas, as emboscadas, as flagelações, os ataques, o sofrimento físico e psíquico…), e ver beleza naquela terra e naquela gente, a começar pelas as lavadeiras (obrigatório ler e reler o cap. 11, “as nossas lavadeiras… e o furriel Pequenina, pp. 75 e seguintes).
Sem poder esquecer as intermináveis noites em que ficou emboscado na frente dos trabalhos de construção da estrada para Nhacobá, o Joaquim soube tirar algum prazer e encantamento da fruição da natureza. Vou citá-lo (vd. pág. 83):
- “as noites escuras com o fresco do cacimbo limpando o suor dos 40º do dia, deixando-nos inebriar pelos sons da floresta húmida, ouvido os macacos ao longe e o ‘piar’ de uma ou outra ave;
- “as noites de trovoada contínua, que nem nas festa da Sra. da Agonia, fazendo-se dia com as descargas elétricas violentas, de uma beleza indescritível;
- “as noites de luar, lindas e quase românticas…, sublimando os pensamentos nas nossas namoradas ou madrinhas de guerra;
- “as noites das primeiras chuvas que nos limpavam o corpo e a alma com o agradável cheiro a terra africana”…
Apesar de se sentirem permanentemente vigiados pelo inimigo, aos “Tigres do Cumbijã” ninguém lhes podia roubar aquele momento inefável da manhã: “ de manhãzinha, com banho tomado e roupa lavada e já seca, não disfarçávamos a alegria, ao vermos chegar a coluna com os dois grupos de combate que nos vinham substituir” (pág. 83).
Estamos gratos ao Joaquim por dar voz a muitos combatentes, não só do nosso lado, mas até do outro lado, que nunca tiveram nem terão oportunidade de escrever, e muito menos de publicar, sob chancela editorial, as suas “vivências” e “memórias doridas” (e algumas até boas) daquela guerra e daquela terra (que, estranhamente, acabou por ficar no nosso coração, contagiando até os nossos filhos, o Tiago Costa, o João Graça, e tantos outros).
E o problema é que muitas memórias vão morrer connosco...E por cada um de nós que morre, é um livro que não se escreveu…
Não quero acabar esta nota de apresentação sem referir os sucessivos “murros no estômago” que, metaforicamente falando, o autor evoca no seu livro, a começar pelo inevitável batismo de fogo, as primeiras minas e emboscadas, o primeiro morto...
Na realidade, aqueles de nós (e fomos muitos) que passámos por essa dura, trágica, traumática experiência, sabe dar valor às palavras do Joaquim onde há raiva e impotência mas também coragem e dignidade, quando ele fala do primeiro camarada que morre ao seu lado.
O batismo de fogo era sempre uma situação-limite... E cedo aprendíamos que um homem não pode uma guerra sem odiar ...Depois, era como tudo: a guerra (e a morte) banalizava-se, tornava-se uma certa rotina... Mas os "embrulhanços" eram sempre temidos, de um lado e do outro... As balas e os estilhaços das granada ou o sopro das minas (antipessoais e anticarro) não tinham código postal... Era a roleta russa...
Diga-se, por fim, que não é um livro panfletário. Mas, mesmo sem querer fazer juízos de valor sobre a legitimidade, a condução e o desfecho daquela guerra, o autor acaba por nos mostrar, com fino mas cáustico humor, que às vezes acontecia sentirmo-nos como um bando de cegos, comandados por outros cegos, à beira de um precipício.
Felizmente o Joaquim voltou, “são e salvo”, para escrever este livro, o seu “terceiro filho”, e dar mais valor e força à liberdade, à justiça, à paz e à solidariedade.
Joaquim, hoje é um dia importante na tua vida. E seguramente tens motivos de orgulho ao apresentar, oficialmente, na Tabanca dos Melros, o teu livro (que, diga-se de passagem merece uma segunda edição, revista, aumentada e melhorada).
Luís Graça, sociólogo, editor do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. (**)
___________
Notas do editor:
(*) Vd. poste de 10 de junho de 2022 > Guiné 61/74 - P23340: Lembrete (40): Tabanca dos Melros, Fânzeres, Gondomar, amanhã, dia 11, às 11h00: apresentação do livro do Joaquim Costa, ex-fur mil, CCAV 8351 (Cumbijã, 1972/74): "Memórias de Guerra de um Tigre Azul" (Rio Tinto, Lugar da Palavra Ed., 2021, 179 pp.)
(**) Último poste da série > 4 de junho de 2022> Guiné 61/74 - P23325: Agenda cultural (813): Afroencontro: fusão euroafricana de sonoridades... Camones CineBar, Bairro da Graça, Lisboa, sábado, 4 de junho, 21h00: Mamadu Baio, Avito Nanque, Sanassi de Gongoma e João Graça
1 comentário:
Caro e grande Camarigo Luís Graça
Primeiro que tudo os meus votos de boa recuperação do teu joelho que te deve ter obrigado a uma paragem sempre inconveniente em todos os sentidos, mas ao mesmo tempo te deve ter dado oportunidade para ires pondo a escrita em dia. Boas melhoras são os meus desejos sinceros.
Agora quero dar-te os meus parabéns por esta magnifica apresentação, mesmo à distância, do livro do Camarigo Joaquim Costa “Memórias de Guerra de um Tigre Azul”, que foi uma autêntica lição de história que merecia ser bem divulgada, especialmente junto das entidades do poder, que ainda hoje não sabem, nem querem saber, que o País esteve em guerra durante 14 longos anos.
Como sabes e aliás desde o primeiro dia em que abriguei à sombra da Tabanca Grande, em todos os meus escritos sempre me referi a Bissau onde passei os meus 25 meses de comissão. Portanto, da parte operacional, pouco sei para além do que os camaradas meus amigos, quando vinham a Bissau, me contavam parte do que por lá passaram e também do meu serviço no Centro de Mensagens do QG, quando, infelizmente, eramos confrontados a qualquer hora do dia ou da noite, com os pedidos de apoio aéreo e pior do que isso, do pedido de evacuações derivadas da guerra.
Tenho lido muitos livros escritos por camaradas que passaram por lá as passas do Algarve como se costuma dizer, mas há um livro, “Nos Celeiros da Guiné, Memórias de Guerra” da autoria de Albano Dias Costa que em 1963, com a especialidade de Sapador de Infantaria e com o curso de explosivos, minas e armadilhas, foi mobilizado para a Guiné como Alferes Miliciano Atirador e de José Jorge de Campos Sá-Chaves que, como militar, frequentou o CEPM e estagiou no CIOE. Mobilizado em Julho de 1962 integrou a CC413 tendo cumprido missão como Alferes Miliciano, na antiga Província Ultramarina da Guiné, (Dados retirados das badanas da capa e contracapa do referido livro) e Prefácio “Metamorfose dolorosa” do General Ramalho Eanes, que me escuso de transcrever na totalidade, apesar ser merecida a sua transcrição, porque são sete páginas, mas mesmo assim permito-me transcrever a 1ª frase deste Prefácio, páginas 11 a 17: “Poderia esta obra ter por titulo “Duas variações dramáticas sobre o mesmo tema”, dado que o tema, fundamental, são os jovens soldados na guerra – na guerra da Guiné -, que a guerra definitivamente marcou, roubando a uns, a vida, incapacitando, fisicamente, outros, marcando de angústia indelével o subconsciente e a memória não só destes últimos mas, também, a de todos os que lhe sobreviveram.” Mas permito-me ainda transcrever a última frese deste Prefácio: “Sentindo-me um irmão ex-combatente, destes ex-combatentes da CC 413, entendi não os abraçar com uma frase para a capa do livro, como me pediram, mas, sim, abraçá-los com este manifesto despretensioso, pequeno, mas sentido manifesto de solidariedade.” António Ramalho Eanes.
Sem querer ser fastidioso, ainda tenho que transcrever parte da “Dedicatória” dos autores, inserta na página 9, do citado Livro: “À memória dos camaradas da CC 413 que não envelheceram, tombados na Guiné, no cumprimento da comissão de serviço que lhes foi imposta, o Ataliba Pereira Faustino, o Francisco Matos Valério, o José Gonçalves Pereira, o José Basílio Moreira, o José Rosa Camacho, o José Pereira Rodrigues, o José Ramos Picão e o Joaquim Maria Lopes, em relação aos quais carregamos a culpa de continuarmos vivos.”
E refiro-me especialmente a este livro porque o mesmo, para além de tudo o mais, este livro regista a primeira morte, no conjunto dos três teatros de operações, de um conterrâneo meu, natural de Alcanena, o José Gonçalves Pereira, que despareceu em combate, cujos restos mortais vieram a ser recuperados mais tarde.
As minhas desculpas por este longo comentário
Um grande abraço.
Carlos Pinheiro
14.06.2022
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