quarta-feira, 21 de outubro de 2020

Guiné 61/74 - P21471: Historiografia da presença portuguesa em África (236): “África Ocidental, notícias e considerações”, por Francisco Travassos Valdez; impressas por ordem do Ministério da Marinha e Ultramar, 1864 (3) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Julho de 2017:

Queridos amigos,
Faço apelo a que leiam atentamente estas três recensões à volta da memória descritiva de Travassos Valdez da Senegâmbia ou Guiné Portuguesa. É alguém que vem bem habilitado, tem importante currículo colonial, é culto e bom observador. E escreve com facilidade, cede aos sentimentos mas não transige na importância do relato: a importância do Ilhéu do Rei, a situação na Fortaleza de S. José de Bissau e o estado deplorável em que se vive dentro da cidade, deplorável e de incompleta instabilidade, a quase total ausência de missionários, a natureza dos negócios, como se processa o comércio, quem são e como atuam os negociantes de Bissau e Cacheu, quais os pontos significativos da presença portuguesa que segundo o seu relato não passa de Geba na região Leste, fala dos Felupes, do Cacheu, dos Bijagós e do rio Grande.
É pois um relato deliberadamente preparado para se saber o que existe naquela parte do mundo, lembre-se que o autor dedica a edição portuguesa ao rei D. Luís I.
Era esta a Guiné em 1861, para que conste.

Um abraço do
Mário


Francisco Travassos Valdez e a Senegâmbia (3)

Beja Santos

O livro intitula-se “África Ocidental, notícias e considerações”, por Francisco Travassos Valdez, impressas por ordem do Ministério da Marinha e Ultramar, 1864. Primeiramente, a publicação surgiu em Londres com o título Six years of a traveller’s in western Africa, 1861. Francisco Travassos Valdez tem um curioso currículo: ex-árbitro das Comissões Mistas Luso-Britânicas e do Cabo da Boa Esperança; ex-Secretário da Comissão Especial de Colonização e Trabalho Indígena das Províncias Ultramarinas; Secretário do Governo da Província de Timor.

O volume é apresentado como 1.º, abarca as seguintes descrições: Porto Santo e Madeira; Canárias; Cabo Verde (ilhas de Barlavento), Cabo Verde (ilhas de Sotavento); Senegal e Senegâmbia (Guiné Portuguesa). Nesta recensão trata-se exclusivamente o que o viajante viu e sentiu na Senegâmbia, mais tarde reportaremos o que do Senegal tem interesse relevante para a Guiné do século XIX. Sente-se que está bem informado e viaja cheio de curiosidade pelas porções de território onde há presença portuguesa. Não abordará o vasto território do Gabu nem a península de Cacine, é tudo ainda região ignota, só ficará legalmente confirmado como território português depois da Convenção Luso-Francesa, que ainda vem longe.

Está a subir o rio Geba, dá-nos um quadro pitoresco de Fá, no Geba estreito, o presídio de Fá defronte do Porto das Almadias: “O território onde está situado este pequeno estabelecimento pertencia a uma preta denominada a Fidalga de Fá, Beafada, que patrocinava muito os brancos desde que tomara amores com um morgado do engenho de S. Tiago de Cabo Verde, que passara a Bissau e dali a Geba, chamado José Valério de Santa Maria, e que deu causa a que se estabelecesse ali povoação portuguesa de Europa e de Cabo Verde, pelo ano de 1820, chamando a dita fidalga cristãos de Bissau, para sossegar o seu amante que se queria retirar com o receio de que pela sua morte não houvesse quem lhe rezasse por alma. Por morte dele, a fidalga querendo que não se realizasse o que o seu amante tanto receara, e vendo que os cristãos se queriam retirar, cedeu o território então a Portugal, tendo nós hoje ali um sargento com meia dúzia de soldados e sem haver forte algum!”. Nesta linha de pensamento o autor tira uma ilação da falta de ocupação do território: “E há quem se admire de que os estrangeiros nos vão usurpando os nossos territórios na Senegâmbia ou Guiné Portuguesa, como a ilha de Bissau, Sello ou Casamansa e no rio Grande, etc, quando não temos ou não tínhamos na maior parte nem ao menos quem içasse a bandeira de Portugal”. Fá maravilha-o e não o esconde: “Chega até ao estabelecimento de Fá a maré com água salgada, continuando ainda muito acima, mas já com água doce. O solo é fértil, tendo o sítio muitas laranjeiras, limoeiros, coqueiros, cana-de-açúcar, mandioca, bananas, palmares, muitos ananases e até cerejeiras e macieiras importadas de Portugal”.

Depois de lamentar a decadência de Geba, tece considerações sobre a falta de missionários: “Por mais de uma vez nesta obra temos chamado à atenção sobre a extraordinária e lamentável falta de sacerdotes instruídos e morigerados nas possessões africanas. Mas ainda mais sensível, por assim dizer, se torna esta falta em Geba, até sob o ponto de vista político; porque atenta a influência que naqueles povos exercem as pompas do culto católico, e a inclinação decidida que têm para assistir às festividades nos tempos, se se tivesse cuidado seriamente em ter ali a igreja por vida de sacerdote, e se este fosse de um procedimento regular, cresceria muito o nosso poderio na mesma proporção que se aumentasse ou estendesse o número de convertidos”.

Antes de se voltar para o Sul da colónia ainda deixa uma descrição de Geba: “Geba não tem fortificação alguma ou paliçada nem maior guarnição de que um dez soldados com um comandante militar; mas é um mercado sofrível onde se vende algum ouro, marfim, couros e outros produtos do país, que todos são permutados por sal, cola e mercadorias europeias”.

Agora o Sul, aquele em que os portugueses tinham tido ou mantinham presença: “Passando agora a falar das dependências de Bissau no rio Grande, sentimos dever ter de dizer que o grande comércio que tinham no meado do século XVI os habitantes de S. Tiago de Cabo Verde com o Porto da Cruz na foz do rio, na ponta do Norte, em Biguba, 18 milhas mais acima, na margem direita, e em Guinala, quase que chegou a paralisar-se de todo, indo lá nos modernos tempos raras vezes os nossos navios comerciar com os Beafadas e Mandingas ao Norte, com os Nalus ao Sul, e com os Bijagós nas suas ilhas, à entrada do rio”.
Procede a descrições primorosas das diferentes etnias, começando pelos Beafadas, Nalus e Bijagós, aborda a questão de Bolama (não esquecer que ainda não tinha sido proferida a sentença do presidente Ulysses Grant). A incursão muda de rumo, vai-se para Cacheu, sua praça e dependências. Eis o que ele viu ou sentiu: “Gozemos a pitoresca vista de arvoredos frondosos que cobrem as margens, onde, como alinhamentos de marcas de pedras, se descobrem de espaço a espaço, enfileiradas com a maior singularidade, cardumes de pelicanos brancos, bem como grandes graças. Fundeemos finalmente em frente da praça, cuja perspectiva é realmente pitoresca e agradável, vendo-se bons edifícios, entre os quais sobressai o magnífico palacete que o falecido Comendador Honório Pereira Barreto fazia para a sua residência”. E viaja-se até Casamansa, o rumo é Ziguinchor: “Este presídio de Ziguinchor é importante porque comunica pelo interior com o rio da Gâmbia, e porque nas terras sitas no Norte de Casamansa abundam as gomas e uma espécie de cocos muito oleaginosos, mas de que nunca tirámos partido por desleixo, e de que já não podemos tirá-lo desde que os franceses se instalaram no Sello (bem como os ingleses). A defesa deste presídio consta de uma estacada ou tabanca e três fortins de pedra e barro, com oito más peças de artilharia e de apenas oito soldados de guarnição; mas apesar disso, Ziguinchor é talvez a única excepção honrosa da maneira por que geralmente se portam os seus moradores em relação ao gentio. Com efeito, os gentios respeitam muito o presídio, porque os notáveis e o povo se armam, e vão denodadamente bater, mesmo sem socorro algum do governo, o gentio que se atreva a fazer-lhes o mais pequeno insulto”. Prossegue as suas descrições étnicas, é muito minucioso com as cerimónias religiosas dos Felupes.

E muito curioso é o termo da sua viagem à Senegâmbia, como se pode ler: “Terminaremos a descrição da Guiné Portuguesa dizendo que uma das insígnias do Mordomo-Mor em Portugal (o bastão, a que chamamos negrinha) teve origem em comemoração da descoberta e conquista daquela região.
Com efeito, no reinado de El Rei D. Afonso V, O Africano, pelos anos de 1442, vindos os primeiros negros trazidos da Guiné a Portugal, por António Gonçalves, criado do Senhor Infante D. Henrique, e pelos anos de 1448 os primeiros dentes de elefante da costa do sul de Cabo Verde, ordenou aquele monarca a Álvaro de Souza, Senhor de Miranda, seu Mordomo-Mor, que a todos os actos públicos da corte assistisse à direita do soberano com um bastão ou bengala de marfim, tendo por castão uma cabeça de negro como para indicar o novo domínio da Coroa Portuguesa naquela parte do mundo”
.

Aqui finda a narrativa, mas voltaremos a Travasses Valdez para escutar o que ele diz da presença portuguesa no Senegal.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 14 de outubro de 2020 > Guiné 61/74 - P21449: Historiografia da presença portuguesa em África (235): “África Ocidental, notícias e considerações”, por Francisco Travassos Valdez; impressas por ordem do Ministério da Marinha e Ultramar, 1864 (2) (Mário Beja Santos)

1 comentário:

António J. P. Costa disse...

Olá Camarada

Pelos vistos continuas a ler estas aleivosias.
Põe-te a pau porque vem aí o Rosinha dizer que a culpa disto tudo era do cabo-verdeano que, mesmo sem ter andado na CEI, apaixonou-se pela nobre beafada e depois...
Até quando teremos que andar defendendo "teorias" absurdas de lusitanidade serôdia?
Aguarda-se um ato de honestidade intelectual e a recusa de desculpas coxas só para tranquilizar o espírito e ficarmos com a convicção de que éramos uns grandecíssimos e alternadíssimos civilizadores.
As coisas foram (e são) aquilo foram e não o que muito gostaríamos que tivessem sido.
Mas dou-te de conselho que não leias estas publicações antigas. Lê antes o "Mundo de Aventuras" que é como Melhoral: não faz bem nem faz mal e assim, ninguém te bate...

Um Ab.
António J. P. Costa