sexta-feira, 23 de outubro de 2020

Guiné 61/74 - P21476: Os nossos seres, saberes e lazeres (417): O que é que isto tem a ver connosco e com a nossa 'guerra'?


É uma "casa sami", com certeza, uma mix dos nossos espigueiros do Alto Minho  e das "lojas com a sua salgadeira e o lagar de fazer o vinho verde tinto" do Vale do Tâmega, situadas na cave das casas de granito...  Imagem cedida pelo José Belo (2020).


1. Falámos há dias de coisas, seres, saberes, sabores, técnicas de conservação dos alimentos e também de formas de sociabilidade, que remontam ao tempo das nossas infâncias... 

Tudo isto a pretexto das memórias de Brunhoso, Mogadouro, de há 50 anos, tão bem reconstituídas pelo nosso Francisco Baptista, autor do livro, de que falaremos, em breve, através de uma mais detalhada recensão: "Brunhoso, era o tempo das segadas. Na Guiné o capim ardia" (edição de autor, s/l, 2019, 385 pp.).

Num poste recente (*) ele descreva uma típica "adega-despensa" do nordeste transmontano, uma região, de resto,  mal conhecida dos portugueses (que deviam fazar mais "turismo cá dentro"=  e que é extremamente rica do ponto de vista geomorfológico, biológico, gastronómico, cultural e até linguístico": é aqui se que se fala por exemplo, o mirandês...

Em comentários ao poste do Francisco Baptista, fala-se também da "salgadeira" e da "loja" e do "lagar de fazer o vinho verde tinto",  no vale do Tâmega, e nomeadamente no Marco de Canaveses e Baião... E o José Belo, luso-lapão, régulo da Tabanca da Lapónia, não quis deixar de meter a sua colherada, falando de "exotismos lapões", que lhe são são caros... 

Afinal, como diz o nosso povo, “cada terra com seu uso, cada roca com seu fuso ... 


Mas, pergunta o nosso leitor:  mas que  raio é que isto tem a ver com a Guiné, o "core business" deste blogue ? 

A resposta é mais ou menos  intuitiva: aquela guerra, a de 1961/74, foi feita, de um lado e do outro, por "camponeses", na sua maioria. Np nosso caso, por camponeses, ou  filhos de camponeses, lavradores, rendeiros, ganhões, cabaneiros, campinos, pescadores,  gente dos campos e do mar, mas também gente das cidades (que na altura contavam-se pelos dedos, dispostas no eixo atlântico litoral, de Setúbal a Braga=,  operários e filhos de operários, artesãos, comerciantes, empregados, mangas de alpaca, arraia-miúda das vilórias e pequenas cidades do Portugal dos anos 60... 

Não há estudos rigorosos sobre a sociodemografia dos combatentes portugueses na Guiné, dessa época, mas a realidade rural estava lá bem presente, do princípio ao fim daquela guerra, na composição do exército português, desde a construção dos aquartelamentos (, verdadeiros "bidonvilles")  aos "reordenamentos", passando pelo relacionamento com a população civil, mas também pelo cuktivo da "horta do quartel", sem esquecer a nossa extraordinária resiliência face às duras condições de vida no TO da Guiné. 

Quem é que aceitaria hoje as duras condições de "quartéis do mato" como Madina do Boé, Gadamael, Gandembel, Guileje, Guidaje, Mansambo, Ponte Caium, Ponte Udunduma, Ponta do Inglês, Banjara e tantos outros "bu...rakos"? 

Parafraseando o título do livro do Francisco Baptista [, foto da capa, à esquerda], "em Brunhoso era o tempo das segadas, das ceifas, enquanto na Guiné ardia o capim"...

Do ponto de vista socioantropólico, estava ainda lá muito de um certo Portugal antigo, que vai desaparecer na voragem / viragem das profundas mudanças ocorridas a partir a década de 60: gente que se alimentava mal, com um naco de broa  de milho e um malga de sopa e um copo de vinho tinto... 

Uma geração, a de 1961, por exemplo, que não sabia ainda o que era o leite de vaca pasteurizado, a manteiga ou o iogurte, ainda não se vacinava contra as doenças transmissíveis, andava descalça (sobretudo nas aldeias) e em que nem sempre se ia à escola para aprender a ler, escrever e contar... Uma geração cujos pais e avós só chamavam o médico para passar o estado de óbito. A geração do "bidonville", do "bairro da lata",  da "ilha", em Paris, Lisboa, Porto... A geração que nasceu no campo e foi viver (ou sobreviver) na cidade... Uma geração extraordinária, atenção, a nossa!... (Nada de miserabilismos, mas também não de saudosismo decadentistas!).

Essas são também  as nossas raízes telúricas e que nos dão identidade, carácter, modelando a nossA idiossinca«racia, mesmo que alguns de nós tenham dificukdade em falar desses tempos de pobreza dita "envergonhada", tão bem retratada neste poema irónico, escrito em Lourenço Marques, por Reinaldo Ferreira (que morreria, cedo, de csncro nos pulmões,  aos 37 anos, em 1958, na cidade que é hoje Maputo):

(...) Numa casa portuguesa fica bem
Pão e vinho sobre a mesa,
E, se à porta humildemente bate alguém,
Senta-se à mesa co'a gente.
Fica bem esta franqueza, fica bem,
Que o povo nunca desmente,
A alegria da pobreza
Está nesta grande riqueza
De dar, e ficar contente. (...)

Poema que, de resto, a nossa grande, e única, mítica,  Amália, imortalizou!.. Tenhamos orgulho nessas raízes, ou pelo menos no nosso melhor... Infelizmente, muitos dos nossos filhos, netos e bisnetos, já não as (re)conhecerão, se não formos nós a recordá-las... E recordar é viver duas vezes... 

Em suma, há um Portugal do séc. XX ainda desconhecido, mesmo para aqueles de nós que nasceram na década de 1940, antes, durante ou após a II Guerra Mundial, e que fizeram a guerra do ultramar / guerra colonial... Coisas tão elementares como a eletricidade, a água potável, os esgostos, o frigorífico, a rádio e a televisão... chegaram tarde às nossas casas... e às nossas vidas. 

Não, não são "exotismos lusitanos"... Ainda me lembro de se desmantelar a "salgadeira", um imenso caixão de pinho onde cabiam dois porcos, na Quinta de Candoz, depois de ter provocado os AVC, com todas as  suas terríveis sequelas,  nos patriarcas da família... na década de 1990!... A luz e o frigorífico só chegaram depois do 25 de Abril, por volta de 1977/78... E a barragem do Carrapatelo ali mesmo ao lado,  com os cabos de alta tensão  levando o milagre da luz (e as suas miragens) para as cidades do litoral!... (***)

O que é que isto tem a ver a Guiné ?... Já não sei, já me perdi... LG 

2. Mensagem do José Belo, régulo da Tabanca da Lapónia:
.
Data - 15 out 2020, 12h30
Assunto - Exotismos lapões

Aqui segue um típico frigorífico da Lapónia antiga que ainda hoje é usado.

Aqui se guardam carnes, peixes, fumados, salgados,etc. 

Tendo em conta a vasta fauna selvagem,  tem que ser alto e só acessível com uma escada.

As temperaturas interiores de um frigorífico moderno säo à volta dos 8 graus positivos. Uma boa arca frigorífica poderá ir aos 20 a 30 negativos.

As noites dos invernos locais têm temperaturas à volta dos 40 negativos!

Há que pensar-se duas vezes quanto ao que se coloca nestes congeladores tradicionais.

Abraço, J. Belo.
___________

Notas do editor:

8 comentários:

José Botelho Colaço disse...


Uma geração, a de 1961,- Luís peço desculpa, quando dizes ainda não se vacinavam: eu nasci em 1942 e na escola primária era-mos vacinados com a BCG que deixava aquela marca no ombro ou na perna para toda a vida, no meu caso a vacina não pegava só à terceira vez é que conseguiu ter algum efeito mas aquilo só deu uma comichãozita e passou logo tanto que o sinal hoje mal se nota. Um abraço.

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Zé, tens razão, a nossa geração (eu soiu de 1947) já apanhou na escola a BCG, que se começa a geberalizar em Portugal em meados dos anos 50... Mas para quem ansceu em 1940, tenho dúvidas... Os mais velhos da nossa geraão (a de 1941, que fez 20 anos em 1961, início da guerra em Angola) podem ter-se vacinado mais tarde...

Vou corrigir... Obrigado pelo teu precioso contributo. Luis

Tabanca Grande Luís Graça disse...

A BCG (Bacilo de Calmette e Guérin), a vacina contra a tuberculose, chegou tarde a Portugal, ou pelo menos demorou anos a beneficiar toda a população portuguesa...

A nossa geração (nascida nos anos 40) já beneficiou da vacinação contra a tuberculose, que nos 30/40 representantava 10& da mortalidade geral: ou seja, nesse tempo, morria 1 em cada 10 portugueses de tuberculose!...

O desenvolvimento de uma vacina é moroso: veja-se o caso da BCG.

Como é sabido, a tuberculose é uma doença infecciosa causada pela bactéria patogénica,
Mycobacterium tuberculosis ou “bacilo de Koch” (, por ter sido descoberta em 1882 pelo alemão Robert Koch).

Em 1909, Albert Calmette e Camille Guerin, investigadores do Instituto Pasteur, de Paris, comunicam à Academia de Ciências Francesa o desenvolvimento de um bacilo de virulência
atenuada, com capacidade imunizante contra a tuberculose.

A sua introdução no mercado data de 1927...

O Plano Nacional de Vacinação, gratuito e universal, foi criado em 1965, entre nós... Mas algumas das vacinas disponíveis no mercado já eram administradas em Portugal antes dessa data 1965. Foi o caso da BCG.

Foi também em 1965 que as crianças (eos adultos) passaram a ter um Boletim Individual de Saúde onde se registavam as vacinas.

Muitos de nós (, foi o meu caso,) fomos vacinados na escola: eu devia ter 7 anos, portanto terá sido em 1954... Lembro-me também de ter feito um raio-X aos pulmões...

Anónimo disse...

Um esclarecimento quanto à foto deste frigorífico lapão.

Em Estocolmo existe um Parque-Museu situado numa das colinas que dominam a cidade (Skansen).
Para ele foram transportados exemplares de casas das mais representativas de todas as Províncias suecas.
Não reconstruídas,mas recolocadas na sua totalidade originária;materiais de construção ,decoração,mobiliários e artefactos.
Não só casas de habitação,como escolas,albergues,mercearias,farmácias,barbearias,olarias,talhos,carpintarias,ferreiros,confecções de tecidos e bordados,vidrarias,etc.
Exemplares que abrangem muitos séculos,inclusive Vikings.

Todas estas casas estão VIVAS e em função normal.
Nelas estão colocados funcionários especializados que,envergando a vestimenta típica das épocas e zonas geográficas,esclarecem os visitantes.
Mas não só.
Todas estas casas “vivas” produzem diariamente,e vendem,os produtos nelas existentes ou confecionados frente aos visitantes.
Pão fresco ,usando receitas e ingredientes da época, o mesmo com diferentes enchidos ,fumados,salgados,ou mesmo pratos típicos .
Tudo nos locais próprios e usando os ingredientes e material genuíno.
Famosos tecidos,cristais e ferragens são muito procurados e,como as técnicas usadas são as da época dificilmente se compra dois exactamente iguais.
Como se pode compreender as escolas primárias são dos visitantes mais frequentes e entusiastas.
As crianças tem oportunidade de se sentar em escolas de períodos diferentes e receberem uma lição sobre os assuntos e métodos usados nas respectivas época.
Lição dada por professores bem preparados para responder às perguntas ,das mais incríveis, feitas pelas fascinadas crianças.

O quase “Espigueiro” lapão da foto faz parte deste Parque-Museu.

Um abraço do J.Belo

Anónimo disse...

Quase me atrevia a sugerir a ideia ao Amigo e Camarada Francisco Baptista,como algo de aplicável ao seu (nosso!) Brunhoso.

Turistas interessados não iriam faltar!

J.Belo

Anónimo disse...


Caro José Belo, Brunhoso não tem casas regionais ou típicas , tem e sempre teve casas construídas á toa mas com solidez, por pedreiros e carpinteiros da terra. Quando falo ou escrevo sobre Brunhoso falo da história, que por vezes me parece uma lenda, duma povo extraordinário que transformava terra dura em pão, azeite e todo o género de produtos agrícolas. Que se fosse confinado a não sair dos seus limites , produziria alimentação bastante e diversa para se bastar e teria todo o tipo de artistas para arranjar ferramentas e s equipamentos para sobreviver. Mas isso foi há sessenta anos. Hoje tudo mudou, aquela história que também não fazia justiça à maioria, não se repetirá.

"Perto do Coração Selvagem, e Ana Maria, a anfitriã, cozinha as mais tenras postas montesinhas com a elegância de uma bailarina.
A que propósito vem isto?
O Solar Bragançano é um daqueles lugares onde Camilo podia jantar com Eça e a nossa avó. Pois de comer bem, que estamos em Trás-os-Montes. E terras no Sabor, daquelas abaixo de Bragança que vão ficar inundadas, sim senhor, também as tem Ana Maria, que é da aldeia de Brunhoso. "Íamos para o rio fazer piqueniques", lembra. "Íamos a cavalo. Havia amendoeiras, oliveiras, aquelas fragas... É uma paisagem deslumbrante e agora está completamente abandonada, nem vamos lá"
Extrato de um artigo de Alexandra Lucas Coelho no jornal "O Público" de 3-10-2008

A Ana Maria é minha irmã e tem dado a conhecer Brunhoso por todo o país e por algumas cidades da Terra , com argumentos mais sólidos e convincentes do que eu.
Camarada e amigo José Belo, quando passares por Portugal em trânsito para uma das tuas moradias distantes, fica por cá uns dias para eu te puder convidar a comer uma perdiz cozinhada por ela , já elogiada no New York Times
Um grande abraço

Francisco Baptista

Anónimo disse...

Caro Francisco Baptista

Muito grato pelo convite.
Saborear uma perdiz!
Para mais preparada por quem o sabe.
As minhas últimas perdizes em Portugal foram caçadas entre Amigos na Serra do Monte Junto.
O cozinheiro não era especialista,meio século já passou,mas ainda recordo o fantástico petisco.
No teu Brunhoso muito teríamos para conversar,recordar,meditar.

Há quase meio século que não “voltei”a Portugal.
E,com tantas décadas sob outras bandeiras,cada vez se torna mais difícil para mim escrever “Portugal “ sem o anteceder de “o nosso querido Portugal “.

Fernando Pessoa escreveu:
“Nunca poderia odiar uma terra em que eu houvesse visto um poente escandaloso”

E eu......tive a sorte de ver muitos desde as nossas falésias!
Um grande abraço do J.Belo

Anónimo disse...

Quanto às perdizes.

Por todo o norte da Escandinávia existe uma ave que faz recordar as perdizes.
De seu nome...Ripa.
Apesar de pertencer à família dos faisões a sua plumagem de verão é em tudo semelhante às perdizes .
No entanto ,no Inverno muda a plumagem para completamente branca em perfeita camuflagem quanto à neve.
Na zona onde vivo,280 quilómetros dentro do Círculo Polar Árctico, existe em grandes quantidades uma espécie desta ave chamada de ”Fjällripa”,ou seja,”Ripa das montanhas”.
Existem cerca de trinta sub-espécies diferentes deste animal,vivendo as mais corpulentas nos vales de florestas muito densas do sul da Laponia.
A ripa das montanhas tem cerca de 30 a 35 centímetros de tamanho e vive em altitudes desde o nível do mar às montanhas com cinco mil metros.
Devido ao sabor e abundância torna-se a favorita dos caçadores.
E precisamente como quanto às perdizes tudo se torna mais fácil com a ajuda de bons cães especializados neste tipo de caça aquando do verão.
No inverno,com metros de neve no solo montanhoso,o caçador tem que obter resultados sem a companhia de cães.
E só o buscar-se as aves nos locais onde caem chega para uma boa preparação física.
Para não referir o encontrá-las caídas na neve com a sua plumagem completamente branca.
(São as situações que nos fazem rapidamente aprender a praguejar em...Lapao!)

A cidade mais importante da Laponia Sueca é “Kiruna” que em linguagem local significa “Ripa”.
O escudo de armas da cidade tem como símbolo único a imagem de uma destas aves.


Meu caro Francisco Baptista

Quando aqui vieres estás convidado para aquela “casa portuguesa com certeza “ não “com pão e vinho sobre a mesa” mas com uma ripa bem grelhada com molho de natas,cogumelos e lingonberries .
Obviamente que a vodka do meu alambique, (a + de 90% de teor de álcool) também lá estará ao lado da ripa.
(Obs!Obs! Bebe-se à maneira local ,não em cálices mas....em vulgares copos de água!)

E .....SKÅL!

Um abraco do J.Belo