Capa do livro "Bolama, a saudosa...",
do nosso grã-tabanqueiro António Estácio, edição de autor, 2016.
Recorde-se que o autor, António [Júlio Emerenciano] Estácio, (i) é lusoguineense, nado e criado no chão de Papel, em Bissau, em 1947; formou-se como engenheiro técnico agrário (Coimbra, 1964-1967, Escola de Regentes Agrícolas, onde foi condiscípulo do Paulo Santiago): (iii) fez a tropa (e a guerra) em Angola, como alferes miliciano (1970/72); (iv) trabalhou depois em Macau (de 1972 a 1998); (v) vive há quase duas décadas em Portugal, no concelho de Sintra; (vi) é membro da nossa Tabanca Grande desde maio de 2010; (viii) tem-se dedicado à escrita, dois dos seus livros mais recentes narram as histórias de vida de duas "Mulheres Grandes" da Guiné, a cabo-verdiana Nha Carlota (1889-1970) e a guineense Nha Bijagó (1871-1959).
1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 7 de Junho de 2016:
Queridos amigos,
Durante um largo período encontrei-me regularmente com o confrade António Estácio na Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa. Viu-o adoecido e acabrunhado, depois arrebitou, trocávamos algumas trivialidades, falei-lhe do que estava a escrever e ele era sempre parcimonioso: "Ando à volta com as coisas de Bolama".
É preciso ler este seu trabalho, para entender o que ele escreve em jeito de despedida: "Foi o que consegui escrever sobre Bolama, a velha e saudosa capital da Guiné Portuguesa, cuja memória é a que mais me tocou ao longo da minha vida".
É um livro de investigação, mas é um encontro com a própria história do indivíduo. Em Bolama viveu Fernanda de Castro, a mesma Bolama que enfeitiçou Maria Archer, aqui residiu o grande vulto cultural guineense da transição do século, Padre Marcelino Marques de Barros. Quando a visitei, em Novembro de 1991, fiquei preparado para as emoções que António Estácio aqui transmite, vendo em placas esmaltadas estranhamente intocadas, o nome das ruas Teófilo Braga, Manuel Arriaga, visitei as entranhas da Imprensa Nacional, uma jóia da arqueologia tipográfica.
Ver para sentir.
Um abraço do
Mário
Bolama, um indefectível amor do António Estácio (1)
por Beja Santos
O livro intitula-se “Bolama, a saudosa…”, é seu autor o nosso confrade António Júlio Emerenciano Estácio, que também edita. Obra de estudo mas essencialmente uma memória afetuosa urdida com esplêndidas recordações. Tudo começa com apontamentos avulsos sobre a chegada dos portugueses a uma região que durante séculos teve as mais desvairadas designações, fala-se num presidente norte-americano que arbitrou a questão de Bolama, em Abril de 1870, e que deu legitimidade à presença portuguesa em detrimento da britânica, salta-se para a Companhia do Grão-Pará e Maranhão, há referências a uma conferência proferida pelo Conde de Ávila e Bolama em Maio de 1946 subordinada à ilha de Bolama, na Sociedade de Geografia de Lisboa, agora Bolama é a capital da colónia, segundo reza uma notícia publicada em “Occidente”, em Março de 1879, informa-se que a ilha tem de comprimento oito milhas, uma população de cerca de 3800 habitantes. “É dotada das mais favoráveis condições para a cultura do café e de todos os produtos de climas tropicais, consistindo hoje a sua riqueza especial em grandes matas virgens para a construção”. Em rigor, não sabe a origem do seu nome. O município foi criado em 1871, apresentam-se estampas alusivas, menciona-se o Centro de Saúde de Bolama e passamos para a série de motins e rebeliões que atravessam a segunda metade do século XIX, para já não falar de tudo quanto aconteceu na primeira metade desse século e que o historiador René Pélissier descreve meticulosamente.
António Estácio é imparável a carrear elementos, não nos dá descanso, é a liga guineense, as operações militares que envolveram o Capitão Teixeira Pinto que entrará em rota de colisão com negociantes e civis de Bissau e Bolama. E subitamente António Estácio põe as suas recordações na primeira pessoa: “… em conversa com o meu conterrâneo e saudoso amigo José Francisco Xavier Castro Fernandes, o Zeca, veio à baila a cidade de Bolama, que é banhada pelo rio Grande, onde convivemos na década de 50, a qual, após animada comunhão, voltámos a recordá-la, tenho constatado, no misto de surpresa e pesar, que, para além da voragem dos anos, a conseguíamos percorrer com um fim identificativo.
Assim, em vez de sermos capazes de identificar qualquer ponto da malha urbana mais determinante que, na nossa santa inocência, referenciávamos como, por exemplo, à Rua do Cinema, ao Largo da Imprensa, dos Correios ou do Mercado, à Rua da Igreja, à Casa Gouveia, ao Jardim do monumento aos italianos, sem receio algum de nos enganarmos”.
Registava a marca de água esta saudade, fala-nos de Honório Pereira Barreto e o seu tempo, a inauguração da estátua em Bissau, nessa praça, nos anos 1950, Tereza Fiori fazia sorvetes, cassatas e carapinhatas na dependência do Hotel Avenida. E cita o Comandante Avelino Teixeira da Mota a preitear Honório Pereira Barreto na Sociedade de Geografia de Lisboa, numa sucessão solene que ali decorreu em Maio de 1974: “… Falar de outros aspetos da ação de Honório Barreto na Guiné seria um nunca mais acabar. O que ele disse e o que ele fez sobre a intenção dos africanos, não esquecendo a obrigação dos filhos dos régulos, reclamando missionários, para os quais levantou novas igrejas, levando o problema comercial às esferas da metrópole, para que se promovesse a progressiva nacionalidade de tal atividade económica e conseguindo assim que duas casas de Portugal começassem a negociar com a Guiné quando até aí vinham do estrangeiro. Frequentemente, quando faltavam médicos, a tratar como podia e sabia dos doentes e fornecendo-lhes os medicamentos do seu bolso, pois muitas vezes as farmácias do Estado estavam vazias. Os seus cuidados com o arranjo, limpeza e urbanização das povoações. O seu interesse em difundir a agricultura. As muitas reformas que fez em setores da administração pública”.
Continuamos no século XIX, iremos acompanhar a prosperidade do Ilhéu do Rei, o crescimento de Bolama, já estamos na República, há uma clara referências aos estatutos do Centro Escolar Republicano, há o estatuto da Liga Guineense e novas alusões a Teixeira Pinto. Ficamos a saber quem foi António da Silva Gouveia e há uma referência a Jorge Frederico Velez Caroço, um dos mais distintos Governadores da Guiné (1921-1925), vemos a estreita relação entre a Guiné e a aviação. Há sobejas razões para deixar enaltecimento a Velez Caroço, à sua honradez, à sua capacidade de decisão, à sua intransigência com a verdade, o seu móbil pelo desenvolvimento.
Agora uma nota sobre a I Exposição Colonial Portuguesa, já largamente documentada no blogue. A Guiné teve uma importante representação. Basta pensar em Mamadu Sissé, Tenente de Segunda Linha, Régulo prestigiado. Segundo o jornal "O Século", no navio “Guiné”, vieram 63 indivíduos de ambos os sexos, das etnias Bijagós, Balantas e Fulas que se instalaram numa aldeia construída no Palácio de Cristal. Escreve o autor: “Foram apreciados por um grande surto da população, na estação de Santa Apolónia, onde a polícia instalou um cordão para que não pudessem ser incomodados. Partiram para o Porto”. É por esta data que Fausto Duarte é galardoado com o primeiro Prémio de Literatura Colonial com o seu romance “Auá”.
Temos a imprensa local, com destaque para “O Comércio da Guiné”, foi seu diretor Armando António Pereira, bolamense e advogado. Ali se registaram entrevistas, chegada de governadores, a notícia de que a rede urbana de abastecimento de luz estava para breve, fala-se da rebelião de 1931, associada à Revolta da Madeira. O Governador Leite de Magalhães foi o sucessor de Velez Caroço, teve uma ação importante mas não se pode comparar à do seu antecessor. António Estácio não perde a oportunidade para ajuntar detalhes considerados interessantes para os vindouros. Por exemplo a punição do professor Juvenal Cabral com a pena de 15 dias de suspensão e salário, seria irrelevante não se tratasse do pai de Amílcar Lopes Cabral. Estamos a chegar a uma data de enorme consternação, 19 de Dezembro de 1941, golpe terrível em que a capital é transferida para Bissau, no ano seguinte o BNU encerra a sua agência em Bolama. É o princípio do abandono e da desagregação. Lá voltaremos.
(Continua)
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Nota do editor
Último poste da série de 10 de Junho de 2016 Guiné 63/74 - P16188: Nota de leitura (846): “Jornada de África”, por Manuel Alegre, versão de 2003, edição conjunta da Visão e Publicações Dom Quixote (Mário Beja Santos)
1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 7 de Junho de 2016:
Queridos amigos,
Durante um largo período encontrei-me regularmente com o confrade António Estácio na Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa. Viu-o adoecido e acabrunhado, depois arrebitou, trocávamos algumas trivialidades, falei-lhe do que estava a escrever e ele era sempre parcimonioso: "Ando à volta com as coisas de Bolama".
É preciso ler este seu trabalho, para entender o que ele escreve em jeito de despedida: "Foi o que consegui escrever sobre Bolama, a velha e saudosa capital da Guiné Portuguesa, cuja memória é a que mais me tocou ao longo da minha vida".
É um livro de investigação, mas é um encontro com a própria história do indivíduo. Em Bolama viveu Fernanda de Castro, a mesma Bolama que enfeitiçou Maria Archer, aqui residiu o grande vulto cultural guineense da transição do século, Padre Marcelino Marques de Barros. Quando a visitei, em Novembro de 1991, fiquei preparado para as emoções que António Estácio aqui transmite, vendo em placas esmaltadas estranhamente intocadas, o nome das ruas Teófilo Braga, Manuel Arriaga, visitei as entranhas da Imprensa Nacional, uma jóia da arqueologia tipográfica.
Ver para sentir.
Um abraço do
Mário
Bolama, um indefectível amor do António Estácio (1)
por Beja Santos
O livro intitula-se “Bolama, a saudosa…”, é seu autor o nosso confrade António Júlio Emerenciano Estácio, que também edita. Obra de estudo mas essencialmente uma memória afetuosa urdida com esplêndidas recordações. Tudo começa com apontamentos avulsos sobre a chegada dos portugueses a uma região que durante séculos teve as mais desvairadas designações, fala-se num presidente norte-americano que arbitrou a questão de Bolama, em Abril de 1870, e que deu legitimidade à presença portuguesa em detrimento da britânica, salta-se para a Companhia do Grão-Pará e Maranhão, há referências a uma conferência proferida pelo Conde de Ávila e Bolama em Maio de 1946 subordinada à ilha de Bolama, na Sociedade de Geografia de Lisboa, agora Bolama é a capital da colónia, segundo reza uma notícia publicada em “Occidente”, em Março de 1879, informa-se que a ilha tem de comprimento oito milhas, uma população de cerca de 3800 habitantes. “É dotada das mais favoráveis condições para a cultura do café e de todos os produtos de climas tropicais, consistindo hoje a sua riqueza especial em grandes matas virgens para a construção”. Em rigor, não sabe a origem do seu nome. O município foi criado em 1871, apresentam-se estampas alusivas, menciona-se o Centro de Saúde de Bolama e passamos para a série de motins e rebeliões que atravessam a segunda metade do século XIX, para já não falar de tudo quanto aconteceu na primeira metade desse século e que o historiador René Pélissier descreve meticulosamente.
António Estácio é imparável a carrear elementos, não nos dá descanso, é a liga guineense, as operações militares que envolveram o Capitão Teixeira Pinto que entrará em rota de colisão com negociantes e civis de Bissau e Bolama. E subitamente António Estácio põe as suas recordações na primeira pessoa: “… em conversa com o meu conterrâneo e saudoso amigo José Francisco Xavier Castro Fernandes, o Zeca, veio à baila a cidade de Bolama, que é banhada pelo rio Grande, onde convivemos na década de 50, a qual, após animada comunhão, voltámos a recordá-la, tenho constatado, no misto de surpresa e pesar, que, para além da voragem dos anos, a conseguíamos percorrer com um fim identificativo.
Assim, em vez de sermos capazes de identificar qualquer ponto da malha urbana mais determinante que, na nossa santa inocência, referenciávamos como, por exemplo, à Rua do Cinema, ao Largo da Imprensa, dos Correios ou do Mercado, à Rua da Igreja, à Casa Gouveia, ao Jardim do monumento aos italianos, sem receio algum de nos enganarmos”.
Registava a marca de água esta saudade, fala-nos de Honório Pereira Barreto e o seu tempo, a inauguração da estátua em Bissau, nessa praça, nos anos 1950, Tereza Fiori fazia sorvetes, cassatas e carapinhatas na dependência do Hotel Avenida. E cita o Comandante Avelino Teixeira da Mota a preitear Honório Pereira Barreto na Sociedade de Geografia de Lisboa, numa sucessão solene que ali decorreu em Maio de 1974: “… Falar de outros aspetos da ação de Honório Barreto na Guiné seria um nunca mais acabar. O que ele disse e o que ele fez sobre a intenção dos africanos, não esquecendo a obrigação dos filhos dos régulos, reclamando missionários, para os quais levantou novas igrejas, levando o problema comercial às esferas da metrópole, para que se promovesse a progressiva nacionalidade de tal atividade económica e conseguindo assim que duas casas de Portugal começassem a negociar com a Guiné quando até aí vinham do estrangeiro. Frequentemente, quando faltavam médicos, a tratar como podia e sabia dos doentes e fornecendo-lhes os medicamentos do seu bolso, pois muitas vezes as farmácias do Estado estavam vazias. Os seus cuidados com o arranjo, limpeza e urbanização das povoações. O seu interesse em difundir a agricultura. As muitas reformas que fez em setores da administração pública”.
Continuamos no século XIX, iremos acompanhar a prosperidade do Ilhéu do Rei, o crescimento de Bolama, já estamos na República, há uma clara referências aos estatutos do Centro Escolar Republicano, há o estatuto da Liga Guineense e novas alusões a Teixeira Pinto. Ficamos a saber quem foi António da Silva Gouveia e há uma referência a Jorge Frederico Velez Caroço, um dos mais distintos Governadores da Guiné (1921-1925), vemos a estreita relação entre a Guiné e a aviação. Há sobejas razões para deixar enaltecimento a Velez Caroço, à sua honradez, à sua capacidade de decisão, à sua intransigência com a verdade, o seu móbil pelo desenvolvimento.
Agora uma nota sobre a I Exposição Colonial Portuguesa, já largamente documentada no blogue. A Guiné teve uma importante representação. Basta pensar em Mamadu Sissé, Tenente de Segunda Linha, Régulo prestigiado. Segundo o jornal "O Século", no navio “Guiné”, vieram 63 indivíduos de ambos os sexos, das etnias Bijagós, Balantas e Fulas que se instalaram numa aldeia construída no Palácio de Cristal. Escreve o autor: “Foram apreciados por um grande surto da população, na estação de Santa Apolónia, onde a polícia instalou um cordão para que não pudessem ser incomodados. Partiram para o Porto”. É por esta data que Fausto Duarte é galardoado com o primeiro Prémio de Literatura Colonial com o seu romance “Auá”.
Temos a imprensa local, com destaque para “O Comércio da Guiné”, foi seu diretor Armando António Pereira, bolamense e advogado. Ali se registaram entrevistas, chegada de governadores, a notícia de que a rede urbana de abastecimento de luz estava para breve, fala-se da rebelião de 1931, associada à Revolta da Madeira. O Governador Leite de Magalhães foi o sucessor de Velez Caroço, teve uma ação importante mas não se pode comparar à do seu antecessor. António Estácio não perde a oportunidade para ajuntar detalhes considerados interessantes para os vindouros. Por exemplo a punição do professor Juvenal Cabral com a pena de 15 dias de suspensão e salário, seria irrelevante não se tratasse do pai de Amílcar Lopes Cabral. Estamos a chegar a uma data de enorme consternação, 19 de Dezembro de 1941, golpe terrível em que a capital é transferida para Bissau, no ano seguinte o BNU encerra a sua agência em Bolama. É o princípio do abandono e da desagregação. Lá voltaremos.
(Continua)
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Nota do editor
Último poste da série de 10 de Junho de 2016 Guiné 63/74 - P16188: Nota de leitura (846): “Jornada de África”, por Manuel Alegre, versão de 2003, edição conjunta da Visão e Publicações Dom Quixote (Mário Beja Santos)
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