sexta-feira, 17 de junho de 2016

Guiné 63/74 - P16212: Nota de leitura (848): “Bolama, a saudosa…”, autoria e edição de António Júlio Estácio (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Junho de 2016:

Queridos amigos,
Não é um ensaio historiográfico, porém e doravante não se poderá prescindir para quem estudar Bolama e a Guiné-Bissau de ler este relato apaixonado e íntimo.
É um retorno à juventude, uma homenagem aos seus amigos, há uma descrição que António Estácio faz de Bolama que nos arrasta, viajamos com ele por ruas, praças e jardins, entramos em festas e piqueniques, visitamos amigos conhecidos, comemos fruta e vamos à praia.
Retrato de um mundo que se desvaneceu para todo o sempre e que mereceu um registo empolgante, tão empolgante que os guineenses são merecedores de o conhecer, cabem ali bolamenses e portugueses que fazem parte da sua história.
Que feliz ideia teve o António Estácio ao coligir estas memórias, repartindo connosco a sua infância.

Um abraço do
Mário


Bolama, um indefetível amor do António Estácio (2)

Beja Santos

Em “Bolama, a saudosa…”, o nosso confrade António Júlio Emerenciano Estácio surpreende-nos com uma pesquisa em torno das suas memórias bolamenses, edição de autor, 2016. Não se trata de uma pesquisa histórica, um levantamento minucioso sobre essa Bolama que deu querela internacional, foi capital da colónia quando no terceiro quartel do século XIX se deu a desafetação de Cabo Verde, uma Bolama que teve a Imprensa Nacional, uma unidade militar que formou o contingente local e em cuja baía aterravam e levantavam os Clippers da Pan American. Este livro é um contrato pessoal com um tempo, uma infância, muitos amigos. Mas não deixa de ser um levantamento apaixonante. Logo em 1935, quando havia sérios indícios da transição da capital de Bolama para Bissau, a associação comercial de Bolama move-se, segue uma carta para um deputado, é literatura modelar da época, pintalgada de romantismo:
“Bolama, Senhor Deputado, com a sua atmosfera de trabalho, calma e sadia, sem aquele marulhar de movimento que distrai e cansa aqueles que, pelo cérebro, têm que produzir; onde o Estado possui boas instalações valorizadas em alguns milhões de escudos e a vida dos seus servidores decorre graduada pelo sossego espiritual e por um ambiente materialmente saudável que com pouco mais se completará; Bolama, Senhor Deputado, em nada desmerece para que deva ser abandonado ao triste destino das inutilidades, a uma ruína completa que arrastará a uma vida de necessidades dezenas de contribuintes do Estado, que são hoje detentores de muitos milhares de contos que valorizam o património nacional precipitando tantos outros – a maior parte, na mais negra miséria”.
A decisão estava tomada, Bissau era o centro nervoso dos negócios, a partir de então todos mostraram compunção com a sorte de Bolama, mas a decadência tornou-se inexorável.

A recolha de António Estácio engrandece a história da colónia e há um poderoso ponto de reflexão para quem quer ver a Guiné-Bissau no mapa. Colige depoimentos de quem por lá passou, juízes, sacerdotes como o eminente Vigário Geral da Guiné, Marcelino Marques de Barros, junta efemérides, presta elementar justiça e Fausto Duarte, cabo-verdiano de nascimento, grande servidor da cultura guineense, foi responsável pelos anuários de 1946 e 1948, colaborador do boletim cultural da Guiné Portuguesa, romancista premiado, precocemente desaparecido. Estampa no seu livro imagem de magnificência e de ternura; homenageia gente absolutamente esquecida como António Augusto Cardoso, nascido em Freixo de Espada-à-Cinta, trazido pelo Governador Sarmento Rodrigues com o intuito de ensinar a construir carros de bois, foi ativo na Granja de Pessubé, e ficamos a saber que foram utilizadas madeiras como Bissilão, Pau-Sangue, Pau-Veludo, Pau-Conta, Pau-Bicho Rijo, Macete, Fára, Pau-Miséria e Farroba de Lala. Anota impressões de viagem incluindo estudantes de Coimbra que cantaram o fado em Bissau. Há inclusivamente o relato com o desastre de aviação que sofreu o Governador Vaz Monteiro em 1944. A notícia do jornal Arauto tem tensão e emoção, a descrever o desaparecimento e o reaparecimento de governador e filho:
“Afinal o que acontecera? Foi o caso que Sua Excelência o governador, tendo urgência de vir a Bolama, saiu de Bissau às 16,35 na avioneta pilotada pelo seu filho Fernando. Mas no caminho o vento redobrou de fúria, como é usual neste período, e o pequeno avião viu-se forçado a aterrar precipitadamente, vindo a cair em cima do tarrafo da costa do continente, próxima da Ilha das Cobras, visto não conseguir alcançar uma lala que ficava próxima. Na queda foram cuspidos fora do avião, tendo ficado sem sentidos. Quando voltaram a si e viram que não havia ferimentos graves, graças à perícia e serenidade do piloto, tentaram sair daquele lugar e procurar refúgio, mas com a névoa não conseguiram desemaranhar-se do tarrafo altíssimo e ali passaram a noite ao frio e à chuva. Logo porém, que romperam os primeiros clarões do dia, puseram-se a caminho, e ao fim de três horas de acidentada viagem conseguiram alcançar a praia; dali fizeram sinal cujo ruído ouviam há muito mas sem o poder ver. Foi nesta altura que a própria vedeta divulgou a feliz notícia”. Houve regozijo geral, realizou-se um solene “Te Deum” a que assistiram funcionários, comércio e numerosíssimo público.

Fala-se da viagem de um dos maiores dos jornalistas portugueses à Guiné, Norberto Lopes, da inauguração da estátua de Ulysses Grant, que muito mais tarde o Comandante Alpoim Calvão comprou parte do busto por cinco milhões de francos CFA. Há também memórias de Alexandre Barbosa e Hélder Proença e depois António Estácio lança-se num relato empolgante na descrição de Bolama, descreve os seus diferentes setores, toca-nos o coração, até porque há impressões pessoais:  
“Não posso deixar de realçar que, certo dia do mês de Maio de 1957, a minha mãe atarefada com a esgotante tarefa de dar aula a duas classes em simultâneo, ralhava para nós nos alhearmos da barulheira que se ouvia na sala de aulas. Nós desconhecíamos o que se passava, procuravam apedrejar uma cobra que tentava esconder-se em qualquer canto. Mas, aos poucos, o barulho aumentava cada vez mais e eis que vemos entrar na sala uma cobra escura e que se apresentava já ferida. Os alunos da 4.ª classe pegaram em mapas que estavam dependurados nas paredes, enrolaram-nos bem, acertando com boas cacetadas, imobilizando a cobra”.


Craveiro Lopes, em Maio de 1955, visitou Bolama e António Estácio conta-nos como foi.

Estamos num ponto crucial da obra, fala-se das grandes famílias de Bolama, sucedem-se os testemunhos como o de Elisé Turpin, um dos fundadores do PAIGC, fala-se de Armando Victor Estácio, momentos há em que Estácio volta à sua juventude, as imagens são indeléveis:  
“Bolama, no tempo da fruta madura, fosse mango, caju, jaca, laranja, goiaba, fruta-pão, tudo era bom. Cada um trazia por hábito no bolso uma embalagem de sal e malagueta, para comerem a manga verde quando iam tomar banho no ‘Pinto’, Fonte de Polícia, Tambacumba grande e Tambacumba pequena, que ficava na zona de Oncalé. Também íamos buscar cocos à Casa Nova, propriedade da Casa Gouveia”.
Não fica esquecido Francisco Valoura, de cuja obra já se fez menção no blogue. O autor dá uma especial atenção a avisos, anúncios, agradecimentos, notícias infaustas, menções comerciais, exibe mesmo um despacho datado de 1972 que é um texto primoroso e aqui se reproduz.

Podemos imaginar o labor e amor que António Estácio imprimiu a um documento tão pessoal, tão cheio de pesquisa, a uma tão grande partilha de intimidade. Fez bem, a Guiné merece-o, oxalá que estas fartas memórias fiquem rapidamente ao alcance da terra onde nasceu.
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Nota do editor

Poste anterior de 13 de junho de 2016 Guiné 63/74 - P16196: Nota de leitura (847): “Bolama, a saudosa…”, autoria e edição de António Júlio Estácio (1) (Mário Beja Santos)

2 comentários:

Antº Rosinha disse...

O Estácio fala como que a modos como alguns retornados.
Falam com saudades.
Mas os que nasceram naqueles cús de judas e foram embora não se devem chamar retornados.
Há gente que não compreende que se pudesse ser feliz no meio de tanto atrazo de vida.
E é dificil fazer-se compreender.
Mas aquela Bolama pequenina tinha tão poucas condições para ser uma grande capital, que tinha que morrer mesmo.
Ainda conheci a fachada do BNU, já deve ter caído.
Foi uma estragação de 500 anos!

antonio graça de abreu disse...

Abração, meu caro António Estácio.
Conhecemo-nos em Macau, mal eu sabia que havia tanta Guiné por detrás de ti, e de mim também ignoravas quase tudo.Mas entendemo-nos sempre bem.
És testemunha e actor principal dessa nossa gesta guineense, do lado da paz, ao lado da guerra.
E obrigado, Mário Beja Santos.

Abraço,

António Graça de Abreu