segunda-feira, 18 de setembro de 2023

Guiné 61/74 - P24667: Manuscrito(s) (Luís Graça) (231): Zé do Telhado (Penafiel, 1816 - Angola, Malanje, 1875): um caso de "banditismo social"? Entre o mito e a realidade - Parte II: o carrasco, Adriano de José de Carvalho e Melo, fundador e administrador do Marco de Canaveses


José do Telhado (1818-1875)... (A partir de uma foto da época)



Capa do livro de Camilo Castelo Branco, “Memórias do Cárcere”, II Vol, 8ª ed. Lisboa, Parceria A. M. Pereira, Lda, 1966, (1ª ed., Porto, 1862).



1. Zé do Telhado (Penafiel, 1818-Malanje, Angola, 1875) já nada diz hoje à geração atual dos nossos filhos e netos. Mas é capaz de dizer a alguns de nós (sobretudo os nascidos e/ou criados no Norte, ou pelo menos Entre Douro e Minho) e sobretudo à geração dos nossos pais, que vieram ao mundo nas décadas de 1910 e 1920. (*)


O meu sogro, José Carneiro, por exemplo, nascido em 1911, e natural da região do Vale do Tâmega, do concelho de Marco de Canaveses, falava-me ainda, em meados dos anos 70, vinte anos antes de morrer, da lenda do Zé do Telhado, que “roubava aos ricos para dar aos pobres”. E essa lenda transmitiu-a aos filhos.

Acontece que este verão pus-me a ler a autobiografia romanceada do Camilo Castelo Branco, as “Memórias do Cárcere”, em dois volumes, na 8ª edição, 1966. E por aí cheguei ao retrato-robô, lisonjeiro, quase hagiográfico,  que ele traçou do seu companheiro de infortúnio (mas também "guarda-costas"), nos calabouços do Tribunal da Relação do Porto.

No prefácio à 2ª edição (Porto, 1864), Camilo conta-nos que esta obra foi escrita em 40 dias, e nela reuniu mais de 3 dezenas de “historietas”, centradas no submundo do crime da época, ali bem representado na cadeia da Relação do Porto. Mais de 30 páginas (cap. XXVI, pp. 84-107) são dedicadas ao Zé do Telhado. 

Camilo, acusado de adultério, na iminência de ser preso, e por conselho de amigos, saiu do Porto, andando “fugido à justiça” cerca de 6 meses, escondendo-se aqui e acolá em casa de familiares, admiradores e amigos: primeiro um mês, nas águas furtadas da casa do amigo portuense Custódio José Vieira, e depois três meses na Quinta do Ermo, em Fafe, do mais tarde tristemente célebre José Cardoso Vieira de Castro (1837-1872), condenado por homícidio da sua jovem esposa brasileira, e desterrado para Angola, um crime passional que deu brado na época, em Portugal e no Brasil.

No seu estilo inconfundível, Camilo descreve a partida da “diligência” para a Régua nestes termos sarcásticos:

(…) “Me embarquei na ‘diligência’ que partia, mais duvidosa do seu destino, para a Régua, do que a nau de Cristóvão Colombo para o novo mundo” (CCB, 1966, pág.14).

Cansado da “clandestinidade”, Camilo acaba por entrar na prisão em 1 de outubro de 1860. O
 Zé do Telhado já lá estava, nessa altura. Viria a ser condenado, por sentença transitada em julgado, no Tribunal Judicial do Marco de Canavases, a pena de desterro em África, em 27 de abril de 1861… Tinha sido preso em 31 de março de 1859 quando tentava fugir para o Brasil, ficando então  detido nos calabouços da Relação.

Já agora, e como curiosidade, o Camilo nunca explicita, talvez por pudor, hipocrisia social ou mero calculismo (ele vivia exclusivamente da escrita, foi o primeir0 escritor português a 'profissionalizar-se"), a razão da sua detenção durante um ano, e muito menos menciona o nome da sua companheira, Ana Plácido (que era casada, contra a sua vontade, com um  comerciante rico, o "brasileiro" Pinheiro Alves, e que estava igualmente detida, por adultério, na ala feminina).

No sítio do Museu Judiciário do Tribunal da Relação do Porto, pode  saber-se algo mais sobre este homem,  Zé do Telhado, que entrou para a história não tanto como militar e guerrilheiro, condecorado com o grau de cavaleiro da Ordem da Torre e Espada (por ter salvo a vida do general Sá da Bandeira, em 1846, na revolta da Maria da Fonte, a que se seguiu a guerra da Patuleia) mas sobretudo pela sua alcunha, a sua fama, as suas façanhas em data p
osterior, como “bandido social” ou “bandido-herói”, que acabaria por morrer desterrado em Angola.


O Processo (1859-1861)

(…) Chefe de uma quadrilha de salteadores, Zé do Telhado deve a sua fama lendária de roubar aos ricos para dar aos pobres – uma espécie de Robin dos Bosques português. O escritor Camilo Castelo Branco presta-lhe homenagem nas “Memórias do Cárcere” (com quem esteve preso na Cadeia da Relação do Porto e de quem se tornou amigo).

Foi preso em 1859, julgado no Tribunal Judicial de Marco de Canavezes (julgamento iniciado a 25 de abril de 1859) e condenado a degredo na costa ocidental de África para toda a vida. Embora a pena tenha sido comutada posteriormente para 15 anos de degredo, Zé do Telhado acabaria por falecer em Angola.(…)


E mais se pode ler no sítio do referido museu virtual:

Processo de Querela contra o réu José Teixeira da Silva (Zé do Telhado):

(…) Libelo acusatório por diversos crimes cometidos com violência: tentativa de roubo; tentativa de roubo com princípio de execução, com arrombamento; roubo com homicídio; roubo com espancamento e ferimentos. E ainda autoria e chefia de associação de malfeitores e tentativa de evasão do reino sem passaporte e com violação dos Regulamentos Policiais. É condenado a trabalhos públicos por toda a vida no Ultramar e ao pagamento das custas.

O processo iniciou-se em 30 de Maio de 1859, com acusação pública em 9 de Dezembro do mesmo ano. Foi condenado por sentença do juiz António Pereira Ferraz, de 27 de Abril de 1861, na pena de trabalhos públicos por toda a vida, na costa ocidental de África e no pagamento das custas. Esta pena foi mantida pela Relação do Porto, substituindo apenas a expressão “costa ocidental de África”, por “Ultramar”.

Por acórdão da mesma Relação de 11 de Agosto de 1865,  foi comutada a pena aplicada na de 15 anos de degredo para a África Ocidental, a contar desde a data do Decreto de 28 de Setembro de 1863.(…)


O réu acabou por ser condenado por “diversos crimes [cometidos] com violência”, comprovados em tribunal, e absolvido de outros:

  • tentativa de roubo, com começo de execução, em casa de António Fabrício Lopes Monteiro, de Santa Marinha do Zêzere, comarca de Baião [em 27 de novembro de 1952];
  • homicídio na pessoa de João de Carvalho, criado de Dª Ana Victória de Abreu e Vasconcelos, de Penha Longa, Baião [erro: trata-se de Marco de Canaveses], e roubo na casa da referida senhora (Casa de Carrapatelo) de objetos de ouro e prata no valor de oitocentos mil e um conto de reis e algumas sacas com dinheiro, cujo valor a queixosa calculou em doze contos de reis, não sabendo ao certo quanto era, porque o dinheiro se encontrava na casa mortuária onde jazera, poucos dias antes, seu pai, e, após isso, ela ainda nem sequer lá voltara a entrar [crimes estes ocorridos em 8 de janeiro de 1852];
  • roubo [cometido em março de 1859] em casa do Padre Albino José Teixeira [em Sequeiros, freguesia de] Unhão, comarca de Felgueiras, no valor de um conto e quatro centos mil reis em dinheiro e ainda objetos de prata e outro;
  • outro homicídio na pessoa de um correligionário [o “Avarento”], ferido num confronto com as autoridades [na Eira dos Mouros, serra de Montedeiras, em 22 de maio de 1852, e levado para uma estalagem, na freguesia de Santa Catarina, concelho de Felgueiras, o Zé do Telhado lhe deu um tiro de misericórida];
  • para além de outros crimes de roubo e de resistência à autoridade, foi também condenado como autor e chefe de associação de malfeitores e de tentativa de evasão do reino [para o Brasil] sem passaporte e com violação dos regulamentos policiais.

(...) “A sua qualidade de chefe é que o tornou responsável pelo homicídio do Carrapatelo, pois o autor material foi um capanga que abateu o criado quando este tentou reagir, num momento em que o caudilho ainda nem entrara na residência. “ (…).

Foi brilhante a sua defesa, para mais a título gracioso, pelo advogado portuense, Marcelino de Matos, amigo e defensor do Camilo. 


Contexto histórico, político e militar:

Continuando a citar a mesma fonte:

(…) "A ação do Zé do Telhado, alcunha de José Teixeira da Silva, integra-se no fenómeno organizativo de grupos de assaltantes que tem a sua génese, de formação espontânea, durante as invasões francesas.

"Perante a total falta de reação do exército português à entrada dos napoleónicos, grupos de populares procuram quebrar a total impunidade dos invasores. Esses grupos, meras milícias populares, entretanto com experiência guerrilheira acumulada, foram aproveitados na guerra civil liberal por forças políticas e militares em campo: os “corcundas” (absolutistas) e os “malhados” (liberais).

"Terminada a guerra, ficou o gosto e o proveito da guerrilha por conta própria: é o João Brandão, é o Remexido, é o Zé do Telhado. Este atingira, ao serviço liberal, a glória, com a atribuição da Torre e Espada. Finda a guerra pretendeu um emprego no Depósito do Tabaco, no Porto. Não conseguiu.

Usava evoluída assinatura, com o último apelido abreviado (S.a), curioso indício de cultura acima da vulgaridade.” (…)



Marco de Canaveses, concelho criado em 1852

O Marco de Canaveses foi elevado a concelho, em 1852, por ação, direta ou indireta de dois homens, contemporâneas e vizinhos, o administrador Adriano José de Carvalho e Melo (1825-1894) e... o Zé do Telhado (1816-1875), nascidos na mesma região, berço fecundo de gente nobre e ilustre,  o Vale do Tâmega, o primeiro, e o Vale do Sousa, o segundo.

Em 1809, ainda não existia a cidade do Marco de Canaveses, muito menos o concelho, apenas a pequena vila medieval de Canaveses, sobranceira ao rio Tâmega, na margem esquerda, e por onde passava a estrada real Porto-Régua. A ponte medieval era do tempo de Dona Mafalda, esposa de Dom Afonso Henriques.

E foi essa ponte que os habitantes locais demoliram parcialmente na tentativa de impedir o trânsito das tropas do marechal Soult, que comandava o exército napoleónico,  na sequència da segunda invasão francesa (de 3 de fevereiro a 12 maio de 1809). 

Os invasores não transpuseram o Tâmega em Canaveses, fizeram-no mais a montante, em Amarante. Menos conhecida dos portugueses é a bravura posta na defesa da ponte de Canaveses contra os invasores, que está bem patente num relato de um soldado francês:

"O General Caulaincourt, que nos comandava, pretendeu apoderar-se de Canaveses a fim de não deixar inimigos entre si e o Porto. Formou um destacamento de 500 cavalos e marchámos para Canaveses; não encontrámos ninguém até à nossa chegada a uma altura que domina a povoação: aí avistámos a alguma distância bandos de 15 a 20 paisanos que aparentavam não esperar senão o sinal para nos atacarem. Vestidos de negro ou de cor sombria, entre rochedos acinzentados, tinham o ar de fantasmas devotados à nossa perseguição e que nos vinham acusar da infelicidade do seu país: seguiam de longe os nossos movimentos e paravam quando nós fazíamos alto (...).

"Após duas horas de um combate muito vivo no qual tivemos 80 homens feridos todos pela frente, o destacamento regressou às alturas onde lutámos com os habitantes que nos tinham atacado de todos os lados, desde que a luta se tinha desencadeado sobre a ponte. (...) 

"Operámos uma retirada sobre Penafiel, conduzindo os feridos. Fomos perseguidos até aos nossos bivaques por uma multidão de paisanos que pareciam sair da terra ou tombar das nuvens, desde que nos afastássemos um pouco." (citado por Nayles, M. de (1817). - "Memoires sur da Guerre d'Espagne pendante les années 1808, 1809 e 1811". Paris: [s.n.]. In: Wikipedia > Marco de Canaveses)

Acrescente-se que o concelho do Marco de Canaveses, juridicamente falando, só existe desde 31 de março de 1852, dois meses e tal depois do assalto à Casa do Carrapatelo:

(i) em 1836, a vila de Canaveses e o concelho de Tuías unem-se ao concelho de Soalhães, formando o concelho do Marco de Soalhães; era seu administrador Adriano José de Carvalho e Melo (que será mais tarde comissário da Polícia no Porto e Governador Civil do Distrito de Bragança);

(ii) em 1852, há uma nova união, a dos dos concelhos de Benviver (a que pertencia Candoz, Fandinhães e a serra de Montedeiras...) e Marco de Soalhães, dando-se assim início ao processo de fundação do atual concelho de Marco de Canaveses.  

(iii) recorde-se que,  a 7 de janeiro de 1852, o  Zé do Telhado e o seu bando  preparam-se junto à capela românica de Fandinhães, na vertente norte da serra de Montedeiras, para levar a caso o audacioso assalto à Casa do Carrapatelo;

(iv) o alarme social provocado por este assalto (onde houve um homicídio) levou o administrador Adriano José de Carvalho e Melo, deputado e administrador do concelho de Soalhães, a mover uma "luta de vida ou de morte" contra o Zé do Telhado, mas só iria conseguir prendê-lo nove anos depois, em 31 de março de 1859;

(v) citando a Wikipedia, "a lei não permitia à justiça de uma comarca entrar noutra, sem autorização do seu administrador", e foi por causa desse impecilho burocrático que o Adriano de José de Carvalho e Melo vai mover mundos e fundos para poder criar-se o concelho do Marco de Canaveses (um grande concelho reunindo em si os vários concelhos e comarcas vizinhos, de menor dimensão e importância);

(vi) em 31 de março de 1852, a rainha D. Maria II assina o decreto que cria o concelho de Marco de Canaveses (que passa a integrar os concelhos de Benviver, Canaveses, Soalhães, Portocarreiro, parte dos de Gouveia e Santa Cruz de Riba Tâmega);

Os marcoenses podem estar gratos, hoje, ao Adriano José de Carvalho e Melo (que nasceu e morreu em Tuías, na Casa da Picota) pelo seu papel como pai-fundador do seu concelho, mas não podem ignorar que, de algum modo, o "fora-da-lei" Zé do Telhado  também faz parte desta história...

A avaliar pelos poucos livros (apenas três) que encontrei na biblioteca municipal local, quer-me parecer que o homem também anda por aqui muito esquecido... Claro que não seria caso para ter direito a um busto de bronze, no jardim municipal, como o Adriano José de Carvalho e Melo, mas, bolas, na altura o alegado "bandido social", nascido no concelho vizinho de Penafiel e casado na Lousada, também ajudou a pôr o Marco de Canaveses no mapa... 

Ingratidão,  mesquinhez, tacanhez dos portugueses? Já o Camilio dizia, em 1862, nas suas "Memórias do Cárcere";

(...) “Este nosso Portugal é um país em que nem pode ser-se salteador de fama, de estrondo, de feroz sublimidade! Tudo aqui é pequeno: nem os ladrões chegam à craveira dos ladrões dos outros países! Todas as vocações morrem de garrote, quando as manifestam e apontam a extraordinários destinos (...) (pág. 83)

(…) “Roubar industriosamente é engenho; saquear a ferro e fogo é roubo” (pág. 84)
 
(Continua)
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Notas do editor:

(*) Vd. poste anterior: 14 de setembro de 2023 > Guiné 61/74 - P24649: Manuscrito(s) (Luís Graça) (229): Zé do Telhado (Penafiel, 1816 - Angola, Malanje, 1875): um caso de "banditismo social"? Entre o mito e a realidade - Parte I: a lenda que eu ouvi contar ainda em 1976, em Candoz

(*ª) Vd. poste anterior da série: 7 de setembro de 2023 > Guiné 61/74 - P24664: Manuscrito(s) (Luís Graça) (230): Há minas... e minas

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