sexta-feira, 8 de janeiro de 2021

Guiné 61/74 - P21748: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (34): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 31 de Dezembro de 2020:

Queridos amigos,
O casal está em férias, escolheram de mútuo acordo dois dias em território flamengo e um dia numa bela cidade holandesa, Groningen. Como em qualquer outro casal do mundo, não se podem esconder tensões familiares, Annette sofre algumas pressões e desabafa com o seu amado, ela tem muitos receios, de o perder, chega mesmo a dizer que é uma mulher com poucos atrativos e que ele se cansará dela, ao arrepio do que verdadeiramente se passa, andam de mão dada, beijam-se e afagam-se em plena rua, são dois cinquentões em ebulição, tanta coisa mudara nas suas vidas naquele virar do século. Ela nunca esquece o seu dever que são as memórias da Guiné, e ele adverte-a, que se prepare para os duríssimos meses que aí vêm, entre junho e novembro, flagelações em Missirá e Finete, patrulhamentos violentos, o colapso psíquico de um furriel altamente estimado, as chuvas inclementes, alguém que lhe chamará "branco assassino" e depois a mina anticarro. E, corolário de todas as desgraças, ser forçado a abandonar o Cuor.

Um abraço do
Mário


Esboços para um romance – II (Mário Beja Santos):
Rua do Eclipse (34): A funda que arremessa para o fundo da memória


Mário Beja Santos

[Notas da viagem de fevereiro de 2001, do punho de Paulo Guilherme]
O voo aterrou pontualmente em Zaventem, não havia necessidade de passarmos por Bruxelas para deixar coisas na Rua do Eclipse, Annette estava radiante, ainda no parqueamento referiu-me como tudo estava organizado para aqueles escassos três dias na região da Flandres e a visita meteórica a Groningen. Seguimos a autoestrada para Antuérpia, Annette reservara alojamento numa pequena estalagem nos arredores de Lier, visitaríamos a pequena bonita cidade, alugaríamos bicicletas para percorrer a Campina, no dia seguinte. Estava esfusiante, mas notei-lhe tensão, por vezes as sílabas precipitavam-se e o olhar ligeiramente endurecia. Perguntei-lhe se estava fatigada, que não, como é que era possível estar fatigada comigo a seu lado? Mas que sim, houvera uma pequena discussão familiar com a filha, na noite anterior, viera jantar e ao telefone avisara a mãe que precisavam de conversar. Se eu achasse bem, desabafava já durante a viagem, disse prontamente que sim. Noémie caminhava para os 30 anos, conhecera vários acidentes amorosos, esta relação com Gaspar parecia duradoura, Gaspar trabalhava como luminotécnico com companhias de teatro, rendimentos incertos, ausências prolongadas, era um grupo que percorria a Valónia, regiões de França e a Suíça francesa. Gaspar falava em filhos, Noémie, sempre dada à prudência, recordou-lhe que o seu vencimento no Ministério das Obras Públicas era relativamente modesto (especialista em Geografia e Planeamento Urbano), a mãe ajudava-a, o pai simbolicamente, contraíra novo casamento e tinha filhos a caminho da adolescência, não seria melhor começar por juntar dinheiro para comprar uma casa, ter uma entrada e contrair um empréstimo? Gaspar disparatara, ela queria todas as comodidades e jogava pelo seguro, era como se lhe tivesse a atirar à cara a sua própria modéstia de rendimentos, se ela não se sentia bem com a situação dele e com os sonhos dele que lhe dissesse abertamente. Noémie perguntava-se se não podia ter uma ajuda maior por parte da mãe, Annette respondera-lhe calmamente que ela também ajudava Matthieu, a sua companheira, Isa, vivia de dar umas poucas aulas e de fazer umas serigrafias, como mãe não podia tirar a um para dar a outra, recordara à filha que dentro de dez anos iria ficar reformada com uma pensão do Estado e escassos investimentos, planeava organizar a sua vida com o companheiro português, por essa altura. A filha perdera a cabeça, chamara-lhe egoísta, só pensava na sua felicidade, nas suas conveniências, a relação com o português parecia perfeita, mas tinha muitos pontos de interrogação pela frente, saíra porta fora sem antes ter dito à mãe que os filhos contam primeiro.

Nesta altura da narrativa, Annette parou o carro numa berma e desatou a chorar. Procurei acalmá-la, dizendo coisas com sentido e outras não tanto, que tudo indicava que esta geração ia ter trabalho precário, pior remunerado que o nosso, que a vida em casal era completamente diferente da nossa geração, a mulher agora escrutinava as despesas domésticas e os extras de cada um, havia ainda homens que não estavam preparados para esta dimensão da igualdade, deixavam-se os filhos para mais tarde… E contava-se como nunca no passado, com a ajuda dos pais, exatamente o contrário da nossa geração, havia que gerir estas novas situações com uma certa abertura. Vendo a expressão congestionada de Annette, já à entrada de Lier disse-lhe para irmos tomar um café, beijei-a carinhosamente e pedi-lhe para vivermos estes escassos dias numa intensa felicidade e que era meu dever apoiá-la numa boa relação com a filha, e com o filho também, ainda não sabíamos como ia ser a nossa velhice, se na Bélgica se em Portugal, o fundamental era que os nossos quatro filhos, em circunstância alguma, sentissem que estavam a ser preteridos, mas que também, em circunstância alguma, quisessem usar os pais e os seus modos de vida para nos envenenar a relação.

O albergue era muito acolhedor, na verdade, deixámos os nossos trastes, antes de sair do quarto abracei-a muito carinhosamente, novo corrupio de lágrimas, depois recompôs-se, chegara a Zaventem com o dia nublado, havia agora uma brecha nos céus, uma temperatura tépida, procurámos um pequeno restaurante, que sorte, sopa de rabo de boi e frango de estragão, tomámos um bom café, com os dias curtos de fevereiro lançámo-nos à descoberta de Lier e a procurar informações para o dia seguinte na Campina. O semblante de Annette ia-se iluminando, dava-me a mão a todo o instante, beijávamo-nos em plena rua, os passantes não escondiam a curiosidade, era seguramente um casal em lua-de-mel, o templo religioso de Saint Gommaire é um prodígio, por ali deambulámos sem pressa, percorremos o casco histórico, estávamos fascinados. Preparámos o aluguer das bicicletas para o dia seguinte, Annette voltou a falar no terceiro dia das férias, sugeria que não perdêssemos tempo com Eindhoven, já que eu fazia tanto gosto em voltar a Groningen, havia que visitar o museu antigo que eu conhecera na década de 1980, quando fizera programas de televisão e Wim Bosbom, o meu colega holandês, que me convidara para vir buscar filmes a Hilversum e me acompanhara a Groningen, ainda hoje recordava a sumptuosidade da arte flamenga que ali se exibia. Concordei com tudo. Foram dias inolvidáveis. Os nossos corpos encontravam-se com cada vez mais facilidade, tomávamos esta aceitação como a certeza plena de um amor feliz, sem contrições, cheios de promessas. Em dado momento, talvez ainda frágil pela discussão havida com a filha, Annette disse ter medo que eu não suportaria viver cerca de dez anos entre cá e lá, o ónus recaía sempre sobre mim, ela era intérprete, estava sempre à mercê de um programa que era apresentado às sextas-feiras para a semana seguinte, ao longo da sua vida assistira a afastamentos de colegas que se tinham mostrado remitentes por trabalhar com tantos condicionalismos, ela não se podia dar ao luxo, a não ser no período de férias grandes, de fazer a sua própria gestão do tempo, como reagiria eu se deixasse de ter tantas reuniões em Bruxelas, amá-la-ia tanto que viria aqui todos os meses?. “Annette, cheguei a uma idade em que não é desejável brincar com os sentimentos, os teus e os meus. Esta história dos filhos, os teus e os meus, há de esclarecer-se, para bem de todos, não estamos reféns das vicissitudes das suas vidas, a nossa também conta. Não prescindo de me realizar, nunca sonhei em ser um velho a andar de pantufas em casa ou ir para o jardim jogar dominó, quero ser-me útil e aos outros, envolver-me em causas. Tu contas incondicionalmente comigo, não temas o futuro, o meu amor por ti enche-me de alegria, por favor, não voltes aos teus medos”.

Passeámos pela Campina, por vezes parávamos para beber uma cerveja, foi um dia de encanto. E adorei voltar a Groningen. Arrumávamos as malas para regressar a Bruxelas quando Annette me perguntou sobre os papéis da Guiné. Respondi-lhe serenamente que se preparasse, como já a tinha advertido, para meses duríssimos, entre junho e novembro. E queria que ela soubesse que parti do Cuor com uma mágoa sem fim, pode parecer absurdo, era como se estivesse a ser afastado de casa, a uma migração forçada, ainda por cima saía do Cuor como um Soncó, aceitara o pedido do régulo Malam, passara a fazer parte da família, cheguei a Bambadinca em estado de luto. E disse Annette que o meu regresso a Missirá vinte anos depois fora um mar de lágrimas, viera-me à mente tudo o que ali vivera e que os cinco sentidos podiam reproduzir em gritos de tanto sofrimento, tanta miséria diante dos meus olhos, e aquela confiança absoluta dada pelos meus bravos soldados.

Annette ouvia-me em silêncio e em silêncio viajámos para Bruxelas.

(continua)

A Lier medieval

Vitral da Igreja de Saint Gommaire, Lier

Lier

La Campine

Groningen, Países Baixos

Museu de Groningen, atual

Antigo edifício do Museu de Groningen

Tudo mudara na relação da bolanha de Finete e a cambança do Geba para Bambadinca. Com a independência, fechou-se a picada que atravessava os arrozais, quem viaja de Finete para Bambadinca ou vice-versa usa a estrada alcatroada. O porto de Bambadinca morreu, o abandono destruiu tudo, restam os pescadores que mourejam no Geba estreito, tanto descem até perto de Ponta Varela como sobem em direção à foz do Gambiel
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Nota do editor

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