domingo, 3 de janeiro de 2021

Guiné 61/74 - P21729: Memória dos lugares (416): Um casamento em Bigene (António Marreiros, ex-alf mil, CCAÇ 3544, Buruntuma, 1972, e CCAÇ 3, Bigene, 1973/74)








Guiné > Região de Cacheu > Bigene > CCAÇ 3  (1973/74) > "Um casamento em Bigene"... Fotos a precisarem da ajuda de etnólogo ou, talvez ainda melhor, do "conselho sábio" do nosso assessor para os assuntos etnolinguísticos, o Cherno Baldé que "firma" em Bissau... Parece ser um casamento manjaco, não, Cherno ? Podes dar-nos alguns "pistas de leitura" ?


Fotos (e legenda): © António Marreiros (2020). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].



1. Mensagem de  António Marreiros, a viver há 48 anos no Canadá (Victoria, BC, British Columbia), ex- alferes miliciano em rendição individual na Companhia CCaç 3544, "Os Roncos", Burumtuma, 1972,  e, meses depois, transferido para Bigene/Guidage, CCaç 3, até Agosto 1974 (*):


Data - 2 jan 2021 22:19
Assunto . Casamento em Bigene
 

Para o álbum de recordações...são 5 fotos.

Penso que foi em 73, os mangueiros estão em flor... (**)

António Marreiros


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8 comentários:

Cherno Baldé disse...

Caros amigos,

A Guiné-Bissau é um pequeno pais, um enclave territorial que, paradoxalmente, alberga um numero de etnias mais diversificado que qualquer dos seus vizinhos mais proximos e maiores em extensao territorial. E o Sector de Bigene (oficialmente a sede do Sector, mas que devido as dificuldades de acesso está a perder este estatuto, pouco a pouco, a favor de Ingoré, cidade situada na via principal de acesso a S. Domingos e que dá acesso também à cidade senegalesa de Ziguinchor), é habitado maioritariamente pelo grupo Balanta-Mané que, sob o dominio do império mandinga de Gabu (Séc. XII-XIX), foram submetidos a uma dupla conversão à cultura mandinga e a religiao islámica, mesmo que superficialmente.

Culturalmente e por força de um longo dominio, militar, politico e comercial na região no periodo pré-colonial, toda a região e, particularmente, o corredor desde Ingoré, Bigene, Binta, Guidage até Farim e arredores faz-se sentir fortemente a influência mandinga em todos os dominios da vida social e cultural dos diferentes grupos que aqui conviveram ao longo dos tempos.

Falando concretamente das bonitas imagens captadas pela objectiva do Ex-Alf. Mil. Antonio Marreiros em Bigene em meados de 1973, provavelmente no mês de Janeiro a julgar pelas flores dos mangueiros, como o proprio faz notar, tenho a tecer as seguintes considerações:

1. Pelos detalhes e o ritual presentes na imagem, não se trata de um casamento Manjaco, longe disso, nem Mandinga ou Felupe, pelo que acredito que se trata de um casamento da etnia Balanta-Mané (a confirmar). Estamos na presença de uma cerimónia que, visivelmente, apresenta elementos rituais animistas (o lenço vermelho na cabeça e o pano preto a cobrir o corpo da noiva) e muçulmanos (a noiva depois do ritual do arroz/milho e a cambança do pilao em casa dos pais num ambiente de festa (foto 1 e 2) é carrregada a cabeça de um jovem possante e só pisará o solo em casa do noivo ou seja realiza-se a simbologia da transferência definitiva da morada da mulher que, para todos os efeitos, deixa a casa dos pais e passa a fazer parte da familia do marido (foto 3 ) e não é suposto fazer o percurso inverso salvo por necessidade inadiável e/ou razões de força maior (divórcio).


2. A noiva ostenta ainda nos dois lados do rosto e preso aos cabelos, nozes de cola de cor vermelha (foto 1) que tem um significado especial para os muçulmanos e que simboliza o carácter sagrado e inviolável do casamento que tem o consentimento de Deus, a benção dos pais e dos mais velhos da comunidade (o correspondente ao ritual cristão que diz: O que Deus uniu que o homem não separe).

Continua_...

Cherno Baldé disse...

Continuaçao:


3. A chegada a casa do futuro marido a noiva, por algumas horas, fazem-ne sentar-se numa esteira a porta da casa do marido (foto 4) e aqui repete-se a festa da chuva do arroz sobre a noiva que simboliza abundancia e prosperidade e realiza-se o ritual da recepçao por parte da familia do marido que dá a entrada/aceitação e promete protecçao e apoio à noiva na sua vida futura de mulher dedicada a vida do marido e da familia que doravante fará parte até ao fim da sua vida.

Ao mesmo tempo é dada a todos os membros da familia do futuro marido a oportunidade de se pronunciar, de apresentar ou não suas objecções quanto a futura esposa e que doravante fará parte da familia. O correspondente Cristão de: Digam agora ou calem-se para sempre. Todavia, é muito raro que hajam pronunciamentos contrários, pois os investimentos ja feitos desaconselham tais atitudes num meio de per si ja pobre e bastante precário e mesmo que houvesse dúvidas sobre o comportamento da noiva prevalecerá a confiança na sua mudança radical a partir desse momento fulcral na vida de uma mulher casada.

No fundo, o mundo é transversal e a cultura é universal e, muitas vezes, lá onde queremos ver grandes diferenças, são simplesmente variações de um mesmo fenómeno que é diversificado e vestido de outras roupagens e matizes culturais. Antes da chegada dos europeus à Africa, o Império do Mali e sua expansão ja tinham feito chegar outras culturas, técnicas e influências sociais globalizantes.

Actualmente os casamentos continuam a ser feitos com os mesmos rituais e simbologias, mesmo se ha algumas inovaçoes e mudanças em funçao da evoluçao e da dinamica multicultural que a globalizaçao esta a acelerar a bom ritmo, onde a inclusao da musica global em detrimento da tradicional é um dos marcos mais visiveis.

Com um abraço amigo,

Cherno Baldé

Valdemar Silva disse...

Não fora este douto esclarecimento do Cherno Baldé, e vendo apenas as fotografias, o que é que todos nós comentaríamos?
E, mesmo, lendo apenas esta explicação sem ver as fotografias, qual seria o comentário duma imaginável visualização deste casamento?

Bom Ano Cherno Baldé
Valdemar Queiroz Embaló

Cherno Baldé disse...

Notas: As fotos não estão bem ordenadas, a foto n.2 na verdade é a n. 3 na ordem da tiragem. A posição relativa da árvore (um bicilão?) e a loja coberta de telhas assim o confirmam. Mas, o mais imortante ou seja a ordem lógica da partida da casa dos pais da noiva e sua chegada a casa do noivo mantém-se nas imagens e é isso interessa.

Nas imagens, podem-se observar, também, alguns bens materiais, pertences da noiva como panelas, pratos, cabazes e uma maleta de cartão que a comitiva transporte de forma discreta como se fazia antigamente. Não se pode dizer que era um grande património, foi o que a família teria conseguido preparar para o casamento e que será depois exposto e apresentado em público a frente da família do futuro marido.

Neste caso em concreto, trata-se de um casamento dentro da mesma localidade que não implica nenhum meio de transporte, sendo este substituído pelos ombros possantes de um jovem voluntário, normalmente o melhor amigo e/ou colega do noivo.

Abraços,

Cherno AB

Anónimo disse...

Espero e faço votos que os olhos dos nossos ilustres visitantes estejam a ver o mesmo que os meus olhos africanos estão a ver, ou seja um interessante mas simples acto de cultura dos povos indígenas (no sentido sociológico e positivo da palavra) da Guiné que já não existe ou existirá sob outras formas menos ricas, ou por outras palavras menos exóticas aos olhos de quem conhece ou quem observa de fora.

Cherno AB

antonio graça de abreu disse...

antonio graça de abreu disse...

Excelente, meu caro Chermo Baldé, excelente!... As fotos do Marreiros também falam.

Abraço,

António Graça de Abreu

4 de janeiro de 2021 às 11:22

Hélder Valério disse...

É com gosto que leio estas explicações do Cherno.

A sua postura enriquece bastante este Blogue.
Normalmente sereno, explicativo e esclarecedor, todos ficamos a ganhar com isso.

E também o facto de motivar o António a fazer um comentário, ainda que breve, positivo, é realmente um caso notável.

Hélder Sousa

Anónimo disse...

Caros amigos AGA e Hélder Valério,

Muito obrigado pelos elogios, todavia todo o mérito é do fotografo, Antonio Marreiros, que teve a oportunidade e sensibilidade de guardar para a posteridade estas imagens que falam por si.

Nao obstante, como fiz notar, ainda falta descobrir o enigma relativo a pertença etnica das manifestaçoes fotografadas. Eu avancei com uma hipotese que carece de confirmaçao. O que podemos ter a certeza é que se trata de um grupo da zona do litoral em fase de transiçao das religioes tradicionais (animismo?) para o Islamismo. O problema é que existem varios grupos na Guiné-Bissau que, na altura, estavam nessa situaçao intermedia que podia incluir, para além dos Balanta-mané, os Cassangas, Banhuns, Jolas (Diolas), entre outros grupos menores.

Abraços,

Cherno Baldé