domingo, 3 de janeiro de 2021

Guiné 61/74 - P21731: Fotos à procura de... uma legenda (136): Pistas de leitura para um casamento Balanta-Mané, em 1973, em Bigene, região do Cacheu (Texto: Cherno Baldé; fotos: António Marreiros)


Foto nº 1 >Guiné > Região de Cacheu > Bigene > CCAÇ 3 (1973/74) > "Um casamento em Bigene"... 

Fotos (e legenda): © António Marreiros (2020). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].


António Marreiros

1. Respondendo pronta e generosamente  ao desafio do nosso editor LG ("Fotos a precisarem da ajuda de etnólogo ou, talvez ainda melhor, do 'conselho sábio' do nosso assessor para os assuntos etnolinguísticos, o Cherno Baldé que 'firma' em Bissau"), o nosso amigo e colaborador permanente, sacrificando o seu descanso, acaba, às 13h00 de hoje, de fazer o seguinte comentário ao poste P21729 (*) . 


O nosso editor agradece ao Cherno Baldé: mais do que um longo comentário, trata-se  de uma verdadeira lição de etnografia guineense, à volta do tema (fascinante) do casamento. Voltamos a reproduzir, embora em formato mais reduzido, as belíssimas imagens captadas pelo nosso camarada António Marreiros, um algarvio que vive há muito no Canadá e que, noutra encarnação, foi alf mil, CCAÇ 3544, Buruntuma, 1972, e CCAÇ 3, Bigene, 1973/74.(*)


Legendas para as fotos de um casamento balanta-mané, em Bigene, em janeiro de 1973





A Guiné-Bissau é um pequeno país, um enclave territorial que, paradoxalmente, alberga um número de etnias mais diversificado que qualquer dos seus vizinhos mais próximos e maiores em extensão territorial.  

Foto nº 2 
E o Sector de Bigene (oficialmente a sede do Sector, mas que, devido às dificuldades de acesso, está a perder este estatuto, pouco a pouco, a favor de Ingoré, cidade situada na via principal de acesso a S. Domingos e que dá acesso também à cidade senegalesa de Ziguinchor), é habitado maioritariamente pelo grupo Balanta-Mané que, sob o domínio do império mandinga de Gabu (Séc. XII-XIX), foram submetidos a uma dupla conversão à cultura mandinga e à religião islâmica, mesmo que superficialmente.

Culturalmente e por força de um longo dominio, militar, político e comercial na região no periodo pré-colonial, toda a região e, particularmente, o corredor desde Ingoré, Bigene, Binta, Guidage até Farim e arredores faz-se sentir fortemente a influência mandinga em todos os domínios da vida social e cultural dos diferentes grupos que aqui conviveram ao longo dos tempos.

Falando concretamente das bonitas imagens captadas pela objectiva do ex-Alf MilAntónio
Marreiros em Bigene em meados de 1973, provavelmente no mês de Janeiro a julgar pelas flores dos mangueiros, como o próprio faz notar, tenho a tecer as seguintes considerações (**):


I. Pelos detalhes e o ritual presentes na imagem, não se trata de um casamento Manjaco, longe disso, nem Mandinga ou Felupe, pelo que acredito que se trata de um casamento da etnia Balanta-Mané (a confirmar).

Foto nº 3
Estamos na presença de uma cerimónia que, visivelmente, apresenta elementos rituais animistas (o lenço vermelho na cabeça e o pano preto a cobrir o corpo da noiva) e muçulmanos (a noiva depois do ritual do arroz/milho e a cambança do pilão em casa dos pais num ambiente de festa (foto 1 e 2) é carrregada à cabeça de um jovem possante e só pisará o solo em casa do noivo, ou seja, realiza-se a simbologia da transferência definitiva da morada da mulher que, para todos os efeitos, deixa a casa dos pais e passa a fazer parte da familia do marido (fotos 3, 4 e 5) e não é suposto fazer o percurso inverso salvo por necessidade inadiável e/ou razões de força maior (divórcio).


II. A noiva ostenta ainda nos dois lados do rosto e preso aos cabelos, nozes de cola de cor vermelha (foto 1) 

.... que tem um significado especial para os muçulmanos e que simboliza o carácter sagrado e inviolável do casamento que tem o consentimento de Deus, a benção dos pais e dos mais velhos da comunidade (o correspondente ao ritual cristão que diz:  "O que Deus uniu que o homem não separe").
 
Foto nº 4

III. A chegada a casa do futuro marido a noiva, por algumas horas, fazem-na sentar-se numa esteira à  porta da casa do marido (foto 5)..
.

... e aqui repete-se a festa da chuva do arroz sobre a noiva que simboliza abundância e prosperidade e realiza-se o ritual da recepção por parte da família do marido que dá a entrada/aceitação e promete protecção e apoio à noiva na sua vida futura de mulher dedicada à vida do marido e da familia que doravante fará parte até ao fim da sua vida.

Ao mesmo tempo é dada a todos os membros da familia do futuro marido a oportunidade de se pronunciar, de apresentar ou não suas objecções quanto à futura esposa e que doravante fará parte da familia. 

É ocorrespondente Cristão do "Digam agora ou calem-se para sempre". Todavia, é muito raro que hajam pronunciamentos contrários, pois os investimentos já feitos desaconselham tais atitudes num meio de per si já pobre e bastante precário. E mesmo que houvesse dúvidas sobre o comportamento da noiva prevalecerá a confiança na sua mudança radical a partir desse momento fulcral na vida de uma mulher casada.


Foto nº 5
No fundo, o mundo é transversal e a cultura é universal e, muitas vezes, lá onde queremos ver grandes diferenças, são simplesmente variações de um mesmo fenómeno que é diversificado e vestido de outras roupagens e matizes culturais. 

Antes da chegada dos europeus à Africa, o Império do Mali e sua expansão ja tinham feito chegar outras culturas, técnicas e influências sociais globalizantes.

Actualmente os casamentos continuam a ser feitos com os mesmos rituais e simbologias, mesmo se há algumas inovaçõs e mudanças em função da evolução e da dinâmica multicultural que a globalização está a acelerar a bom ritmo, onde a inclusão da música global em detrimento da tradicional é um dos marcos mais visíveis.


Cherno Baldé, Bissau, 3 jan 2021, 13h
___________


(**)  Último poste da série > 17 de outubro de  2020 > Guiné 61/74 - P21459: Fotos à procura de... uma legenda (128): Levantamento de minas A/P no carreiro de Uane, em julho de 1974 (António Murta, ex-alf mil inf, MA, 2ª CCAÇ / BCAÇ 4513, Aldeia Formosa, Nhala e Buba, 1973/74)... E um grande texto de antologia, um grande documento humano de um grande português, dilacerado entre dois imperativos antagónicos, a sua consciência humana e as suas obrigações militares.

13 comentários:

Antonio Marreiros disse...

Caro Cherno Baldé (e L.Graça)
Agradeço muito a prontidão e a rica informação sobre a cerimónia so casamento em Begene.
Aprendi muito e vou enviar este link para três camaradas que estiveram comigo naquela região.
Tentei saber quando os mangueiros estavam em flor na Africa equatorial mas não consegui. Agora vejo que é em Janeiro, obrigado.
Apesar do pesadelo do conflito tive sempre muito interesse em conhecer os costumes das gentes que viviam nas zonas onde fui parar e que nunca tinha ouvido falar. Que ignorantes èramos na altura, com um governo tão opressor.
Tenho outras fotos, não tão boas, tiradas durante o ritual de iniciação ( fanado? )
mas que vou enviar para saber mais, nunca é tarde para aprender...
Da costa do pacifico, no Canadá, mando um abraço e votos de bom ano novo.
Sinceramente,
Antonio Marreiros

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Obrigado, António, estamos todos no mesmo barco: fomos todos mal preparados para a Guiné, seguramente o teatro de operações mais difícil e mais complexo (devido à geografia, demografia, etnografia, gastronomia, fauna e flora, cultura, história, etc., a par dos aspectos político-militares).

Dei instrução e fiz a guerra com praças do recrutamento local que não falavam português, embora fossem bravos e leais... Não comiam a mesma comida, nem faziam a mínima ideia onde era a nossa terra... Enfim, rezavam ao mesmo Deus, embora lhe chamassem Alá...

Tal como tu, também tive a "sensibilidade sociocultural" que me levou a conhecer, estudar e respeitar, no essencial, os seus usos e costumes... Não só dos fulas, como de outros povos com que tivemos de lidar...

Manda mais material fotográfico. Um abraço de Ano Novo. Luís

antonio graça de abreu disse...

Excelente, meu caro Chermo Baldé, excelente!... As fotos do Marreiros também falam.

Abraço,

António Graça de Abreu

Tabanca Grande Luís Graça disse...

= Facebook não nos deixou publicar a foto nº 1... Para nós é um documento etnográfico...Para eles é pornográfico...

"Eis alguns conteúdos não permitidos no Facebook:

Nudez ou outro conteúdo sexualmente sugestivo
Discurso que incentiva o ódio, ameaças credíveis ou ataques diretos que visem um indivíduo ou grupo específico
Conteúdo que contenha automutilação ou violência excessiva
Perfis falsos ou de impostores
Spam" (...)

https://www.facebook.com/help/212826392083694

Valdemar Silva disse...

Luís, quer dizer que no facebook nunca seriam publicadas fotografias da rapaziada em visita às lavandarias?
Que moralistas nos saíram estes tipos, provavelmente passariam imagens da Exposição Colonial do Porto no início do séc. XX.


Valdemar Queiroz

Cherno Baldé disse...

Caros amigos Luis Graça e Valdemar Queiroz,

O Facebook tem toda a razao por nao publicar a primeira foto, pois estamos em 2021 e, de facto, quem precisa se adaptar a nova moralidade e aos usos e costumes em voga somos nos da velha guarda.

Sao imagens que dificilmente serao aceites pela nova geraçao nos dois paises em questao e que, em vez de se focar no que interessa, o facto cultural, a veriam ainda como um insulto, uma ofensa "colonial" as nossas mulheres. Sao outros tempos que correspondem a outras realidades e, entretanto, a vida continua.

Cherno AB

Hélder Valério disse...

Estas coisas têm sempre mais que uma forma de olhar, de apreciar.

As fotos publicadas são, de facto, "fotos datadas", ou seja retratam uma realidade "real" (passe o pleonasmo) ao tempo que foram tiradas.
E, já agora, tendo em conta o que já foi aqui acima referido, comentado e principalmente explicado, acho que se ficou tudo muito mais esclarecido e conhecedor, tal como o autor das fotos reconhece, o nosso camarada "canadiano" António Marreiros.

Não sei como as coisas se passam hoje em dia. Acredito que já tenha evoluído (?) num sentido de maior pudor quanto à nudez mas também admito que em locais ou regiões menos, digamos, citadinas, ainda possam prevalecer hábitos que não estão assim tão distantes no tempo.

Portanto, se por um lado percebo e compreendo o que o Cherno nos acaba de dizer, também sinto que as questões culturais podem e devem manter as suas características, embora saiba que há uma tendência (boa? má?) para a generalização.

Hélder Sousa

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Camaradas, já não é a primeira nem será a última vez que aqui discutimos as questões do "pudor" e do "interdito" quando publicamos fotos com o "nu explícito" (isto é: a mama feminina)...As "redes sociais" comsideram que esse é umconteúdo que viola os seus padrões...

Não vou ter tempo para aprofundar esta questão, que pode merecer um debate mais alargado e sério... Mas qual a diferença entre o "nu artístico", o "nu etnográfico ou documental", o "nu erótico", e o "nu pornográfdico" ?

E a propósito de mamas (delas e deles, que também as têm...), sugiro, para já, a seguinte leitura da crónica de Paula Cosme Pinto, na coluna "A vida em saltos altos"

https://expresso.pt/blogues/bloguet_lifestyle/Avidadesaltosaltos/2019-04-09-As-mamas-a-liberdade-individual-e-a-falta-dela-na-nossa-sociedade


Expresso, 19/4/2019 >
PAULA COSME PINTO
As mamas, a liberdade individual e a falta dela na nossa sociedade

Antonio Marreiros disse...

Camaradas,
Agora que vejo a polémica levantada com a publicação da foto sinto uma certa responsabilidade... Compreendo que pode ser vista de muitas maneiras e lamento não ter pensado nisso.Sim, vivemos outras realidades e as redes sociais podem ser construtivas ou também destruir...
Não vi a foto dessa forma, apenas uma imagem que revela uma cultura que há 50 anos atrás thinha costumes diferentes e sem pudor.Para mim é um documento etnográfico e gostei de saber os detalhes culturais que nos revelou.
Não foi a minha intenção ofender ninguém nem o país.
Sinceramente,
Antonio Marreiros

Anónimo disse...

Caro Antonio Marreiro,

Se dependesse so de mim, as tuas fotos excepcionais que, se calhar, captaram realidades unicas no nosso pais, seriam exibidas na maior/melhor galeria de arte do teu ou do nosso pais, pois eu sou testemunho vivo da realidade que retratam e na minha aldeia ainda nos anos 60/70 a unica pessoa que se vestia da cintura para cima era a minha avo de 70/80 anos.

Mas convem situar as coisas e esclarecer que a brutal imposiçao do regime colonial, os atropelos, as fobias e chacotas bem como todo o leque de vicissitudes e preconceitos que o acompanharam na va tentativa de inculcar uma alegada "civilizaçao", contribuiram para criar esses sentimentos de revolta e empurrar as novas geraçoes para o excessivo sentimento de pudor a que assistimos hoje.

Quando estudamos a historia antiga desde Egipto até ao Império Romano, passando pelas milenarias civilizaçoes do Oriente, nomeadamente a India, vemos que tinham uma grande liberdade de retratar artisticamente o corpo humano e as suas paixoes, liberdade essa que se desvaneceu no ocidente com o surgimento em força da religiao do estado e uma certa moral castradora de liberdades artisticas. A globalizaçao e a falta de cultura que se seguiu encarregou-se de fazer o resto.

Com um abraço amigo,

Cherno Baldé


Carlos Vinhal disse...

Caro António Marreiros e Cherno
Continuamos a ver o antigamente com os olhos de hoje.
Quando chegámos a Mansabá, estranhamos ver as mulheres na tabanca sem roupa da cintura para cima, mas com o decorrer do tempo acabámos por achar natural.
A minha lavadeira, a Binta, uma jovem bajuda, sempre que ia levar ou buscar roupa, ia devidamente vestida, julgo que com as suas melhores camisas ou blusas, ou não fosse uma jovem vaidosa como qualquer outra, e sempre acompanhada da sua pequenita irmã. Recordo ambas com saudade, uma pela sua beleza natural e outra pelos seus olhitos vivos e sorriso inocente.
Uma vez tive de ir à morança da Binta, porque tinha ido no bolso da camisa para lavar uma notita de 50 pesos, e lá me apareceu ela conforme andava em casa, mostrando naturalmente aquilo que nós os europeus não víamos nas nossas miúdas assim tão naturalmente.
Talvez essas bajudas de então, hoje já entradotas na idade, sintam alguma "vergonha" em se verem fotografadas na época mas como disse acima, aos olhos de ontem não tem mal nenhum.
Carlos Vinhal
Leça da Palmeira

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Cherno, no Ocidente, mais pela sua matriz judaico-cristã do que da sua herança helenística (ou greco-romana), sempre houve uma grande hipocrasia social em relação à representação do nu.

Com o renascimento (séc. XV/XVI), há uma redescoberta e valorização da beleza do corpo humano... E a mãe de Jesus Cristo, que os cristãos chamam "Nossa Senhora", também não tem problemas de pudor, ao mostrar a maminha, embora sempre no acto sagrado da amamentação...

António, não tens que pedir que desculpa a ninguém: a decisão de publicar é sempre dos editores. E embora o nosso blogue seja também uma "rede social", há uma grande diferença em relação às páginas do Facebook... A tua foto (a nº 1) terá diferentes leituras, no blogue ou no Facebook. E ainda bem a publicámos,essa e as outras que mandante: sem isso não teríamos o privilégio de ler as primorosas legendas que o Cherno escreveu para nós...


E uma foto, magnífica, a tua. A jovem e virgem noiva aparece ligeiramente desnuda no meio de um multidão de mulheres grandes e crianças, em clima de festa, mas com toda a gente vestidas a rigor... Também nas nossas sociedades ninguém de "fato de banho" para uma festa de casamento... O nosso vestuário, em todas as épocas e sociedades, é objecto de codificações e regras muito próprias...

No caso do casamento balanta-mané de Bigene, há 50 anos, atrás, felizmente que o fotógrafo estava lá. A noiva, se ainda for viva e se tiver acesso ao nosso blogue, vai certamenet ficar muito "feliz" por se rever na foto do António Marreiros. Oxalá estas imagens ainda possam chegar, um dia destes, até aos "noivos de há 50 anos em Bigene"... As redes sociais também têm esta coisa boa, de aproximar pessoas e culturas... E o nosso blogue foi justamente criado para "aproximar" e não para "repelir"...

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Confirmo aqui a oportuna observação do Carlos Vinhal: em Bambadinca, como em Mansabá, o dia da entrega da roupa lavada, e mais ainda, o dia do mês do patacão da lavadeira, tinha o seu ritual próprio... Era uma acto cerimonioso e uma bela ocasião de convívio de jovens de culturas diferentes,e de sexos diferentes, nós e as nossas lavadeiras...E parte dessas lavadeiras também podiam ser familiares dos nossos soldados do recrutamento local...

Houve quem se comportasse como representante do "exército colonialista ocupante", como dizia a propganda do PAIGC ?... Sim, terá havido casos, mas, pensando na generalidade dos camaradas do meu tempo, que eu conheci em Contuboel e em Bambadinca, em 1969/71, acho que a postura em relação à população, em especial às mulheres, era de "respeito"... De resto, eram essas as orientações da "ação psicossocial"...

Eu nunca vi a minha jovem lavadeira mandinga, nua da cintura para cima...Porque tanvbém nunca fui à sua morança ou ao rio vê-la a trabalhar, a pilar o arroz ou a lavar a roupa...