sexta-feira, 1 de fevereiro de 2019

Guiné 61/74 - P19459: Notas de leitura (1146): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (71) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 17 de Maio de 2018:

Queridos amigos,
Pôs-se termo ao expediente do gerente de Bissau quanto à evolução da luta armada, a partir do momento em que ele se limitou a enviar para Lisboa os Boletins Oficiais das Forças Armadas, deixámos de ter uma outra maneira de olhar os acontecimentos, cortou-se com a pluralidade.
O documento de Castro Fernandes, não hesito em classificá-lo assim, é uma das peças mais relevantes que constam do Arquivo Histórico do BNU.
Figura proeminente do regime de Salazar, vai produzir nestes apontamentos observações sulfúreas, não esconde que vem aí uma nova era e que não se pode iludir o separatismo. E se neste texto dá nota negativíssima ao Perfeito Apostólico, o que iremos ler a seguir sobre o meio social encerra alguns dos parágrafos mais eloquentes da descrição do colonialismo guineense.

Um abraço do
Mário


Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (71)

Beja Santos

Concluída a viagem pelo expediente “Acontecimentos Anormais”, em síntese, a documentação enviada pelo gerente de Bissau para a governação em Lisboa sobre a eclosão e desenvolvimento da luta armada entre 1962 e inícios de 1964, temos agora por diante um conjunto de tarefas que culminarão com a cessação de funções do BNU na Guiné, tendo dado lugar ao Banco Nacional da Guiné-Bissau.

De 9 de março a 8 de abril de 1957, António Júlio de Castro Fernandes, o administrador do BNU com a tutela da Guiné, viaja à Província e produz uma coletânea de apontamentos que, atrevo-me a dizer, é um dos documentos fundamentais para análise sociopolítica e económica da década de 1950, e em certos domínios lança luz para tudo quanto se vai passar no tumultuoso itinerário que leva à saída das forças portuguesas em 1974. Daí a ênfase se irá fazer a um documento que, em termos historiográficos, estimo como incontornável, como se verificará.

O administrador, antigo Ministro da Economia, e mais tarde figura de proa da União Nacional (foi presidente da Comissão Executiva), elabora os seus apontamentos a partir da situação política que constatou.
Saltando imediatamente os considerandos geográficos, demográficos, por demais conhecidos, vejamos o que o administrador observa sobre a população dita civilizada:
“A grande maioria da população civilizada é constituída por comerciantes e funcionários. Há apenas um reduzido número de indivíduos exercendo profissões liberais e artes ou ofícios. Os ponteiros, quando não são puramente comerciantes, têm pequenas culturas, principalmente de cana-de-açúcar, feitas com mão-de-obra indígena.
Não há qualquer diferenciação de funções entre os civilizados por grupos rácicos: brancos, mestiços e negros constituem uma sociedade homogénea. Os libaneses dedicam-se exclusivamente ao comércio. Trata-se de uma sociedade burguesa, sem quaisquer preocupações de ordem intelectual. Vive este pequeno grupo em permanente emulação e intriga”.

E quanto à outra população:
“Não existem na Guiné elites nativas cultural e politicamente europeizadas, desligadas da minoria civilizada que dirige a vida da Província. Muitos régulos e chefes que mantêm o seu estatuto mas receberam forte influência europeia conservam uma ligação harmoniosa quer com a sociedade civilizada, quer com a sociedade indígena. Não há elites negras repelidas pela sociedade europeia e pela sociedade africana. Na Guiné Portuguesa não há elites nativistas, política ou culturalmente. O indígena quando tem razões de queixa é sempre contra determinada pessoa e não contra a sociedade civilizada”.

E tece o primeiro comentário que se prende com o mundo envolvente e as ideias separatistas:
“A situação geográfica da Guiné, encravada na África Ocidental francesa, não deixa de criar preocupações quanto às ideias separatistas que dominam o território francês e que podem ou infiltrar-se ou, quando tais infiltrações não sejam relevantes, ser postas no plano internacional.
O Perfeito Apostólico, sobretudo na sua paixão contra o Governador, mostra-se extremamente preocupado com as infiltrações que, segundo afirma, são já gravíssimas. Segundo me disse, não tardará que a Guiné Portuguesa constitua um caso idêntico ao de Goa.
O Governador, por seu lado, considera a nossa situação no plano internacional, no que diz respeito à Guiné, de extrema gravidade. Em sua opinião, é insustentável a nossa afirmação de que não temos colónias, de que a Guiné não é uma colónia, enquanto se mantiver a distinção legal entre cidadãos e indígenas. Para uma população de 509 mil indígenas, há 8,3 mil cidadãos, dos quais 360 são estrangeiros. À pergunta que nos farão qual a população da Guiné no seu total, a resposta de 518 mil indivíduos dos quais só 15% são cidadãos – conduz, naturalmente, à conclusão de que se trata de uma colónia, digamos nós o que dissermos. Em sua opinião, esta distinção entre cidadãos e indígenas deveria acabar: todos seriam cidadãos, embora uma parte desses cidadãos vivessem em regime tribal, respeitando o Estado o direito próprio de cada tribo, protegendo-os e educando-os por forma a que venham a gozar os benefícios da civilização. Claro que tal regime traria como consequência que todos os indígenas que soubessem ler e escrever teriam direito de voto. Tal perspectiva não o atemoriza – pelo contrário. Prefere um eleitorado disperso e sobre o qual os administradores possam exercer a sua influência a um eleitorado concentrado, muito fácil de manobrar pela oposição. Perguntando-lhe eu se a Guiné Portuguesa poderia vir a constituir um problema idêntico ao de Goa, respondeu-me ‘Pior, muito pior, porque na Índia temos uma obra em profundidade com 500 anos e aqui, na Guiné, não temos nada’.”

Segue-se uma descrição no campo das intrigas envolvendo o topo das instituições da colónia:
“Durante o interregno Melo e Alvim (fora Governador até 1956) exerceu a encarregatura do Governo o Inspector Superior Capitão Abel Moutinho. Pondo de parte o que dizem de bom, de mau e de péssimo, a respeito do Capitão Abel Moutinho, não restam dúvidas de que o senhor pretendeu ser nomeado Governador. Para tanto, foi organizando os seus quadros, formando à sua volta um grupo que o obviava e através do qual dirigia a Província. Também me não restam dúvidas – até por documentos que vi – que o seu orientador era o Perfeito Apostólico. Naturalmente que, por outro lado, foi preocupação do encarregado do Governo desmantelar o quadro que lhe era hostil. E, à cabeça, investiu com o Intendente (Chefe dos Serviços da Administração Civil), Santos Lima. Para tanto, instaurou-lhe um processo disciplinar com três fundamentos: actividades nativistas com ligações com os separatistas de Dakar, hostilidade à situação, irregularidades administrativas. O processo, para a instauração do qual contribuiu activamente o antigo Comandante Militar Neves e Castro, agradou ao Perfeito Apostólico – só por escrúpulo me não atrevo a dizer que foi por ele inspirado – e tinha como finalidade desmantelar com o Santos Lima o grupo que, de qualquer forma, lhe estava ligado.

A nomeação do Dr. Silva Tavares caiu como uma bomba no grupo Abel Moutinho. Este, em vez de desistir da almejada nomeação, tentou e tenta ainda – sempre através dos seus sequazes, tornar impossível a acção do Governador, obrigá-lo ou a estender-se ou a desistir. Para tanto, criaram-lhe – no intervalo entre a nomeação e a posse – todas as dificuldades possíveis.
O Perfeito Apostólico não escondeu nunca a sua hostilidade ao novo Governador. E marcou desde logo a sua posição, não esperando o Governador quando este chegou à Província e não assistindo à sua posse – claro que pretextando impedimentos pouco plausíveis.
Entretanto, o processo de Santos Lima foi seguindo o seu curso, mesmo antes da chegada do novo Governador tinham caído, por ausência de qualquer fundamento, as acusações de nativismo e hostilidade política. O Intendente foi reintegrado nas suas funções – ficando o processo disciplinar reduzido a duas ou três acusações sem a menor importância (Posso afirmá-lo, porque me foi facultada a leitura do processo). Como o Governador não investiu contra o Santos Lima e, pelo contrário, lhe deu e continua a dar consideração correspondente ao lugar que ocupa – embora tenha mandado que o processo siga o seu curso normal – tal atitude serviu de pretexto para o Perfeito Apostólico o atacar violentamente. Digo violentamente porque a mim mesmo me disse que a amizade do Governador pelo Santos Lima – homem desonesto e inimigo declarado das missões – era um autêntico escândalo. A verdade, porém, é que o Governador não é, nem deixa de ser, amigo do Santos Lima. O Governador não pode – só para satisfazer o Perfeito Apostólico e os amigos de Abel Moutinho – tratar mal, desprestigiar o Intendente. A hostilidade do Prefeito Apostólico manifestava-se um pouco em surdina, não se exibia publicamente. Até que surge o pretexto… Apareceu na Guiné um sujeito de Cabo Verde, dizendo-se vendedor de livros. Foi ao Gabinete, pedindo facilidades. O Chefe do Gabinete escreveu um cartão para o Director do Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, enviando-lhe o indivíduo e dizendo-lhe se os livros podiam interessar ao Centro. E é tudo… e foi um trinta e um. O camarada era propagandista de uma seita protestante e os livros aparentemente de cultura geral tinham o veneno na cauda. O Perfeito Apostólico escreveu uma carta violentíssima e malcriadíssima ao Governador, este responde-lhe em termos (li toda a correspondência e o relato do Governador para o Ministro – não me ficando dúvidas sobre a fragilidade do terreno em que o Perfeito se colocou).

A hostilidade agora é feita à luz do dia – por parte do Perfeito. Assim: do próprio púlpito da catedral, na presença do Governador, o Perfeito leu uma prática desancando-o e mandou que essa prática fosse lida em todas as igrejas da Guiné (os padres, porém, apenas a resumiram); quando o Governador chegou da Costa do Ouro, o Perfeito não assistiu nem à recepção nem à transmissão dos poderes (eu estava presente e vi que todos os padres estiveram no aeroporto); recusou – sempre com pretexto de doença ou ausência – o convite para assistir ao banquete que o Governador me ofereceu; pretextando uma pane, que certamente não houve, não veio ao cocktail que o Banco ofereceu; no dia da minha partida, foi ao cais mas despediu-se logo para se não encontrar com o Governador. Não esconde a sua má vontade. Acusa o Governador de seguir uma política económica errada, acusa-o de não favorecer a acção missionária, dificultando a sua missão, acusa-o de proteger o desqualificado Santos Lima, e muito mais.
Em minha opinião, a atitude do Perfeito Apostólico, além de indefensável, é erradíssima.
Pessoalmente, acho o Perfeito Apostólico uma pessoa muito simpática, activo, devotado – mas falta-lhe altura intelectual. É, por outro lado, um apaixonado, um violento, um recalcado. Não me parece que esteja à altura da missão extremamente oficial que lhe cabe.

A evangelização exige, num meio como a Guiné, uma técnica muito especial e que, a meu ver, não reside na imposição. Pretende o Perfeito que a coisa se passa através da acção policial ou governativa – mas de tal sorte que o antipático recaia apenas nas autoridades. Assim, a islamização da Guiné – que não constitui apenas um problema religioso, porque pode vir a constituir – e já constitui – um obstáculo à integração do indígena na comunidade nacional – é assunto que tem que ser encarado com uma delicadeza muito especial. Os islamizados (são os indígenas mais evoluídos) querem aprender a ler e a escrever, mas se forem instituídas escolas católicas mandam os filhos para o território francês. A única forma de actuar é pois instalar escolas laicas – o que constitui pretexto do ataque do Perfeito Apostólico contra o Governador, acusando-o de favorecer escolas não pertencentes às missões…”

E a seguir o administrador Castro Fernandes ajuíza um novo Governador e dá-nos um quadro espantoso do meio social.

(Continua)

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Notas do editor:

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Último poste da série de 28 de janeiro de 2019 > Guiné 61/74 - P19449: Notas de leitura (1145): Viagens de Luís de Cadamosto e de Pedro de Sintra (2) (Mário Beja Santos)

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