quarta-feira, 23 de janeiro de 2019

Guiné 61/74 - P19430: Historiografia da presença portuguesa em África (146): Meu Corubal, meu amor (5) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 16 de Junho de 2018:

Queridos amigos,
Este último texto parece-nos significativo quanto ao espírito que os republicanos instituíram nas colónias com vista a identificar os grupos étnicos, as diferentes manifestações da sua vida material, os procedimentos da vida social, as práticas agrícolas, a navegação, artes e ofícios, habitação, narrativas orais, lazeres, entre outros aspetos. Nunca vi qualquer trabalho referente à riqueza deste repositório, e se de facto tais informações enformavam a vida governativa, tanto em Bolama como em Bissau. Estes inquéritos e questionários perdurarão por décadas, convém recordar que mesmo Sarmento Rodrigues exigia tais documentos, que o seu adjunto Teixeira da Mota coordenou um inquérito à habitação, documento da maior valia, e que o mesmo Teixeira da Mota incitou, a partir do Centro de Estudos da Guiné Portuguesa à elaboração de monografias. Podemos ter sérias reticências quanto à atividade governativa e administrativa mas não se pode negar que ao longo de décadas se produziram documentos de diagnóstico sobre uma profusão de regiões do mosaico étnico.
O lastimável é que tantas propostas meritórias não tenham tido seguimento.

Um abraço do
Mário


Meu Corubal, meu amor (5)

Beja Santos

Nos Reservados da Sociedade de Geografia de Lisboa consta um dossiê assim apresentado: Província da Guiné – Relatório de autor ignorado (mas que julgamos ter sido elaborado pelo antigo administrador de Buba, Capitão José António de Castro Fernandes, natural da Índia, cujo filhos residem, ainda, na Guiné. O original existia em poder do falecido Capitão Alberto Soares, antigo Administrador do Concelho de Bolama, combatente das campanhas de pacificação). Quem datilografou em 1931 diz que faltam as primeiras páginas, o que reproduz inicialmente está cheio de tracejado, é manifestamente incompreensível. O manuscrito, como iremos ver, é da década de 1910.

O documento datilografado (presumivelmente em 1931) começa por dizer tratar-se de Cópia – Extraída de um relatório, feito por autor desconhecido. Quem terá datilografado foi António Pereira Cardoso, funcionário colonial vastamente referido em diferentes relatórios das décadas de 1930 e 1940.

Creio que o leitor que tem tido a paciência de acompanhar os textos anteriores já se apercebeu que este documento tem valor histórico e alto significado para conhecer um ponto fulcral do Sul da Guiné, na década de 1910. O autor fala com rigor dos recursos hídricos, descreve as etnias, as produções, os sistemas de justiça indígena, os tipos de habitação, o grau de civilização. Mas a sua observação é de uma minúcia sem rival. Perguntado sobre os géneros ou artigos que os indígenas mais apreciam, tem resposta pronta: cola, açúcar, panos do país ou imitações de importação, contaria, âmbar, bandas, tabaco e álcool (evidentemente os que não professam a religião de Maomé). Diz também que são poucas ou nenhumas as relações comerciais com os povos da colónia vizinha e as que havia consistiam na compra de cavalos e de cola, na venda de grandes cabaças. Perguntado sobre o armamento, também tem resposta pronta: possuem armas de espoleta e pedreneira, somente os régulos possuem espingardas aperfeiçoadas.

Indústrias? Não existiam, há tecelões em número diminuto.

Fala-se do fanado dos homens e das mulheres e o que o Capitão Castro Fernandes informa é por demais conhecido. Questionado sobre o trabalho das mulheres e crianças, comenta do seguinte modo:
“Entre sete para oito anos, tanto os rapazes como as raparigas começam a dedicar-se ao trabalho. Os rapazes pastoreiam o gado, fazem mondas nos terrenos cultivados, as raparigas auxiliam as mães nos trabalhos domésticos.
Aos 35 anos, é raro o indígena, principalmente o Fula, aparentar ter menos de 50 anos, podendo-se assim dizer que entre 40 a 45 é o período em que chega à velhice. A miséria orgânica, o temperamento linfático dos Fulas, acrescido com doenças venéreas, vulgar nesta raça, noutras o excesso de bebidas alcoólicas, as insuficiências alimentares são causa de cedo envelhecerem.
Com excepção da raça Beafada, em todas as outras é o homem que classicamente se dedica à lavoura e as mulheres ao trabalho doméstico. O Beafada e mesmo o Mandinga oriundo da raça Beafada faz da mulher uma besta de carga”.

Se o inquérito obriga a respostas de grande amplitude devido aos assuntos versados, o Capitão Castro Fernandes não parece constrangido: descreve o vestuário das mulheres e até os seus adornos, sabe como se vestem as Fulas, as Mandingas e as Beafadas, e o mesmo se dirá do vestuário masculino, fala-se até das superstições e nos curandeiros. Perguntado se o gado é castrado, dá uma resposta direta e seca: “Castram o gado por um processo bárbaro do esmagamento dos testículos entre dois maços de pedra, passando um ferro em brasa, quando estão reduzidos a uma massa”. E segue-se uma pergunta direta para a qual a resposta não tem hesitação: Aplica castigos corporais? E segue-se a resposta: “Durante 25 anos de serviço efectivo, sendo mais de 13 como oficial, nunca apliquei castigos corporais a quem quer que seja; contudo, durante esta minha longa carreira, tenho dado uma ou outra bofetada ou chicotada nos meus subordinados de categoria baixa, soldados ou mesmo guardas da Administração, que pelo seu procedimento incorrecto e por necessidade de correctivo imediato a isso me obrigam, mas essas vezes talvez nem mesmo cheguem a umas seis”.

Parece que há uma gama de assuntos melindrosos que são deixados para o fim, neste caso é-lhe perguntado se no momento da cobrança passa recibos individuais ou coletivos e responde que passa recibos aos chefes de moranças, os recibos eram passados em nome dos chefes das povoações, mas no caso dos Fulas, Brames e Manjacos, os recibos eram emitidos com o nome dos chefes das moranças. O imposto de palhota era todo cobrado na sede da circunscrição, mas havia exceções, havia imposto pago no posto de Fulacunda e o pagamento do imposto de palhota dentro das concessões era feito por intermédio dos proprietários dessas concessões. Havia quem não queria pagar, é certo, ele comenta a situação: “É vulgar entre os indígenas pedir insistentemente para se lhe dispensar o pagamento de palhota, invocando a seu favor motivos que tendem eludir o arrolamento ao incauto que não esteja prevenido dos ardis de que o indígena se serve para se esquivar ao pagamento de uma ou mais palhotas”. São descrições saborosas em que se faz alusão à contagem de camas, à história dos diferentes arrolamentos efetuados, à distinção de palhota por grupo de cada duas camas, o comportamento de cada uma das etnias para tentar ludibriar a autoridade.

Já perto do final, o assunto inquirido tem a ver com caça, as espécies que mais abundam, se há elefantes e búfalos e ele responde que há caça em abundância e fala nas principais espécies.


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Nota do editor

Postes anteriores de:

26 de dezembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19336: Historiografia da presença portuguesa em África (141): Meu Corubal, meu amor (1) (Mário Beja Santos)

2 de janeiro de 2019 > Guiné 61/74 - P19356: Historiografia da presença portuguesa em África (142): Meu Corubal, meu amor (2) (Mário Beja Santos)

9 de janeiro de 2019 > Guiné 61/74 - P19386: Historiografia da presença portuguesa em África (143): Meu Corubal, meu amor (3) (Mário Beja Santos)

16 de janeiro de 2019 > Guiné 61/74 - P19408: Historiografia da presença portuguesa em África (144): Meu Corubal, meu amor (4) (Mário Beja Santos)

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