Queridos amigos,
Este relatório dos primeiros anos da I República é uma pequena pérola. O Capitão Castro Fernandes dá sobejas provas de que era administrador empenhado, conhecedor do terreno, dos rios e rias, das etnias, das culturas, dos usos e costumes. Vale a pena recordar que nesta época ainda não se tinham visto os resultados das campanhas de pacificação e ocupação, o capitão desloca-se livremente, pratica a justiça com enorme prudência, avalia recursos, está atentíssimo à produção de milho e de arroz e mais nos surpreenderá quando falar do trabalho indígena, dos usos e costumes, do comércio.
É uma grata surpresa, este relatório que foi datilografado em 1931 e está nos Reservados da Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa.
Um abraço do
Mário
Meu Corubal, meu amor (3)
Beja Santos
Nos Reservados da Sociedade de Geografia de Lisboa consta um dossiê assim apresentado: Província da Guiné – Relatório de autor ignorado (mas que julgamos ter sido elaborado pelo antigo Administrador de Buba, Capitão José António de Castro Fernandes, natural da Índia, cujo filhos residem, ainda, na Guiné. O original existia em poder do falecido Capitão Alberto Soares, antigo Administrador do Concelho de Bolama, combatente das campanhas de pacificação). Quem datilografou em 1931 diz que faltam as primeiras páginas, o que reproduz inicialmente está cheio de tracejado, é manifestamente incompreensível. O manuscrito, como iremos ver, é da década de 1910.
O documento datilografado (presumivelmente em 1931) começa por dizer tratar-se de Cópia – Extraída de um relatório, feito por autor desconhecido. Quem terá datilografado foi António Pereira Cardoso, funcionário colonial vastamente referido em diferentes relatórios das décadas de 1930 e 1940. O Capitão Castro Fernandes já nos deu um retrato saboroso dos rios da circunscrição de Buba, com ênfase para o Corubal, elencou as etnias da região e fala agora de natalidade, morbilidade e mortalidade. Começa por dizer que é muito raro encontrarem-se indivíduos com mais de 60 anos. O temperamento linfático dos Fulas, acrescido com doenças venéreas, o excesso de bebidas alcoólicas e a insuficiência de alimentação contribui para lhes encurtar a existência, que em média não é superior a 50 anos. Nas crianças, é grande a mortalidade até aos 2 anos, só compensada pela grande natalidade. As doenças mais frequentes são as febres, a bronquite infeciosa, pneumonias, blenorragias e outras manifestações graves de sífilis, nas crianças a enterite é desanimadora. E diz mais, apesar de se encontrar na circunscrição a mosca tsé-tsé, não conhece nenhum caso de doença de sono, já havia um caso de lepra no Forreá e havia uma mulher com elefantíase no Corubal e vários casos nos Beafadas do Quínara.
Interpelado no inquérito acerca dos produtos naturais da região, responde que são a cera bruta e limpa, o coconote, a borracha e a goma copal. O indígena cultiva mancarra, arroz e milho. O arroz é de diversas qualidades. O melhor de entre as variedades de arroz plantado no terreno seco é o Popé e do plantado nas bolanhas é o Iacé. O arroz de sequeiro assegura um bom êxito da sua cultura, quando haja muita frequência de chuvas e calor acompanhado de orvalho, depois de espigar. Fala demoradamente sobre as qualidades de arroz e milho e faz uma exposição sobre o gado existente na circunscrição.
Respondendo ao número de casas comerciais existentes, bem quanto a comerciantes que negoceiam no interior, responde que são 80 as operações comerciais existentes na área da circunscrição, estabelecimentos em Bafatá de Buba, Nachon, Xitole, Cumbidjã, Empada e Fulacunda. Nenhuma dificuldade era posta na concessão de licenças. Fala igualmente de ensaios de culturas, caso de bananeiras, cafezeiros e cajueiros e depois expõe demoradamente o processo adotado pelos indígenas para extrair a borracha, dizendo que toda a borracha da circunscrição de Buba é de primeira qualidade. Adianta que a circunscrição é rica na produção de coconote, designadamente nas margens do rio Corubal e seus afluentes. Se algumas dúvidas ainda subsistissem sobre os largos conhecimentos do administrador acerca da região, tudo fica esclarecido com o que ele observa acerca das áreas cultivadas. Vale a pena citá-lo na íntegra:
“Para a cultura do milho, escolhem terrenos planos, leves e algo areentos. São preferidos os terrenos altos e desafrontados, geralmente no campo um pouco afastados das populações. Preparam o terreno fazendo uma queimada, o que é indispensável não só para adubar o solo como para afugentar a formiga ou a bagabaga. À primeira bátega de água, revolvem a terra à profundidade de 22 ou 25 centímetros, plantando as sementes distanciadas uns 50 centímetros. Durante o crescimento fazem algumas mondas.
Nas proximidades das habitações plantam: batata-doce, baguixe, cabaças e milho tubanho (milho da América ou de Cabo Verde).
A plantação de arroz fazem sempre em locais afastados das povoações, nas várzeas ou lalas.
Para o arroz de sequeiro preferem terrenos altos que pela sua inclinação permitam fácil escoamento da água. O terreno é previamente preparado com queimadas e estrume de curral e só depois revolvida a terra. Divide-se então em leiras, abrindo entre estas valas que estando mais ou menos cheias de água conservam a humidade necessária.
Para o arroz das bolanhas ou de lala, preferem os terrenos junto dos rios, dispostos em planícies, de forma a que possam conservar nelas toda a água das chuvas. O terreno para este arroz requer uma preparação especial. Os Balantas são os únicos que melhor preparam o terreno para este arroz, e são os que fazem importantes trabalhos de irrigação e que consistem no seguinte:
Primeiramente, procede-se à limpeza e ao arranque das raízes de qualquer vegetação e fazem a lavoura profunda. Em seguida forma-se a armação em plano perfeitamente horizontal, de forma que facilmente possam inundar o terreno; dividem-se em tabuleiros quadrados ou rectangulares, conforme a direcção das águas e disposição do terreno”.
Dificilmente se pode duvidar que este administrador era um grande conhecedor da realidade agrícola desta região Sul.
O assunto agora muda de direção, fala-se em justiça, é perguntado como pune os delitos que o indígena mais comumente pratica. É direto e parcimonioso na resposta, dizendo que o Fula geralmente comete poucos delitos. As suas principais e frequentes queixas são sobre vacas em dívida, divórcios e questões de família; todas estas questões são resolvidas ouvindo o régulo e os homens grandes, e nunca com punições. Por delitos, têm sido punidos vários Fulas, por emprego de facas curvas na extração da borracha; corte das plantas de borracha e ainda o das palmeiras de coconote; falta de cumprimento das ordens dos chefes e dos régulos; espancamentos com ou sem ferimentos; ameaças com armas de fogo, etc. Entre os Mancanhas são frequentes os delitos por espancamento e ferimentos. Entre os Balantas é mais frequente o delito por furtos. Qualquer que seja a justiça a resolver, seja por simples questão de família ou seja por delitos cometidos, são sempre resolvidas em pública audiência, com a presença do régulo e homens grandes, ouvindo as testemunhas, o queixoso e o acusado. Os régulos e os homens grandes também são ouvidos, e nunca multa alguma se aplicou sem previamente ouvir a opinião dos régulos e homens grandes, sobre qual ela deve ser, mas, em geral, as multas por mim aplicadas foram sempre reduzidas a metade das indicadas por eles.
Muito há ainda a dizer sobre este relatório, ir-se-á falar de trabalho indígena, população, o grau de civilização dos indígenas, usos e costumes e algo mais – o suficiente para olhar para este documento como prova etnográfica de grande valia. Recorde-se que estamos nos primeiros anos da República, ainda não se fala das grandes campanhas de ocupação e pacificação, este administrador percorria a circunscrição de Buba pelo seu próprio pé ou de canoa, em nenhuma página do relatório fala de riscos para a sua vida ou de tensões no seu relacionamento com os régulos do Forreá e do Quínara.
(Continua)
Não é a primeira vez que se põe esta imagem, faz parte da minha relação muitíssimo íntima com o rio Geba, em Mato de Cão, é aqui que a estação se posiciona, as colunas de cimento e o que resta da estação, mesmo com as marcações para a água existiam há 50 anos atrás, a passadeira em madeira já estava num escombro, tinham caído as guardas, mas eu podia ir até junto do marco da estação e pedir boleia aos barcos civis e militares que seguiam para Bambadinca. Na margem esquerda, segue-se me direção a Ponta Varela, local temível no tráfego fluvial, corria-se o risco de roquetadas.
Ambas estas imagens são extraídas do livro “As comunicações e os aproveitamentos hidráulicos da Guiné, Angola e Moçambique”, Agência-Geral do Ultramar, 1961.
Dançarinos numa festa em Formosa, num documento dedicado ao estuário do rio Buba.
Imagem retirada do site http://gw.geoview.info/rio_grande_de_buba,2372291, com a devida vénia.
____________Nota do editor
Último poste da série de 2 de janeiro de 2019 > Guiné 61/74 - P19356: Historiografia da presença portuguesa em África (142): Meu Corubal, meu amor (2) (Mário Beja Santos)
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