Sede do BNU na Avenida 5 de Outubro - Lisboa.
1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Maio de 2018:
Queridos amigos,
Nunca me fora dado ler um documento onde se transmite o estado de transtorno e de desconfiança a que chegam as relações entre militares e civis, no quadro da eclosão da subversão no Sul. O documento, não datado, constante do Arquivo Histórico do BNU, saiu seguramente do punho do gerente da Sociedade Comercial Ultramarina, foi despachado pelo Administrador Castro Fernandes no início de junho de 1963, dá conta do desmantelamento económico rapidamente ocorrido nos primeiros meses de 1963 e na crispação e estado de suspeição entre os militares de Catió e os encarregados da Sociedade Comercial Ultramarina.
É o horror da guerra, parece gritar este relato com parágrafos tão pungentes.
Um abraço do
Mário
Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (68)
Beja Santos
Na documentação avulsa do Arquivo Histórico do BNU encontra-se um documento não assinado mas que foi visto por Castro Fernandes em 27 de junho, intitulado “Situação Política da Guiné”, pelo seu teor percebe-se rapidamente que é um relatório que saiu da mão do responsável da Sociedade Comercial Ultramarina na Província. Começa por dizer que estavam a ser levadas a efeito na região Sul diversas ações de repressão que, segundo opinião geral da população civil, serviam apenas para dificultar as relações com os naturais, assumiam o aspeto de ações esporádicas com caráter de represália, em face da descontinuidade de atuação graças à falta de efetivos. Havia muita gente afetada do ponto de vista económico, considerava-se como perdida a atual safra de arroz por falta de colheita, de debulha e de comercialização.
A repressão atingia muitos operadores económicos, assumia também o caráter de confrontos militares, e o relator procede minuciosamente à descrição dos acontecimentos:
“ – Assalto a Jabadá à casa de Jamil Heneni e na sequência assalto às embarcações que ali foram para fazer o rescaldo. Desaparecimento do empregado;
- Assalto a uma propriedade na mesma área onde trabalhava Carolino Barbosa de Andrade, irmão do nosso encarregado de Bolama e que desapareceu;
- Assalto em S. João ao pessoal enviado de Bissau pela Casa Gouveia para carregar uma lancha;
- Assalto a uma propriedade do comerciante Lourenço Marques Duarte, perto de Catió, onde o sobrinho pereceu, tendo sido encontrado barbaramente retalhado;
- Tentativa de assalto a um ou dois pontos isolados nas cercarias de Catió. Num deles retalharam um Fula;
- Duas tentativas de assalto à guarnição de Cabedu;
- Emboscada a uma patrulha militar perto de Cafine. Ao que parece, as viaturas ficaram incapazes e os soldados conseguiram regressar a pé a Bedanda;
- Emboscada a uma patrulha militar em local que desconhecemos por um grande grupo armado de catanas que se atiravam das árvores para cima das viaturas, e que teve grandes baixas;
- Armadilha preparada entre S. Domingos e a fronteira onde pereceu o Capitão Carmo;
- Assalto a Darsalame aos cipaios aquartelados na casa do comerciante Sr. José Castro Fernandes, os quais abriram fogo sobre os atacantes que pegaram fogo à casa. O nosso empregado parece ter fugido na confusão para o mato e tanto quanto sabemos a nossa casa não foi tocada, mas não conseguimos mais notícias;
- Assalto a Bambaiã ao barco da carreira do Lourenço Marques Duarte, que foi destruído;
- Tiros feitos sob o barco do Estudo em carreira de Catió para Bolama e Bissau”.
O relator desfia um corolário de queixumes quanto à falta de cobertura militar que permitisse a retirada de valores:
“O que se tem feito, fez-se com nosso pessoal, necessariamente com risco, pois do Chequal retirou-se arroz por três vezes e na segunda o auxiliar de Banta que ali foi fazer o carregamento foi avisado de que lá não deveria voltar, pois poderia sofrer e a embarcação também. No entanto, retornaram lá para retirar apenas mais 25 toneladas, entretanto apareceram terroristas que intimaram o mestre do Santa Comba a largar imediatamente, dizendo que o produto ficaria ali para a população compensar o que a tropa tinha queimado. Em Unal, o empregado, após o encerramento inicial, tentou lá voltar mais duas vezes, na segunda das quais regressou de canoa ao Xugué conduzida por ele próprio. Mais recentemente foi lá com o motor para tentar retirar tudo e caiu nas mãos dos terroristas e bem assim o mestre do motor Bandim”.
O documento tem outra relevante dimensão quanto ao estado crescente de suspeições e até arbitrariedades. O relator estivera em Catió e falara com o tenente-coronel Delgado que lhe referiu que o empregado de Banta, Augusto Lopes Pereira, que fora deixado em liberdade condicional naquela povoação como “isca”, estaria envolvido em acontecimentos de sublevação e em estreita ligação com o PAI (designação anterior do PAIGC).
E escreve:
“Tendo-nos o empregado referido os interrogatórios a que foi sujeito por aquele oficial, e depois pela PIDE, aquele oficial perguntou-lhe se conhecia um agitador de nome Cusselima, que o empregado na realidade conheceu e que desaparecera de Banta há muito, estando preso na Ilha das Galinhas, e aquele oficial fez então uma referência a uma fotografia ao que o empregado lhe disse que se o Cusselima só poderia ter uma fotografia sua se acaso lha tivesse roubado. Posteriormente, porém, ao agente da PIDE disse que três meliantes, em Outubro do ano passado, de pistolas apontadas entraram-lhe em casa e exigiram dele uma fotografia sua que estava sobre o móvel e que o ameaçaram de morte se porventura referisse a visita às autoridades e outra anterior em que o tinham convidado a aderir, e que em qualquer sítio da Guiné onde estivesse, seria apanhado. A ser verdade o que ora conta, o seu erro foi, como lhe dissemos, não ter vindo expor a situação para se proceder a uma transferência para que pudesse contar os factos às autoridades”.
O estado a que chegara a guerra no Sul, segundo o relator, justificava que se fechassem todas as casas do Sul, incluindo as que estavam em centros militares, paralisando todas as embarcações e dispensando todo o pessoal. No relatório faz-se menção que o Quartel-General encarava agora uma atuação que visasse uma melhor proteção das atividades económicas. Refere-se igualmente no relatório que era percetível a existência de atritos entre o Governo e o Quartel-General.
Atenda-se agora à seguinte observação:
“Certos e determinados aspectos da actuação militar com um carácter de terrorismo às populações nativas, de que aliás só tenho conhecimento verbal e portanto delas não podemos tomar a responsabilidade, ainda que verbalmente transmitidas a Sua Ex.ª , não foram referidas no memorial entregue ao Governo dado que quem mais sofre com a repressão serão os que directamente nada têm com os incidentes e que alguns, senão muitos, dos factos ocorridos são avolumados e multiplicados pela opinião pública que está a criar a impressão de que queimar tabancas e arroz aí armazenado e a morte eventual de mulheres e crianças trará um ódio ao europeu que não mais poderá ser sanado, uma vez que o terrorismo de início afectou a população nativa e depois foi dirigido contra a ocupação militar e só mais recentemente evoluiu no sentido de ataque económico. Do memorial consta uma posição actual do arroz em casca. O Governo da Província encara a necessidade de importar arroz mas não sabemos se tenciona fazê-lo por sua conta e risco ou através do comércio”.
E continua a dar informações sobre a atividade da guerrilha no Sul:
“Já com o memorial pronto, o encarregado de Catió chamou-nos ao telefone pois o encarregado José Saldanha, de Unal, de onde teve de fugir três vezes, fora preso pelas forças militares, e estava no quartel de Catió onde já tinha sido maltratado… Pusemo-nos em contacto imediato com o Quartel-General, onde o Subchefe do Estado-Maior não pareceu gostar muito da ideia. Hoje de manhã, de Catió, disseram-nos que o empregado tinha sido libertado e do Quartel-General disseram-nos que de Catió chegara um rádio em que se dizia que o nosso empregado do Unal tinha sido interceptado naquele local por terroristas armados por seis pistolas-metralhadoras, pelo que iam proceder imediatamente a uma operação naquela área e apoiar o carregamento dos valores que ainda lá estão”.
O relatório não deixa margem para dúvidas, os trabalhadores da Sociedade Comercial Ultramarina do Sul estavam em polvorosa, e o relator assim escreve:
“Da parte dos empregados do Sul, a impressão que nos foi transmitida pelo encarregado de Catió é que se continuarem a ser tratados como colaboracionistas pelas autoridades militares, deixarão os locais onde trabalham, pelo que a suspeita representa e a estranheza da sua situação de terem talvez a vida arriscada pelo terrorismo e passarem a ter a desconfiança das autoridades militares apesar do muito auxílio e informações que lhes têm prestado, sempre prontos a uma colaboração efectiva.
A decisão que tomámos, de forçar o assunto e de sair a terreiro pelos empregados, principalmente de Catió e de Unal, pode ser mal interpretada, mas porque não era assunto que telefonicamente fosse exposto, entendemos que a devíamos tomar mesmo com os riscos inerentes à dureza actual das autoridades na apreciação dos actos dos civis, mas não podemos de qualquer dos modos deixar de estar preocupados com o facto, até porque fizemos a ameaça velada de fechar os estabelecimentos do Sul, desarmar as embarcações para reparação em estaleiro e reduzir os quadros de pessoal, sem esperar para tanto o acordo do Governo da Província, e depois de acordar com V. Exas. para o que bastaria pintar a situação mais negra do que na realidade é.
"Assim muito agradecíamos os vossos comentários e se possível, em face do vosso conhecimento da situação e do que melhor convém à firma, nos fosse dada uma linha de orientação que permita que esta gerência possa ter a noção de estar com os pés o mais assentes possível sobre um terreno que se normalmente é escorregadio na presente situação é completamente movediço, mas sentimos que há necessidade de um pouco de terreno firme onde pousar, mas por enquanto ainda não o conseguimos encontrar”.
(Continua)
Passagem submersível do Saltinho,
Do álbum “Guiné – Alvorada do Império”, 1953, trata-se de uma homenagem ao Governador Raimundo Serrão.
A Farmácia do Estado em Bissau.
Fotografia do álbum “Guiné – Alvorada do Império”, 1953, trata-se de uma homenagem ao Governador Raimundo Serrão.
Notas do editor
Poste anterior de 4 de janeiro de 2019 > Guiné 61/74 - P19361: Notas de leitura (1137): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (67) (Mário Beja Santos)
Último poste da série de 7 de janeiro de 2019 > Guiné 61/74 - P19377: Notas de leitura (1139): “Vozes de Abril na Descolonização”, a organização é de Ana Mouta Faria e Jorge Martins e os entrevistados dos três teatros de operações foram Carlos de Matos Gomes, José Villalobos Filipe e Nuno Lousada, edição do CEHC – Centro de Estudos de História Contemporânea do Instituto Universitário de Lisboa, 2014 (1) (Mário Beja Santos)
1 comentário:
Não sei se o nosso coeditor Jorge Araújo, o único de nós que ainda está no "ativo", exercendo funções no ensino superior, longe de casa, no Algarve, tem possibilidades de "cotejar" a versão dos acontecimentos da "guerra subversiva" no sul, em meados de 1963 com a(s) versão(ões) do "outro lado do combate"...
Comtinuamos a ter um conhecimento muito fragmentado destes "anos de chumbo, de 1961 a 1964...Mas a "guerra subversiva" na Guiné também não foi muito diferente do que se passou em Angola: sabotagem de pontes, vias de comunicação, linhas telefónicas, ataques a barcos e instalações portuárias, assaltos a armazéns, intimidação e assassínio dos representantes locaos de casas comerciais, assassínio de comerciantes, ataques a populações indefesas... A escala era "outra", é certro, mas os métodos não foram diferentes... Amílcar Cabral seguiu o figurino da luta de guerrilha... E com terrível eficácia... Por exemplo, a Guiné deixou perder a segurança aimentar que era o arroz... O sul tornou-se ra+idamente num campo de batalha...
O tal tenente coronel Delgadp acima referido nos documentos citados era o comandante do BCAÇ 356, mobilizado pelo BCAÇ 5, que partiu ara o CTIG em 17/1/1962 e regressou a 17/1/1964, dois anos depois... Esteve em Bissau, Cufar e Catió, portanto em plena região de Tombali. Seu nome completo: ten cor inf José Maria da Silva Delgado.
BCAÇ 356 (Bissau, Cufar, Catió, 1962/64): alguém sabe destes camaradas ? Temos 7 rferências a esta unidade... É muito pouco.
https://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/search/label/BCa%C3%A7%20356
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