quarta-feira, 16 de janeiro de 2019

Guiné 61/74 - P19408: Historiografia da presença portuguesa em África (145): Meu Corubal, meu amor (4) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Junho de 2018:

Queridos amigos,
Não deixa de provocar assombro como neste período tão tumultuoso da I República, em que à Guiné arribaram por vezes governadores sem o mínimo de preparação, ter havido a preocupação de lançar inquéritos para toda a administração da colónia com questões minuciosas sobre a geografia, os recursos hídricos, as matas e florestas, a natureza das populações, a justiça, o produzir e o modo de produzir, o comércio, a cobrança dos impostos, e muito mais.
O Capitão Castro Fernandes, digo-o sem exagero, deixou-nos um documento de grande vivacidade, era conhecedor do território que administrava e quando se quiser fazer o estudo elaborado desta década de 1910 no Quínara e no Forreá este relatório é de consulta indispensável, sem margem para dúvidas.

Um abraço do
Mário


Meu Corubal, meu amor (4)

Beja Santos

Nos Reservados da Sociedade de Geografia de Lisboa consta um dossiê assim apresentado: Província da Guiné – Relatório de autor ignorado (mas que julgamos ter sido elaborado pelo antigo administrador de Buba, Capitão José António de Castro Fernandes, natural da Índia, cujo filhos residem, ainda, na Guiné. O original existia em poder do falecido Capitão Alberto Soares, antigo administrador do concelho de Bolama, combatente das campanhas de pacificação). Quem datilografou em 1931 diz que faltam as primeiras páginas, o que reproduz inicialmente está cheio de tracejado, é manifestamente incompreensível. O manuscrito, como iremos ver, é da década de 1910.

O documento datilografado (presumivelmente em 1931) começa por dizer tratar-se de Cópia – Extraída de um relatório, feito por autor desconhecido. Quem terá datilografado foi António Pereira Cardoso, funcionário colonial vastamente referido em diferentes relatórios das décadas de 1930 e 1940.

O mínimo que se pode dizer deste relatório é de que se trata de um valioso retrato de observação de alguém que, sem sombra de dúvida, percorreu todos os cantos da sua administração, fala com propriedade dos recursos hídricos, das etnias ali residentes, do que se produz e como se produz, das práticas de justiça, do trabalho indígena, do grau de civilização das populações.

Estamos agora no trabalho indígena, ele associa-o às obras dentro da circunscrição: capinação e limpeza dos caminhos, pranchas em todos os cursos de água – trabalho que não é remunerado por ser do interesse comum. E adianta que se faz capinação três vezes ao ano em Buba, o trabalho não é remunerado mas já foi, com ração e o pagamento de 10 centavos, quando executado por indígenas de povoações longínquas.
E elenca outras atividades:
“Construção das palhotas para os Postos do Corubal, Quínara e Cubisseco e renovação anual das suas coberturas. Remunerado com ração diária de arroz, regulada pelos chefes dos Postos e por minha ordem, à razão de 10 a 15 centavos por cada trabalhador.
Renovação anual da cobertura da palhota de Buba, para régulos e indígenas em trânsito. Não remunerado por ser de interesse comum.
Abertura de valetas em Buba. Trabalho exclusivamente executado por Papéis, assalariados a 24 centavos diários.
Demarcação de 20 mil hectares de terreno concedidos a Souza e Almeida, no Forreá e Corubal. Trabalho remunerado directamente pelo agrimensor, regulado a ração ou em dinheiro, uns a 15 outros a 20 centavos diários, conforme menor ou maior actividade demonstrada no trabalho.
Construção da linha telegráfica de Buba a Cacine. Remunerado a 15 centavos diários cada indígena.
Construção do cais-ponte em Buba e respectivo aterro. Trabalharam Papéis, pessoal menor da Administração, presos e Fulas.
Corte de lenha para as canhoneiras. Trabalho remunerado a um escudo a tonelada. Condução de malas do correio. Remunerado, regulado a 50 centavos diários. Condução de cargas de funcionários públicos em trânsito, e bem assim os transportes para estes. Não remunerados por ser não só da praxe nada pagar, como também por ser uma obrigação dos impostos nas cláusulas do tratado de submissão na guerra de 1895, quando batidos no Forreá”.

Esclarece que a população da circunscrição tem aumentado de uma forma progressiva, sobretudo nos regulados de Contabane, Quínara e Cubisseco. Tendo sido perguntado como faz o arrolamento, responde assim:
“Nos territórios do Forreá e Corubal o arrolamento é feito a cavalo, gastando-se 22 dias. Nos territórios do Quínara e Cubisseco é feito de lancha a vapor, gastando-se 25 dias. Não tendo a circunscrição um barco a vapor, e sendo este fornecido pela Capitania, com indicação dos dias em que pode ser utilizado, há a sujeitar-se a esta indicação.
Chegado a uma tabanca, a contagem das palhotas, sempre mandei que fosse feita pelo ‘grande’ do régulo que me acompanha, limitando-me eu a verificar a exactidão do arrolamento anterior: nomes dos indivíduos que passaram para outras povoações; nome dos que entraram de novo ou de outras povoações e nome dos falecidos no penúltimo ano. Estes esclarecimentos são fornecidos pelo régulo. Por esta forma não podem ser lesados os interesses do Estado, o que de contrário se sucederia, pois que o indígena quando se aproxima a época do arrolamento, reduz ao mínimo o número das palhotas, aproveitando para moradias as cozinhas, as palhotas destinadas aos cavalos na época pluviosa, as palhotas destinadas para a arrecadação do milho e do arroz, enchendo de palha e milho as que são habitadas, para fingirem que são arrecadações, e, finalmente, espalhando no solo estrume de cabras e carneiros, para fingirem que são palhotas destinadas a resguardo destes.
As palhotas habitadas por indigentes e bem assim as dos impossibilitados de trabalhar e que vivem da caridade pública, nunca deixei de dispensar de pagamento, desde que se reconheça que são dos próprios, o que facilmente se distingue pela construção e estado interior e exterior da palhota.
Num dos arrolamentos a que procedi, encontrei sucessivamente em três tabancas um indigente que tinha a mão com falta de dedos, por onde, se pode calcular, quanta ardileza emprega o indígena, como aliás todos os povos, para se esquivarem ao fisco.”

Questionado quanto ao grau de civilização em que se encontram os povos da sua jurisdição, responde deste modo:
“Os Fulas, Mandingas e mesmo os Beafadas, estão, em relação aos Balantas, Brames e Manjacos, num grau de civilização bastante adiantado. O seu vestuário, os seus usos, e a forma amável e hospitaleira como recebem demonstram o grau bastante elevado da sua civilização.
Os Balantas, Brames e Manjacos, algo atrasados, o que demonstram no seu vestuário, nos usos e costumes e nas suas questões de família, estão mergulhados num grosseiro feiticismo, prestando culto a diversas árvores, principalmente aos poilões, onde em todas as circunstâncias difíceis vão consultar para receber esclarecimentos sobre o futuro ou saber o significado de algum facto já realizado. Quem conhece estas raças nos seus territórios de Cacheu ou Mansoa, fica surpreendido de os ver no território do Quínara, com a mudança radical dos seus hábitos de selvajaria, produzida pela aproximação de raças mais adiantadas. Não é fácil nem rápida a transformação de hábitos inveterados numa raça. Toda a circunscrição está por completo pacificada, tendo para isso exercido uma grande influência não só à administração local directa, o êxito das últimas guerrilhas e a estada do régulo Cherno Kali e ‘grandes’ em Portugal, aquando do centenário da Descoberta da Índia, em 1898.
Pode-se avaliar o grau de pacificação completa pela docilidade e submissão com que todos, sejam Fulas, Brames ou Balantas, se apresentam na administração para fazer as suas queixas ou apresentar as questões de família; pela prontidão com que apresentam carregadores e sem relutância desempenham os serviços de limpeza dos caminhos; e, ainda, como no dia em que lhes for indicado, pagam o respectivo imposto de palhota, na maioria na sede da circunscrição em Buba.”

(Continua)




Estas três imagens foram retiradas do livro de Francisco Tenreiro, “Acerca da casa e do povoamento da Guiné (Estudos, Ensaios e Documentos) ”, Ministério das Colónias, 1950. Atenda-se à observação que o professor Orlando Ribeiro pôs nestes registos de grande pendor humanístico.
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Nota do editor

Último poste da série de 9 de janeiro de 2019 > Guiné 61/74 - P19386: Historiografia da presença portuguesa em África (143): Meu Corubal, meu amor (3) (Mário Beja Santos)

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