sexta-feira, 1 de fevereiro de 2019

Guiné 61/74 - P19458: (In)citações (124): A Angola e os angolanos que eu conheci e que ficaram no meu coração: os nossos camaradas angolanos eram filhos do povo, do admirável e sofrido povo de Angola; (...) para a esmagadora maioria deles, foi só quando passaram a fazer parte da nossa companhia que eles puderam, pela primeira vez nas suas vidas, relacionar-se com brancos de igual para igual, olhos nos olhos, ombro com ombro, de homem para homem ... (Fernando de Sousa Ribeiro, ex-alf mil, CCAÇ 3535, 1972/74)

Fernando de Sousa Ribeiro. Vive no Porto.
Mss também gosta de Lisboa  onde viveu e trabalhou
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1. Mensagem de Fernando de Sousa Ribeiro, ex-alf mil, CCAÇ 3535 (Angola, 1972/74), membro da Tabanca Grande desde 11 de novembro de 2018_

Obrihgado, Luís, pelos votos e pelo vídeo.

Alguma coisa tem vindo a mudar em Angola desde que João Lourenço assumiu a presidência. Este vídeo [, em que o comandantenacional da política denuncia, publicamente, a corrupção na instituição e expulsa das suas suas fileiras alguns dos seus mais elementos] é uma demonstração real disso.

Mas as dificuldades que o João Lourenço está a enfrentar são provavelmente maiores do que as que ele esperava encontrar, sobretudo no que ao repatriamento de capitais desviados para os paraísos fiscais diz respeito.

Até agora, ele só tem ouvido palavras aparentemente muito simpáticas de vários governos e entidades internacionais, mas sem consequências práticas. O Reino Unido, então, já recusou repatriar os 500 Milhões  de dólares desviados do Fundo Soberano de Angola pelo filho mais novo do José Eduardo dos Santos, José Filomeno dos Santos, e sua quadrilha. É a pérfida Albion no seu "melhor".

De qualquer modo, o tempo parece estar a jogar a favor de João Lourenço, que vai consolidando o seu poder, mas também joga contra ele, porque a economia angolana não parece estar a "levantar voo", nem pouco mais ou menos. Espera-se que este ano a economia do país entre em recessão, o que é muito mau.

Esperemos para ver, desejando que as coisas melhorem, para bem de um povo que eu aprendi a amar, graças aos maravilhosos subordinados angolanos que tive o supremo privilégio de comandar e pelos quais choro copiosas lágrimas de saudade.

A este respeito, permito-me reproduzir as seguintes palavras que lhes dediquei no meu livro inédito de memórias da guerra, a que dei o título de "Dignidade e Ignomínia":


Sinto um orgulho enorme nos subordinados [portugueses e angolanos] que me coube comandar.

(...) Posso (...) afirmar categoricamente que fui um privilegiado por ter tido a meu lado companheiros dotados de uma tal fibra.

Fui ainda mais privilegiado porque entre eles havia angolanos, que foram das pessoas mais extraordinárias que conheci. Não há dinheiro no mundo que pague toda a sua sabedoria, toda a sua generosidade e toda a sua sensibilidade. Depois de os ter conhecido, nunca mais fui o mesmo.


Tenho os seus nomes escritos em letras de ouro no meu coração: Domingos Amado Neto, Silva Alfredo dos Santos, Domingos Cangúia, Diogo Manuel, Ramiro Elias da Silva, Domingos Jonas, Mateus Tchingúri, Jonas Vitorino, Lucas Quinta, Henrique Luneva, Raimundo Nunulo, Domingos Dala, Fortunato Francisco João Diogo e Simão João Leitão Cavaleiro. Nunca os esquecerei.

Os nossos camaradas angolanos eram filhos do povo. Do admirável e sofrido povo de Angola. Quer isto dizer que, para a esmagadora maioria deles, foi só quando passaram a fazer parte da nossa companhia que eles puderam, pela primeira vez nas suas vidas, relacionar-se com brancos de igual para igual. Olhos nos olhos, ombro com ombro, de homem para homem. E eles foram insuperáveis no companheirismo e na dignidade com que se relacionaram connosco, os europeus da companhia.


Encontrando-se na mesma situação que nós, os nossos camaradas angolanos não se limitaram a partilhar as suas vidas connosco no seio da companhia; eles fizeram parte integrante de nós mesmos, tanto quanto isto foi possível.


Eles travaram os mesmos combates que nós.


Eles caíram nas mesmas emboscadas que nós.


Eles enfrentaram as mesmas minas que nós.


Eles contornaram as mesmas "bocas‑de‑lobo" que nós.


Eles suaram os mesmos cansaços que nós.


Eles enjoaram as mesmas rações de combate que nós.


Eles dormiram debaixo da mesma chuva que nós.


Eles tremeram os mesmos medos que nós.


Eles riram as mesmas alegrias que nós.


Eles choraram as mesmas saudades que nós.


Eles acalentaram as mesmas esperanças que nós.


Eles foram nós. Todos fomos nós." (...)(**)
Um abraço

Fernando de Sousa Ribeiro
Porto, 12 de janeiro de 2019

7 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Mensagem que o editor Luís Grça mandou, na volta do correio, em 12/1/2019:


Fernando:

vejo que tens montes de recordações boas de Angola e dos teus/nossos camaradas angolanos... E mais: tens um livro inédito... À espera de quê ? Podes partilhá-lo no todo ou em parte no nosso blogue...Pelo menos, chegas a um público mais vasto... E há cada cada vez mais gente interessada em conhecer a história, a geografia e a cultura de Angola... e nomeadamente a segunda metade do sec. XX, terrívelpara o povo angolano...Quando fui lá pela primeira vez, em 2003, havia dezenas e dezenas de mutilados de guerra nas ruas... 400 mil diziam-me. Pediram-me para lá voltar em 2019, não sei se já terei forças...

Gostava de poder publicar o texto que escreveste, com as nevessárias adaptações, não vou exibir o vídeo, até porque não falamos da "atualidade política" dos nossos países... Por uma questão de coerência, autencidade, economia de meios, etc. Seria uma "caixinha de Pandora"... E eu só me interessa o "material vivido", as experiências, as emoções, as recordações do tempo da guerra colonial...

Um alfabravo, Luís Graça

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Escrevi o seguinte na tua página do Facebook, a propósitio desta tua "(in)citação":

Um extraordinário tributo a todos os nossos camaradas de armas, africanos (guineenses, cabo-verdianos, são tomenses, angolanos, moçambicanos), "que tremeram os mesmos medos que nós, (...) riram as mesmas alegrias que nós, (...) choraram as mesmas saudades que nós, (...) acalentaram as mesmas esperanças que nós"...LG

https://www.facebook.com/fernando.sousa.ribeiro.1

PS - Na minha CCAÇ 12, eu não tinha angolanos, mas tive guineenses (fulas, futa-fulas, 2 mandingas, 1 macanhe, era uma centena, tudo "carne para canhão", eles e nós, os graduados e os especialiostas "metropolitanos"... foram bravos, leais, generosos, até ao fim!... Alguns acabaram no pelotão de fuzilamento!)

Antº Rosinha disse...

A propósito dos soldados "indígenas", correu ontem, 31 de Janeiro, no jornal o Público, uma opinião sobre o herói nacional Marcelino da Mata, muito interessante, em que se abordava o assunto actualíssimo do racismo em Portugal, e o que foi a vida desse herói cá e lá, que gostei muito de ler.

Fernando, foram milhões na Guiné em Moçambique, em Caboverde, em Moçambique, em São Tomé e também Goeses, que mobilizámos, e que nos ajudaram, lado a lado, e até ao colo, (tipoia), durante 500 dos nossos 800 anos de história.

Sozinhos, sem eles, eramos muito pouquinhos para tanta façanha.

Poucos Marcelinos vieram connosco, com o fim do império, tem vindo mais quem tem dinheiro para as passagens.

Fernando de Sousa Ribeiro disse...

Fico muito agradecido com a publicação do post e com os comentários. Algo mais poderei acrescentar, que é o seguinte.

Depois de ter desembarcado no aeroporto de Luanda na manhã de 14 de junho de 1972, a minha companhia passou três ou quatro dias no quartel do Grafanil, nos arredores de Luanda, antes de seguir para o seu destino no mato. Durante os dias em que esteve no Grafanil, a companhia recebeu no seu seio os militares angolanos que a completaram (o chamado "grupo de mesclagem"), vindos do RI 22, em Sá da Bandeira, atual Lubango. Passo a reproduzir o que escrevi nas minhas memórias, a respeito do primeiro encontro entre militares metropolitanos e angolanos da companhia, ocorrido no Grafanil.

Os angolanos foram (…) encaminhados para a respetiva caserna, onde já estavam os seus camaradas portugueses, para que se instalassem junto destes. Finalmente, os pelotões estavam completos.

Na caserna, enquanto os angolanos se instalavam e arrumavam as suas coisas, os portugueses observavam-nos com curiosidade e comentavam em voz baixa uns com os outros:

— Ih, que pretos que eles são! É cada tição!

— Oh, pá, os gajos são todos iguais, são todos pretos… Como é que vamos conseguir distingui-los uns dos outros?

Por sua vez, enquanto faziam as suas arrumações, os angolanos mostravam-se descontraídos e faladores, para enorme surpresa minha, pois esperava que eles se apresentassem tristes e acabrunhados, porque estavam quase a partir para a guerra. Eu ainda não conhecia a maneira de ser espontânea e extrovertida que caracteriza a maioria do povo angolano.

Assim que terminaram as suas arrumações, os angolanos dirigiram-se aos seus camaradas portugueses, de sorriso no rosto e mão estendida, dizendo-lhes:

— Parece que vamos ter que nos aturar uns aos outros durante dois anos… Então, o melhor é começarmos já a conhecer-nos. Eu sou fulano de tal, sou de tal sítio e na vida civil tinha a profissão tal. E tu? Como te chamas? De que terra és? O que é que fazias na vida civil?

Com este seu gesto, os angolanos quebraram a desconfiança e o acanhamento dos portugueses. Estabeleceu-se de imediato um relacionamento tão natural e tão intenso, que quem os visse diria que eram velhos amigos que já não se viam há muito tempo e que estavam a pôr as conversas em dia. Eu, que a tudo assisti, fiquei encantado com a facilidade com que se iniciava aquela amizade entre brancos, negros e mestiços, amizade esta que iria durar até ao fim da comissão e que iria ser uma amizade para a vida e para a morte.

Ao fim do dia, quando ficamos livres das nossas obrigações e pudemos sair do quartel, todos os angolanos da companhia saíram logo disparados a correr pela porta fora. Os que eram de Luanda foram os primeiros a sair, ansiosos por voltar a casa e reencontrar os seus familiares. Desde que tinham sido incorporados no serviço militar obrigatório e enviados para o Regimento de Infantaria 22, em Sá da Bandeira, a fim de fazerem a recruta e a especialidade, nunca mais puderam estar junto dos seus. Tendo estado colocados a quase mil quilómetros de distância, é evidente que não tinham podido vir passar os fins de semana a casa…

Os restantes angolanos também saíram cheios de pressa. Meteram-se em táxis e foram diretamente à Ilha de Luanda, para verem o mar antes que a noite caísse. A maior parte deles nunca tinha visto o mar.


Um abraço

Fernando de Sousa Ribeiro, ex-alf mil, CCAÇ 3535, 1972/74

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Fernando, é um pequeno diamante, esse excerto do teu diário... Tens que nos deixar "espreitar" mais vezes esse teu já famoso diário... O que contas passou-se em muito lado, em Angola, na Guiné, em Moçambique. Faz parte do comportamento humano: o que é diferente "estranha-se", e depois rejeita-se ou aceita-se... O racismo não é "estranhar" o outro, é pura e simplesmente "recusar conhecer" o outro que é diferente... Muitos dos militares metropolitanos da época da guerra colonial também nunca tinham saído das suas terras, vilas e aldeias. A mobilidade era muito reduzida: os transmontanos nunca tinham visto um algarvio, os beirões não conheciam os açorianos, os madeirenses nunca saído a ilha, os raianos nunca tinham visto o mar nem sabiam o o que era a arte xávega e que os bois também lavravam o mar...

A diferença está apenas neste pormenor: tu apanhaste esse instantâneo do primeiro encontro entre militares da tuacompnhia, uns que vêm da mterópole e outros de diferentes pomtos de Angola... fixaste esse instante no teu diário, a maior parte dos militares portugueses não tinha esse hábito da escrita, a não ser o aerograma, a carta...

UMN bem hajas!... Luís

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Camaradas, se há algum mérito neste blogue (que vai fazer 15 anos em 23 de abril de 2019) é justamente o de poder publicar testemunhos de militares portugueses, da nossa geração, a que fez a última guerra do império...

Ainda bem que o Fernando de Sousa Ribeiro se quis juntar aos amigos e camaradas da Guiné... LG

João Carlos Abreu dos Santos disse...

... Excelente 'post'.