sábado, 2 de fevereiro de 2019

Guiné 61/74 - P19464: Os nossos seres, saberes e lazeres (306): Viagem à Holanda acima das águas (10) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 16 de Outubro de 2018:

Queridos amigos,
Era sonho muito antigo, conhecer esta herança portuguesa, a mais importante Sinagoga na Europa, que não a mais antiga. É ofuscante, deslumbra este compromisso entre um luxo contido e uma sobriedade de mobiliário e ornamentação, numa outra dimensão. E o diálogo das culturas, está ali a traça europeia e a especificidade dos artefactos e alfaias judaicas. Creio que a sinagoga mais antiga está em Praga, era ali que os nazis se preparavam para ter uma mostra dos "homens inferiores", no seu dizer racial. A Esnoga é o espelho de uma sociedade que ganhara opulência, os judeus sentiam-se seguros naquele país onde se gozara da liberdade de expressão enquanto nos demais as guerras religiosas destruíam civilização e cultura.

Um abraço do
Mário


Viagem à Holanda acima das águas (10)

Beja Santos

Fotografia dos canais de Amesterdão, retirada de http://www.dutchamsterdam.nl/6623-amsterdam-canals, com a devida vénia.

Para um neófito, sair do Rijks de Amesterdão e querer ir diretamente à Sinagoga Portuguesa, pode ser uma dor de cabeça, andarilhar por aqueles canais, apanhar um elétrico na boa direção e sair no sítio certo, e depois palmilhar ruas e ruelas até chegar à Sinagoga. O viandante procurara saber um pouco mais sobre Amesterdão, lendo um dos livros de Bill Bryson (“Nem Aqui, Nem Ali, a Europa, de Estocolmo a Istambul”, Quetzal Editores, 2008). Bryson é considerado o autor de livros de viagens mais lido em todo o mundo, o que o viandante leu sobre Amesterdão não deu grande esclarecimento. Escreve ele: “Em virtude de os Holandeses se terem vindo a congratular a si mesmos pela sua tolerância inteligente durante todos estes séculos, é-lhes agora impossível não se acomodarem generosamente aos graffiti, aos hippies desgastados, à caca de cão e ao lixo”. Depois de visitar o bairro da prostituição declara ter passado a manhã no Rijks e não esconde elogios rasgados aos 250 compartimentos repletos de quadros maravilhosos. E dali seguiu para a casa de Anne Frank. O viandante não seguiu esse itinerário, pediu ajuda a Laurens Van Krevel, e atravessou-se o centro de Amesterdão.



Bem gostaria o viandante de dizer que morre de amores por esta cidade, tal não acontece, o que não significa que não haja encontro auspicioso com esta ligação aos canais, as fachadas de edifícios com ar tão mercantil, o céu está um pouco plúmbeo, reflete-se na luminosidade, como é óbvio, e até no estado de alma, vai-se cheio de curiosidade conhecer esse templo que ancestrais portugueses, fugidos à perseguição da Inquisição, aqui construíram, a monumental Esnoga, a Sinagoga Portuguesa, a mais ampla de toda a Europa, escapou à fúria dos nazis.



A Esnoga está no coração do velho bairro judeu de Amesterdão, foi recentemente restaurada, ao seu lado funcionam alguns museus que acolhem uma importante coleção de objetos de ritual, o viandante a determinada altura viu escrito Livraria Montezinos, aquilo cheirou a Portugal ou a Espanha, informaram-no na receção que estava fechada. A Sinagoga foi construída em 1675 por judeus sefarditas fugidos de Portugal e Espanha, imigrantes e descendentes daqueles judeus fugitivos do final do século XV e princípio do século XVI. Foram os imigrantes, eles próprios chamaram à Sinagoga Portuguesa porque os Países Baixos ao tempo estavam em guerra com o império espanhol. Aqui os judeus encontraram a liberdade religiosa que fora promulgada pela União de Utrecht (1579), estamos então na Idade do Ouro dos Países Baixos, Amesterdão é uma mescla de asquenazes e sefarditas. A fachada, como se vê, é pouco impressionante, muito austera, parece um armazém reconvertido, o esplendor está sempre presente no interior.




A atual Sinagoga aproveitou o local da anterior (que datava de 1639), preparou-se para receber 1200 homens e 440 mulheres, foi consagrada em 2 de agosto de 1675. A que podemos visitar está exatamente como era, só com os acrescentos do progresso, caso da eletricidade. Mesmo que o viandante ande de brochura em punho, tem dificuldade em falar de artefactos e alfaias religiosas como Teba, Hechal, Ner tamid, vai regalando os olhos pelos belos móveis, pela profusão de luzes, pelo coro. Acaba por descobrir que em 1889 o livreiro David Montezinos ofereceu a sua preciosa biblioteca que está hoje incluída no registo da UNESCO, a ver se na próxima visita o viandante pode dar uma espiada pelos 20 mil volumes, centenas de manuscritos e dezenas de milhar de documentos avulsos. Há livros em todos os idiomas, incluindo o Yiddish e o Ladino.




A Esnoga tem muito para ver e um viandante português não perde ocasião para ver nas lápides os nomes dos portugueses prosélitos e generosos que puseram de pé este monumento incomparável. Porque há tesouros de objetos cerimoniais, tecidos de uma grande beleza. E há o bairro cultural judeu, que inclui o Museu Histórico Judeu, a Sinagoga em si com a sua biblioteca, o Monumento a Auschwitz, o Museu do Holocausto, o Monumento a Espinosa, são imensos os percursos propostos, o mais importante de tudo é que o viandante já registou os nomes Mendes Coutinho, vários Pereira, a família de Pinto, Jerónimo Nunes da Costa, está consolado, a idade não perdoa, está bem esmoído, vai regressar a Alphen, mas antes ainda quer percorrer a pé alguns troços por Amesterdão, amanhã é dia para Haia. À noite, a ler um livro sobre o Rijks de Amesterdão encontrou uma pintura de Emanuel de Witte, de 1680, com o interior da Sinagoga Portuguesa de Amesterdão. Despede-se o viandante com tal imagem, é orgulho de andarmos pelas sete partidas, se dói não haver a feitoria portuguesa na Flandres, ao menos temos a Esnoga em todo o seu esplendor a falar da alma lusa.




(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 26 de janeiro de 2019 > Guiné 61/74 - P19440: Os nossos seres, saberes e lazeres (305): Viagem à Holanda acima das águas (9) (Mário Beja Santos)

2 comentários:

Valdemar Silva disse...

Consta que o nazi Alfred Rosenberg, condenado à morte por enforcamento pelo tribunal de Nuremberga em Out1946, quando visitou a Sinagoga Portuguesa de Amesterdão ficou de tal maneira impressionado com o que viu, que moveu toda sua influência para que nada acontecesse a todo o edifício da Sinagoga, que assim pode chegar até aos nossos dias.
Parece que o mesmo Rosenberg tinha um fascínio pelos escritos/pensamentos de Espinosa, filosofo judeu de origem portuguesa.

Valdemar Queiroz

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Mário, obrigado por esta carinhosa referência à "Esnoga Portuguesa" que muitos dos nossos turistas ignoram pura e simplesmente quando visitam Amsterdão... Estive lá no início dos anos 90 e quero inda lá voltar, numa próxima visita... E guardo a grande emoção que foi, para mim, esta "descoberta" (, tal como a sinagoga de Praga)... Muitoss judeus sefarditas, de origem portuguesa, estavam tão convencidos que continuavam a ser cidadãos portugueses, que não escondiam os seus nomes e apelidos... Como alguém disse, bastiou os nazis, na II Guerra Mundial, irem às "páginas amarelas"... A comunidade praticamete desapareceu na voragem do holocausto, fica este testemunho portentoso de uma gesta de resistência heróica...

E pobres de nós: mais pobres ficámos com a perda do melhor da nossa elite técnico-científica e profissional... Que triste sina!... Veja-se até onde lebar o fanatismo, a intolerência, o ódio, o racismo!