sexta-feira, 15 de fevereiro de 2019

Guiné 61/74 - P19496: Notas de leitura (1150): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (73) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Maio de 2018:

Queridos amigos,
Duas razões para mim de muito peso seguem com este apontamento que submeto à vossa leitura. Não conheço nenhum texto de índole política, social e económica tão influente como estas notas elaboradas em 1957 pelo administrador Castro Fernandes, figura gradíssima do regime de Salazar. No fundo, é uma solene advertência de que tudo tem de mudar, estão a acontecer coisas na emancipação de África, mesmo ali à volta da Guiné, atenda-se à franqueza do diagnóstico e atue-se, antes que seja tarde.
A outra razão é de caráter muito pessoal, e pode abranger todos os camaradas da Guiné que porventura tenham conhecido Mato de Cão. Veja-se a imagem da estação no rio Geba, com ela convivi de agosto de 1968 a novembro de 1969, com uma frequência inusitada, uma regularidade quase diária. Montava-se a segurança num ponto alto, e em certas ocasiões subia a passagem, para que os barcos, civis ou militares, me identificassem, era ali que pedia boleia para Bambadinca, para mim e para os meus. Que impressão tão forte me provoca esta imagem!

Um abraço do
Mário


Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (73)

Beja Santos

Os apontamentos elaborados pelo Administrador António Júlio de Castro Fernandes, a propósito da sua visita à Guiné Portuguesa entre 9 de março e 8 de abril de 1957 são uma peça de indiscutível importância não só pelo leque dos assuntos versados, a crueza de opiniões e a formulação de conceitos coloniais, a análise económica e o punhado de sugestões que apresenta para revigoramento da Sociedade Comercial Ultramarina. Iniciou a apreciação dos recursos económicos dando prioridade, como era óbvio, à mancarra. Segue-se agora uma apreciação do coconote.

A palmeira de azeite produz óleo de palma, coconote e vinho de palma. E é minucioso ao dizer que “o óleo de palma é extraído da polpa que envolve a amêndoa, o coconote é a amêndoa, o vinho é extraído da ferida feita junto ao cacho”. Diz mais: “A palmeira abunda na zona do Litoral. Maciços mais extensos: Arquipélago dos Bijagós, Cacheu e S. Domingos. Cobre uma área aproximada de 90 mil hectares”. Fala sobre a tonelagem exportada de óleo de coconote e de óleo de palma. E fala concretamente do que viu: “Tive ocasião de em diversas tabancas e moranças assistir à preparação do óleo de palma. Entre Teixeira Pinto e Cacheu, vi uma das instalações administrativas para o descasque do coconote e esmagamento da polpa. O indígena utiliza o descascador mas recusa o esmagamento ou trituração da polpa”.

A única fábrica de óleo de palma que existe é a de Bubaque, diz adiante e lança números sobre a mesa, não descurando comentários próprios:
“O coconote ocupa o segundo lugar na exportação da Província. O descasque é feito, geralmente, pelo indígena – é mal feito e à custa de um esforço perfeitamente estúpido. Além da fábrica de Bubaque, existem algumas britadeiras (umas administrativas, por utilizar quase todas; outras particulares). O desinteresse por parte do indígena na utilização destas britadeiras tem sempre a mesma causa – paga-se por preço inferior ao razoável o coconote bruto adquirido ao indígena (os detentores das britadeiras querem lucros elevados para a rapidíssima amortização do capital investido nas maquinetas).”
A única produtora de óleo de coconote já estava fechada, mas entrara em negociações com o BNU. E tece um comentário final:  
“O comércio do coconote faz-se como o da mancarra. Os mesmos processos, a mesma técnica. O coconote compra-se através de todo o ano, o indígena tem as suas reservas para ocorrer às necessidades mais prementes. As pontas são de maio a Outubro. Neste negócio do coconote, a grande vantagem está ao lado dos que possuem descasques de arroz.”

Entrando na apreciação do alimento preferido pela população guineense, esclarece:  
“Reputa-se em 70% da superfície total os terrenos susceptíveis de serem aproveitados para o cultivo do arroz.
É impossível determinar com rigor a produção, sobretudo em virtude do contrabando para o Senegal, Guiné Francesa e Gâmbia. Calculando-a pelo rendimento por hectare, admite-se uma produção de 90 mil toneladas”.
E enumera a produção pelas diferentes regiões da Guiné. Havia fábricas de descasque, eram três: a Casa Gouveia, a Sociedade Comercial Ultramarina e Mário Lima. E informa que “Os donos do descasque são também comerciantes que, por intermédio das suas redes de lojas ou por contratos com os comerciantes – intermediários, adquirem a maioria da produção não exportável por contrabando. Todo o arroz descascado fica, assim, em seu poder, sendo vendido em Bissau, nas suas próprias lojas”. E dá conta de um outro pormenor, além do arroz descascado há o arroz de pilão, este não pode ser misturado com o arroz descascado mecanicamente.

Vê-se que Castro Fernandes está seriamente documentado e possui informação atualizada:
“Segundo o Governador, a cultura do arroz é uma cultura colectiva que não pode ser levada a efeito em pequenas propriedades individuais. O arranjo das terras, a construção dos diques, exige o trabalho de toda uma organização. É o trabalho das tribos que é exercido, principalmente pelos Balantas. Diversas causas têm desorganizado o trabalho tribal, tornando impossível, quando tal se dá, o cultivo do arroz. É o caso dos Papéis da Ilha de Bissau. Solicitado para toda a espécie de trabalhos, foi-se desorganizando, desarticulando a tribo e não são as mulheres e as crianças que podem proceder aos amanhos e cultivo dos terrenos. O problema consiste em recuperar terrenos, pondo-os em condições de se fazer a respectiva cultura e, ao mesmo tempo, em não desorganizar a tribo, só recrutando homens para o coconote e outros trabalhos, na fase da cultura que as mulheres podem fazer. É esta a orientação que o Governo da Província está a imprimir aos milhares e milhares de hectares que se estão recuperando. Ao Estado compete fomentar a cultura, criando os meios necessários para tal: recuperação de terrenos, organização e defesa do trabalho tribal, obras de rega e de defesa, auxílio ao indígena (tractores, plantas, etc.). O indígena – acrescentou o Governador – tem a compreensão exacta do problema. Os velhos queixam-se de que lhe vêm buscar os rapazes, desorganizando por completo a única forma de exploração possível do arroz.
O caso do Sr. Álvaro Boaventura Camacho funciona estupendamente porque, justamente ele é verdadeiramente o régulo, fazendo os indígenas nas suas propriedades um trabalho tribal.
As propriedades do Sr. Álvaro Camacho – em casa de quem estive hospedado – estão situadas na região de Tombali, circunscrição de Catió. É chão de Nalus, mas – graças à fixação operada através de 30 anos pelo Sr. Camacho – predominam os Balantas. A produção do arroz nesta circunscrição estima-se em 20 mil toneladas. Em Cufar (a 15 quilómetros de Catió) tem a residência e em Cantone os armazéns de arroz, fazendo-se daqui o respectivo embarque. Os indígenas cultivam o arroz nas propriedades do Sr. Camacho que lhes compra o produto, vendendo-lhes os que necessitam”.

O Administrador Castro Fernandes irá ainda debruçar-se sobre os produtos têxteis, a cana sacarina, o gergelim e purgueira, o rícino, o cajueiro, as plantas alimentares, a exploração florestal, a borracha, a pecuária, a cera e o mel, a pesca e as indústrias. Há observações relevantes: até agora, a cultura algodoeira tinha sido um fracasso, bem como a sumaúma; acreditava-se que a cana sacarina tinha viabilidade económica, o Governador não parecia particularmente entusiasmado, seria de atender ao gravíssimo problema do fabrico e consumo de aguardente (“O Balanta, que só trabalha 4 meses por ano, anda bêbado os outros 8 meses. As mulheres já dão aguardente às crianças”), o Governador dissera a Castro Fernandes estar a procurar por formas indiretas diminuir sucessivamente a produção de aguardente; o gergelim e a purgueira tinham largas possibilidades de expansão na Guiné; o cajueiro constituía pela proteção do solo um conectivo à desmedida agricultura de sesmeiro; a Guiné, reconhecia-se, tem condições francamente boas para uma eficiente exploração florestal, mas era indispensável um esforço de repovoamento ordenado com espécies úteis; as possibilidades da pesca eram ainda desconhecidas e dizia-se no relatório que a tentativa de J. da Silva Peralta era, por enquanto, extremamente tímida e limitada; quanto às indústrias, à parte das instalações da Sociedade Comercial Ultramarina e da Casa Gouveia e da instalação da Sofuil em Bubaque, pouco havia a assinalar. Em síntese, uma indústria extremamente rudimentar.

No capítulo dedicado às perspetivas, o conjunto de observações merece todo o destaque:
“Conseguirá a Guiné Portuguesa passar do estado de colónia-feitoria?
Existe uma certa evolução, ao menos nas ideias, no sentido de passar da simples exploração do existente para a criação de verdadeira riqueza.
Há hoje um interesse, todos os dias crescente, pela Guiné havendo sinais de que não só as grandes firmas (refiro-me à CUF) se preparam para investir capitais em explorações tecnicamente bem estudadas, como se anunciam certas tentativas interessantes. Receio, porém, que algumas delas fracassem (tenho sérias dúvidas, por exemplo, quanto à fábrica de borracha) e que tal fracasso desencoraje os outros.
Mas não nos fiquem dúvidas de que o que está, como está, se não poderá manter por muito mais tempo.

Os Serviços Agrícolas locais têm uma missão extraordinariamente importante, mesmo decisiva, a cumprir. Mas organizar-se como estão – servem menos do que para nada.
Além de não haver bom pessoal (tecnicamente), o quadro é mais do que exíguo e pessimamente dotado. Ainda por cima a terra é pouco desejada, os que vão para a Guiné têm um único objectivo – sair da Guiné, serem transferidos para outra Província (conquanto que não seja para Cabo Verde). De modo que não há, nem pode haver, continuidade. Um estudo, uma experiência iniciada hoje, é interrompido, fica pelo caminho, perdendo-se o que porventura se tinha obtido.
Os nossos vizinhos do Senegal conseguiram já, quer na mancarra, quer no arroz, resultados apreciáveis, tanto na selecção, como no aumento do rendimento, como na obtenção de variedades apropriadas às diferentes características de solos e climas.

Mas não basta organizar capazmente os Serviços Agrícolas – embora seja essencial e urgente fazê-lo – é necessária, para que se obtenham os resultados que importa obter, uma perfeita cooperação do produtor e do comerciante. Educação do indígena (que tem de começar por o não roubar), disciplina do comércio (que hoje facilita as fraudes e desleixe do indígena – comprando tudo quanto apresenta, por mais inferior que seja o produto). A justificada má fama da mancarra e do coconote guineenses no mercado mundial é apenas o resultado da nossa incapacidade em comerciar com decência – incapacidade que advém, ao fim e ao cabo, do regime de monopólio em que vivem as empresas compradoras da Metrópole. Como os lucros dão para tudo – para comprar pelo mesmo preço a mancarra e as impurezas que contém – os importadores da Metrópole não fazem questão. Como assim é, os pequenos comerciantes não discutem com o indígena, aceitam o que este lhe trouxer. Por outro lado, rouba-o quanto pode o que, por si, justifica as fraudes que o indígena – em legítima defesa – pratica. É uma cadeia, uma pouca-vergonha, é uma verdadeira praga, uma autêntica calamidade…

Que as coisas melhoram, sente-se. Que têm de melhorar é axiomático – a menos que queiramos estar, dentro em breve, a braços com as maiores dificuldades.
A Guiné já não é hoje inteiramente uma quinta da CUF. Para tanto, em muito contribuiu o crescimento da Sociedade Comercial Ultramarina, obra do nosso Banco a que é de inteira justiça ligar o nome do Sr. Visconde de Merceana. Oxalá o enfraquecimento, ou mesmo a queda, desta empresa não venha fazer-nos andar para trás. O BNU nada ganharia com isso – muito pelo contrário – e a Guiné também não.
A consciência dos problemas – que é por agora o resultado verdadeiramente positivo da evolução económica da Guiné – obrigará a CUF se quiser manter a sua posição, a investir dinheiro da Guiné e a pôr ao serviço do progresso da Província a sua técnica e os seus quadros. De contrário, terá – a curto prazo – desgosto e desgosto sério. O mesmo se põe para os outros grandes, cada um dentro da sua escala.

A Guiné, repete-se, continua ainda no estado de colónia-feitoria. Mas tudo indica que as coisas se vão modificar.
Não pode o Estado arcar sozinho com o peso de transformar a Guiné – mas para que se saia da pura ‘economia de resgate’ tem de, por processos indirectos, obrigar os que querem a carne a terem o seu contrapeso de osso.”

(Continua)

Imagem de uma Festa da Luta Felupe (Eran-ai), tirada em Sucujaque, em 8 e 9 de Abril de 2012, enquanto em Bissau decorria o golpe de Estado. 
Fotografia cedida por Lúcia Bayan, investigadora do povo Felupe, a quem agradecemos a gentileza.


Imagens tiradas de As comunicações e os aproveitamentos hidráulicos da Guiné, Angola e Moçambique, Agência-Geral do Ultramar, 1961.
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Nota do editor

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Último poste da série de 11 de fevereiro de 2019 > Guiné 61/74 - P19490: Notas de leitura (1149): O litígio entre Portugal e a ONU (1960-1974), por António Duarte Silva; Revista Análise Social, n.º 130, 1995 (Mário Beja Santos)

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