quarta-feira, 13 de fevereiro de 2019

Guiné 61/74 - P19494: Historiografia da presença portuguesa em África (150): Relatório do Delegado de Saúde da vila de Bissau, o médico de 2.ª classe Damasceno Isaac da Costa, referente a 1884 (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Junho de 2018:

Queridos amigos,
A historiografia sobre a Guiné vai estar em dívida com este médico, Damasceno Isaac da Costa. Não conheço para este tempo, estamos a falar de 1884, de um documento tão detalhado sobre a presença portuguesa, o que era a vila de Bissau, o estado decadente da fortaleza, o quase abandono do Ilhéu do Rei, a situação do presídio de Geba.
Iremos ver mais adiante que ele não esconderá absolutamente nada sobre a salubridade e higiene pública. No final do seu relatório ele lista um conjunto de plantas medicinais, outra curiosidade a que não nos podemos furtar.
Mas que belo documento para sabermos de viva voz o que era a rusticidade, para não dizer o quase apagamento, da nossa presença no exato momento em que a Guiné se autonomizara de Cabo Verde.

Um abraço do
Mário


Relatório do Delegado de Saúde da vila de Bissau, o médico de 2.ª classe Damasceno Isaac da Costa, referente a 1884 (2)

Beja Santos

Este relatório consta dos Reservados da Sociedade de Geografia de Lisboa e foi oferecido pelo seu filho Pedro Isaac da Costa ao antigo administrador de Bissau, António Pereira Cardoso, autor de um conjunto apreciável de documentos, muitos deles de leitura indispensável para conhecer a vida administrativa da Guiné, sobretudo entre as décadas de 1930 e 1950.

Este relatório, como se verifica pelo seu fecho, foi copiado pelo filho do autor. E diz-se que é de estranhar que tendo sido escrito em 1884 se refere a factos de 1888.

Trata-se de um documento irrecusável, nenhum trabalho historiográfico sobre este período em que a Guiné ganhou autonomia como Província tem cronista de igual estatura. É meticuloso e muito observador. Veja-se como descreve a vila e fortaleza de Bissau. Diz que a vila tem 460 metros de comprimento e 240 de largura. No passado, a vila constituía um reino administrado por um régulo que exercia a alta dignidade de balobeiro-mor, tinha superioridade sobre os restantes régulos e fruía das imunidades e sinecuras que pertenciam ao régulo de Bandim.

A vila está cercada de todos os lados por pântanos, cujas exalações deletérias influenciam ativamente a salubridade pública. Os miasmas vindos dos pântanos na sua propagação não encontram outros elementos que o muro de pedra e cal de quatro metros de altura que circunda a povoação.

Dentro da vila existem alguns poços e uma fonte denominada Pidjiquiti, mas as águas tanto desta como dos poços apresentam-se constantemente estagnadas, por culposo desleixo das autoridades locais. Existem as seguintes repartições do Estado: Administração do Concelho, Câmara Municipal, Alfândega, Delegação da Junta de Saúde e Hospital, Tribunal Judicial, Subdelegacia de Julgado, escolas de instrução primária. Todas estas repartições funcionam em casas particulares, tomadas de arrendamento por conta do Estado.

A fortaleza de Bissau fica a 150 metros da praça. É composta de um reduto quadrado construído de pedra e cal, tendo em cada ângulo um baluarte abrigado por um secular poilão. Os baluartes estão guarnecidos de peças na sua maioria oxidadas e encravadas por falta de reparações. A muralha tem 60 palmos de altura e 100 passos de comprimento em cada lado. Em torno da muralha existe um fosso que na quadra das chuvas recebe imundícies de toda a espécie; o fosso é um extenso foco de insalubridade.

Dentro da fortaleza existe uma caserna para os soldados, um quarto para oficiais, um dito para a arrecadação de géneros, três ditos para as cadeias, uma igreja e um paiol. A caserna e os dois quartos que ficam contíguos são baixos e não possuem capacidade nem ventilação nem luz necessária para a livre circulação destes dois fatores. Um dos quartos em que funciona a cadeia civil e militar está situado na entrada da fortaleza e tem as seguintes dimensões e condições higiénicas: 4 metros de comprimento sobre 2 de largura; o vigamento corrupto e húmido ameaça o seu desabamento; a ventilação e a luz são insuficientes. Os outros dois quartos que servem de cadeia militar estão em idênticas condições, um deles não possui sequer uma janela. A igreja tem sofrido ultrajes de toda a qualidade, experimentou ultimamente algumas reparações devido ao incansável zelo do atual pároco missionário, Luiz Baptista de Rosário e Souza. A casa em que funciona o paiol é bastante espaçosa mas não possui uma única janela, é excessivamente húmida e ameaça ruína. Esta casa é imprópria para o fim a que é destinada.

Extramuros, funciona um tribunal judicial presidido por um grumete analfabeto que tem o nome de Juiz do Povo.

A justiça perante este tribunal faz-se da seguinte forma: o réu é conduzido à rua grande (local do tribunal) e aí após um pequeno interrogatório e ouvidas as partes e o povo, é o mesmo condenado a uma multa nunca inferior a 50 mil réis, que ordinariamente é paga em bebidas alcoólicas ou mercadorias.

Concluída esta descrição, o médico dá-nos pormenores sobre o Ilhéu do Rei e o presídio de Geba. Começando pelo ilhéu, diz que defronte dos dois poilões seculares que existem no porto e que servem de fundeadouro aos navios de alto bordo que demandam o porto de Bissau, surge o Ilhéu do Rei ou dos Feiticeiros que tem uma milha de comprimento e meia de largura; e pela sua posição geográfica e condições higiénicas conviria muito que para ali fosse transferida a povoação de Bissau. O Ilhéu do Rei foi comprado aos Papéis por Honório Pereira Barreto, possuía outrora um pequeno fortim, um estaleiro para as embarcações de todas as lotações, uma povoação com 600 habitantes e várias casas comerciais. Agora, na decadência é uma povoação que está reduzida a 25 habitantes.

Bem curiosa é a descrição que faz do presídio de Geba. Começa por dizer que descoberto há mais de 400 anos pelos ousados navegadores portugueses, o presídio de Geba está situado a 60 léguas acima de Bissau. É ocupado por negociantes cristãos, Mandingas e Fulas-Forros e Pretos. Possui a povoação dois baluartes, um dos quais se acha em ruínas e cercado de espesso arvoredo e por isso e pela sua posição nenhum meio de defesa oferece; o outro, construído em 1875, não tem peça nenhuma. O governador Agostinho Coelho enviou em 1881 a Geba instrumentos e materiais e ordenou a construção dos sobreditos baluartes, mas até hoje não se deu começo à referida obra.

No ponto denominado Baixa-mar, jaz enterrada uma urna contendo uma ata assinada pelo Governador Agostinho Coelho e por vários funcionários e negociantes, lavrada por ocasião em que o vapor Guiné sulcando pela primeira vez as águas do tortuoso mas pitoresco rio Geba, aportaram a este último presídio.

Possui Geba a igreja de Nossa Senhora da Graça, construída em 1881 a expensas dos habitantes mas não possui paramentos nem alfaias religiosas.

É tradição oral que nas proximidades do presídio existem minas de ouro e que na época em que foi abolida a escravatura foram enterradas dentro da praça e no bairro denominado Santa Cruz, quarenta arrobas de ouro, que eram de um negociante português que andava perseguido pela justiça por se entregar ao tráfico da escravatura, internara-se nos sertões da Guiné para se pôr a coberto da espada da Justiça.

(Continua)

Alçado da ala lateral do Quartel Militar de Bolama
Fotografia de Francisco Nogueira, retirada do livro “Bijagós Património Arquitetónico”, Edições Tinta-da-China, 2016, com a devida vénia.



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Nota do editor

Último poste da série de 6 de fevereiro de 2019 > Guiné 61/74 - P19475: Historiografia da presença portuguesa em África (148): Relatório do Delegado de Saúde da vila de Bissau, o médico de 2.ª classe Damasceno Isaac da Costa, referente a 1884 (1) (Mário Beja Santos)

3 comentários:

Antº Rosinha disse...

1884? Mas se a conferencia de Berlim foi em 1880, ainda os «grandes» não tinham abocanhado os melhores nacos, com autorização de quem é que andavamos a explorar aquelas riquezas?

Somos mesmo descarados

Até que nos limitaram àqueles mapas um tanto confusos, como Angola e Moçambique nas extremidades do mapa cor de rosa, àqueles ilheus de Caboverde, São Tomé e Bijagós sem Casamance e São João Batista de Ajudá.

E não satisfeitos, esses «grandes» senhores da Europa, um dia criaram com outros a ONU, e acabaram com o nosso «rico império».

E acabamos como uns grandes racistas históricos, desde o Camões até ao Fernando Pessoa.

500 anos, dos nossos 800 de vida, que não conseguimos entender.

Anónimo disse...

Boa análise do Antonio Rosinha, mesmo não tendo lido a crónica, mas dá para perceber.
Ficamos sem o Império a favor de outros imperialistas, e agora até o Pessoa é posto em causa, chamando-lhe de racista, e até o coitado do Camões!

Porra!

Que mais querem deste «probe povo português?»

Um dia vão todos invadir este rectângulo, dizendo que se trata de um covil de racistas e atiram com nós pelo oceano dentro. A mim acho que não, penso não me restar mais do que as cinzas.

Boa, Rosinha, é disto que eu gosto, nada de paninhos quentes.

Virgilio Teixeira

Anónimo disse...

Uma pequena correcção: a Conferência de Berlim decorreu de 15 de Novembro de 1884 a 26 de Fevereiro de 1885, e só depois dela a França se dispôs a estabelecer com Portugal os limites da Guiné...Era bom as pessoas saberem o que se passou nessas conversações (sem paninhos quentes...)!
Cumprimentos
ATS