quarta-feira, 23 de fevereiro de 2022

Guiné 61/74 - P23020: Historiografia da presença portuguesa em África (305): "Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné", as partes I e II foram editadas em 1899, o seu autor foi Cristiano José de Senna Barcelos, Capitão-Tenente da Armada (9) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Abril de 2021:

Queridos amigos,
Vale a pena insistir quanto às razões por que se é minucioso (senão mesmo excessivo) no tratamento das questões do Casamansa e de Bolama. Foi Senna Barcelos o primeiro investigador a pôr por ordem toda a documentação que jazia nos arquivos referente às mesmas. Relevam, por muita documentação trocada, a manha de argumentos dos franceses e a pura hipocrisia britânica que pretextava que a ocupação de Bolama era para impedir ou punir o tráfico negreiro. É surpreendente a qualidade da epistolografia portuguesa, aqueles simples governadores de praças não dobram a servir e tratam o boi pelos nomes. Vai agora entrar em cena Honório Pereira Barreto que não esconderá a sua amargura, em Lisboa o que se passava na Senegâmbia Portuguesa era assunto mais do que subalterno, o país está entregue a uma luta política partidária desenfreada, Fontes Pereira de Melo ainda não está à frente da Regeneração. E não deixa de provocar pasmos como aqueles comandantes longe de tudo e sem poder algum ripostavam contra atos de pura pirataria.

Um abraço do
Mário



Um oficial da Armada que muito contribuiu para fazer a primeira História da Guiné (9)

Mário Beja Santos

São três volumes, sempre intitulados Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné, as partes I e II foram editadas em 1899, a parte III, de que ainda nos ocupamos, em 1905; o seu autor foi Cristiano José de Senna Barcelos, Capitão-Tenente da Armada, oficial distinto, condecorado com a Torre e Espada pelos seus feitos brilhantes no período de sufocação de sublevações em 1907-1908, no leste da Guiné. O levantamento exaustivo a que procede Senna Barcelos é de relevante importância e não há nenhum excesso em dizer que em muito contribuiu para abrir portas à historiografia guineense.

A saga de Ziguinchor é neste período do fim da década de 1850 a questão política crucial. Antes, porém, importa pôr em cima da mesa alguma informação dada por Senna Barcelos. Em maio de 1849, o Governador de Cacheu, José Xavier Crato de seu nome, descrevia assim o miserável estado da Praça: “Era defendida por uma estacada e quatro arruinadíssimos redutos; o quartel militar e arrecadações estavam cobertos com palha; a artilharia, de bronze, constava de duas peças de calibre 1 e duas peças de calibre 3 e não havia pólvora”. Os presídios de Farim e Ziguinchor eram também defendidos por uma estacada e por baterias de barro que se cobriam de palha, no tempo das chuvas, para não se desmoronarem. A igreja ou capela de Cacheu, construída de pedra e cal, estava coberta de palha. E mais um dado curioso que envolve Honório Pereira Barreto. Também em maio de 1849 ele insistia com o ministro da Marinha sobre a educação de rapazes em escolas de aprendizagem ou de ofícios, pedindo-lhe que fosse autorizado mandá-los para Lisboa, e naquela data enviou nove pretos para os ofícios de alfaiate, funileiro, carpinteiro, serralheiro, torneiro e sapateiro; solicitou para que essa instrução fosse mais cuidadosa nos ofícios do que na leitura, para não acontecer o mesmo que em 1826 ou 1827 com rapazes mandados de Bissau que sabendo só ler não se dedicaram a nenhum ofício.

Honório Barreto alerta sem parar as autoridades para a questão do Casamansa, deplora numa carta a autorização dada por Lisboa para a navegação do rio, Ziguinchor ficou isolada, sobrevivendo graças ao comércio do sal, autorizou-se os franceses a fundarem Selho, propõe medidas concretas: “Julgo que para salvarmos os nossos direitos é suficiente que o governo-geral da província comunique aos de Gâmbia e Senegal quais são os pontos neste distrito, havidos por tratados feitos com os gentios, onde só podem vir exclusivamente os portugueses. A demora que houve nesta participação talvez cause hoje alguma dúvida não em Jagubel e Assinhame, mas em outros pontos do Casamansa, onde me consta que estrangeiros têm ido, apesar dos tratados que fiz em 1841. Não são necessários destacamentos em tais pontos que só servem para aumentar a despesa e relaxar a disciplina; o que nada pode impedir, antes pode embaraçar. Em Bolor, onde há um destacamento, nada se há impedido; o destacamento de Matta não sei para que serve”.

Tudo vai de mal a pior no rio Casamansa, os franceses já querem cobrar impostos aos portugueses. Chega ao porto de Ziguinchor uma embarcação com o comandante de Selho que vem pedir explicações porque fora mandado retirar uma chalupa francesa que tinha ido a Jagubel comprar sal. O comandante de Ziguinchor respondeu que recebera ordens do governador de Cacheu, havia um tratado celebrado em 1844 por Honório Pereira Barreto. O francês não aceitou a explicação, os portugueses não tinham exclusividade do comércio, e que se a situação se voltasse a repetir viria a Ziguinchor com um navio de guerra e tomaria o presídio. O comandante de Ziguinchor protestou para o governador de Cacheu e este protestou contra tais ameaças para o governador do Senegal e comandante do Goré. A pressão francesa aumenta. O comandante de Selho, em nome do governador do Senegal e dependências, preveniu o comandante de Ziguinchor que ele seria forçado a retirar a bandeira e soldados do rio de Jagubel se impedisse o comércio de sal aos franceses. Seguiu-se outro ultimato: ia ser lançado um tributo em Selho às embarcações portuguesas que ali iam comerciar e ficava proibido negociar com as francesas em Jagubel. Os protestos da autoridade portuguesa prosseguem, os franceses fazem vista grossa dos tratados feitos pelos portugueses.

As acusações sobem de tom. O governador José Xavier Crato oficiou ao governador do Senegal nos seguintes termos:
“Pondo de parte tudo quanto V. Ex.ª se abaixou a dizer contra mim e contra o comandante de Ziguinchor, tratarei só de responder ao que diz respeito ao serviço, deixando a V. Ex.ª a glória de me ter insultado gratuitamente em correspondência oficial. Logo que recebi este ofício de V. Ex.ª, enviei um expresso ao comandante de Ziguinchor para me informar sobre a acusação grave que V. Ex.ª, fundado nas informações que lhe deu o capitão do navio Casamansa do mesmo comandante de Ziguinchor. Julgo que V. Ex.ª não duvidará da honra e lealdade daquele comandante, pois é bem conhecido pelos diferentes comerciantes franceses que habitam Goré e Senegal, e então conhecerá que o capitão do Casamansa faltou à verdade nas declarações que fez ao governo (…) O comandante de Ziguinchor é um homem sisudo, prudente e honrado, e jamais seria capaz de negar o que tivesse dito ou obrado; nem eu negaria dar uma satisfação se o facto fosse verdade. Rogo a V. Ex.ª que livre de toda a prevenção e sangue-frio e me ajude a conhecer a verdade. Permita-me V. Ex.ª que note uma contradição entre seus dois ofícios. No ofício de 20 de setembro diz V. Ex.ª que vai submeter ao chefe do seu governo este negócio; em seu ofício de 28 de setembro diz que o seu governo tem mais a fazer do que pensar nos fortins de Selho, Ziguinchor e Cacheu; e outro tanto não direi eu do meu governo que se presta de boa vontade, movido só por justiça, a dar uma satisfação ainda mesmo nos objetos mais insignificantes. Apesar do que V. Ex.ª diz, estou certo de que o governo francês, visto a sua lealdade e cavalheirismo, não se negará a dar aquela satisfação que a justiça exigir”.

E voltamos ao tormento da questão de Bolama. Em 8 de dezembro de 1850, fundeou no porto de Bissau o brigue de guerra inglês Ranger, sob o comando do Tenente Thomas Miller; este oficiou ao Governador da Praça, declarando ter instruções do governador da Serra Leoa para ir à ilha de Bolama fazer arrear a bandeira portuguesa e aprisionar o destacamento que ali se achava. Pela recusa do governador, declarou Miller que seria obrigado a hostilizar a praça, e que começaria por incendiar a povoação. O Ministro da Marinha reclamou do Ministro dos Negócios Estrangeiros as devidas previdências. E o comandante de Bissau escreve ao comandante Miller: “Vós podeis, Sr. Comandante, aprisionar os três soldados que estão em Bolama, porque eu não os retiro, e eles não têm forças para se defenderem; porém, quando os soldados portugueses forem feitos prisioneiros por um navio de guerra inglês, teremos os preliminares da guerra. Portanto Sua Ex.ª o Governador de Serra Leoa, que vou deu estas ordens, e vós, Sr. Comandante, executando-as, serão os responsáveis de tudo o que puder sobrevir pelas consequências”.

Segue-se nova troca de correspondência, mas o ato de pirataria foi consumado. Na troca de correspondência com o Ministro dos Negócios Estrangeiros, a hipocrisia britânica veio à tona, acusava-se a família de Caetano José Nozolini de maus-tratos dados a vários escravos em Bissau, o governo de Sua Majestade iria prosseguir em prol da emancipação de todos os escravos nos domínios da Coroa Portuguesa.

Vai iniciar-se um novo período de atividade de Honório Pereira Barreto, o Casamansa e Bolama continuarão a fervilhar na agenda política.

(continua)

Mapa histórico da Senegâmbia em 1707
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Nota do editor

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