quarta-feira, 16 de fevereiro de 2022

Guiné 61/74 - P23002: Historiografia da presença portuguesa em África (304): "Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné", as partes I e II foram editadas em 1899, o seu autor foi Cristiano José de Senna Barcelos, Capitão-Tenente da Armada (8) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Abril de 2021:

Queridos amigos,
Poderá parecer excessivo a alguns o espaço que reservamos à narrativa de Cristiano José de Senna Barcelos. Acontece, salvo melhor opinião, que não dispomos de uma outra narrativa com a mesma dimensão sobre este período tão turbulento em que as autoridades não ignoram o cerco dos franceses no Casamansa e a pressão britânica em Bolama e no Sul. É, pois, um período crucial em que a presença portuguesa corre um perigo de morte, ademais falta dinheiro para tudo e há um mercador que paga o funcionamento da presença portuguesa, como se pode ler neste documento. Senna Barcelos foi extremamente minucioso, para além das sublevações, atos de revolta, questões de mão baixa, dá-nos um quadro preciso, de acordo com o que existe nos arquivos, de como Lisboa ia sendo informada das pressões estrangeiras. E ninguém, como Senna Barcelos, consegue iluminar essa figura de dimensão gigantesca que foi Honório Pereira Barreto, o indiscutível fundador do território que hoje se chama Guiné-Bissau.

Um abraço do
Mário



Um oficial da Armada que muito contribuiu para fazer a primeira História da Guiné (8)

Mário Beja Santos

São três volumes, sempre intitulados "Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné", as partes I e II foram editadas em 1899, a parte III, de que ainda nos ocupamos, em 1905; o seu autor foi Cristiano José de Senna Barcelos, Capitão-Tenente da Armada, oficial distinto, condecorado com a Torre e Espada pelos seus feitos brilhantes no período de sufocação de sublevações em 1907-1908, no leste da Guiné. O levantamento exaustivo a que procede Senna Barcelos é de relevante importância e não há nenhum excesso em dizer que em muito contribuiu para abrir portas à historiografia guineense.

O leitor que se prepare agora para a narrativa quase obsidiante de dois acontecimentos que irão marcar o território da Guiné-Bissau: a infiltração francesa no Casamansa e as pretensões britânicas nos Bijagós e no sul da Guiné. Em quadro resumido das questões desta década de 1843 a 1853, podemos dizer que os ingleses teimam em apossar-se de Bolama e do Rio Grande de Bolola. Num quadro de grande decadência, em que os mercadores portugueses não podem concorrer com os mercadores estrangeiros e se caminha para o fim da escravidão, Caetano Nozolini mantem o contrato de comércio da Guiné e Cabo Verde, obrigando-se a fornecer à Comissão de Fazenda na Guiné todo o numerário preciso para o pagamento das tropas e empregados da Guiné e Cabo Verde. A década começa com uma rebelião de soldados em Bissau, de 3 a 5 de julho de 1843. Os soldados haviam pedido ao seu comandante para que o pagamento lhes fosse feito em géneros e não em cédulas, porque o fornecedor os explorava com o elevado preço das fazendas. Os soldados rejeitaram receber pólvora e tabaco, queriam dinheiro; com a soldadesca exaltada conseguiu o governador que o negociante Nicolau Monteiro de Macedo abonasse a importância em causa; só no dia 5, depois de muito ameaçados os oficiais e o governador da praça, receberam os revoltosos o pagamento; seguiu-se então a embriaguez em que se transformou a casa da guarda em adega. Em dezembro desse ano foram os postos de Ganjarra e de Fá, no rio Geba, cedidos a Portugal pelo régulo Mamadu Sanhá, senhor do território de Badora. O descontentamento na praça de Bissau era permanente e por isso se tomara a decisão de pagar o pré às praças em dinheiro vivo. Tinha-se apurado que os soldados morriam de fome e andavam nus devido ao famigerado pagamento feito em cédulas que sofriam desconto, mais de 50% nas lojas, no tabaco e na aguardente. Recorde-se que os rendimentos da Guiné estavam arrendados a um contratador que recebia sete contos de reis em metal e pagava 16 em géneros e cédulas à Fazenda, como é evidente eram roubados os servidores do Estado. A guarnição da praça de Bissau vivia numa degradação enorme. Na mudança de efetivos na guarnição apurou-se que quem tinha partido deixara no interior da praça mais de 40 choupanas de barro, cobertas de palha; cada soldado tinha duas a três mulheres e nalgumas dessas choupanas vendiam-se bebidas alcoólicas. O chefe do Estado-maior mandou pôr fora da praça todas as mulheres antes do desembarque da nova guarnição e ordenou a demolição das barracas.

A situação da fortaleza de Cacheu era também deplorável. O quartel da guarnição estava inabitável e para que os soldados se não vissem obrigados a fazer barracas para suas habitações foi ordenado o indispensável conserto de uma parte do quartel. As muralhas estavam com falta de cal e o fosso completamente entolhado, o que permitia aos gentios, em ocasião de guerra, subirem as muralhas e entrarem de noite na praça para matarem as sentinelas. Bem propôs este Chefe de Estado-Maior a demolição de choupanas para melhorar a segurança do efetivo militar, nada se conseguiu.

Na ilha de Bolama continuava a existir um pequeno destacamento, porém os navios de guerra ingleses não permitiam que se içasse a bandeira portuguesa. Por insensibilidade do Patrão-Mor da Praça de Bissau, em setembro de 1844 voltaram as guerras. É que o Patrão-Mor negou um copo de aguardente ao régulo e o governador mandou-o prender. Seguem-se ataques em cadência, morticínios, pedidos de auxílio a Goré e à Gâmbia, veio mesmo uma embarcação norte-americana em auxílio dos sitiados de Bissau. Foi uma situação de guerra que durou três meses e meio, por fim celebrou-se a paz com os régulos de Intim, Bandim e Antula, foi mediador o régulo do rio Grande. Prometeram os régulos revoltosos submeterem-se a todas as condições. A descrição é muito curiosa, vale a pena transcrevê-la. A cerimónia de paz realizou-se segundo o uso do país, debaixo dos poilões na frente do portão da casa do governo, depois de reunidas ali as autoridades e habitantes de Bissau, acompanhados pelo pároco com as suas insígnias, assistiram também comissões de Beafadas e Balantas; e da parte dos gentios o fidalgo enviado pelo rei do Rio Grande, e por parte de cada um dos régulos três fidalgos com a sacerdotisa da sua seita (balobeira) com as suas insígnias. Consiste esta cerimónia em beber aguardente que é abençoada com água-benta pelo pároco em uma grande bacia de arame, onde se acham balas de artilharia, de espingarda, planquetas dos gentios e pólvora como sinal de amizade. Escusado é dizer que foi paz de pouca dura, em breve recomeçaram os desacatos.

E de Bolama passamos para Casamansa. Era intenção dos franceses expulsarem os portugueses de Casamansa, procuraram indispor os Balantas que, com as suas embarcações, andavam nesse rio exercendo pirataria e roubavam fazendas às embarcações de Ziguinchor e as iam vender a Selho. É neste contexto que nos anos de 1844 e 1845 Honório Pereira Barreto andou a comprar terrenos no Casamansa e os ofereceu à Coroa. Este governador da Guiné irá ter um papel capital na formação da futura colónia devido a uma hábil política de aquisições.

Continuando este resumo, há que realçar o estado decadente da Guiné devido em parte à tutela particular dos arrematantes de alfândega, eram sucessivas as sublevações e os atos de indisciplina também em Cacheu e Farim, Honório Pereira Barreto bem tentava pôr cobro às rebeliões, chegou mesmo a dirigir uma ação punitiva contra os sublevados de Farim, isto em dezembro de 1846. Meses antes, foi agraciado com o grau de Cavaleiro da Torre e Espada.

Estamos em 1847, os gentios Beafadas fecharam o rio Geba e declararam guerra, saqueando as feitorias, isto em setembro. O Tenente Coronel Caetano Nozolini escreveu ao Governador-Geral:
“Há 30 anos que resido em Bissau e tenho visto por sete vezes, em diversas épocas, fechar-se o rio Geba por estes negros; antigamente se lhes comprava a paz e a liberdade com dádivas no valor de três mil reis e às vezes mais”.

Nesse mesmo ano, procurou Caetano Nozolini chamar à paz os Papéis de Intim e Bandim, mas o assassinato da balobeira que conduzia a embaixada para se realizar essa paz fez levantar o gentio contra a praça, o que obrigou Nozolini a solicitar urgentes socorros de tropa de Cabo Verde. Nesse mesmo ano, em novembro, a guarnição do brigue inglês Dart atacou em Bolama a propriedade de Aurélia Correia, levando à força sete domésticos para a Serra Leoa. E extrai-se de um documento oficial uma curiosa informação:
“Era costume de data antiga dar-se aos reis de Matta e Pecau, em Cacheu, em cada triénio, um luxuoso vestiário, que o Governador-Geral requisitava ao ministério. Em 7 de março de 1848 requisitou o Governador de Cacheu, em duplicado, o fardamento seguinte: dois chapéus armados agaloados, com penachos encarnados; dois capotes de pano encarnado, com mangas e agaloados; dois coletes de damasco encarnado, agaloados; dois pares de calções encarnados, agaloados; dois pares de meias brancas compridas; dois pares de sapatos com fivelas; duas bengalas de tambor-mor; duas camisas brancas; dois lenços de seda encarnada para o pescoço; duas cadeiras de assento”.
Caetano Nozolini, a expensas suas, levou a bom termo no sítio chamado Duas Palmeiras, pertencente ao rei de Goles, uma fortificação destinada a fechar a comunicação com o presídio de Geba e aquele ponto foi batizado com o nome de S. Belchior. O folhetim de Ziguinchor e Bolama parece interminável, e aqui se interrompe dizendo que em vária correspondência de 1848 mostrou Honório Pereira Barreto o estado decadente de Ziguinchor. Achou o seu estado o mais triste e vergonhoso, “apesar dos seus habitantes, dignos de melhor sorte, serem os únicos da Guiné que defendiam com coragem e bom vontade o presídio e que, além disso, iam prestar a Cacheu qualquer socorro, em caso de guerra. Como não havia igreja nem padre em Ziguinchor, Barreto “levado pelo amor do bem público, convidou os habitantes daquele presídio a construírem uma pequena igreja; acederam ao convite e prontificaram-se a fornecer cal, pedra e tijolos necessários, gratuitamente. Ao governo cumpria o resto, pagar aos obreiros e cobrir as obras de telha. Ofereceu-se Honório Pereira Barreto para dirigir a construção e adiantar as somas precisas”.

(continua)


Mapa histórico da Senegâmbia em 1707
Imagem retirado do blogue ePortuguêse, com a devida vénia
Destroço da estátua de Honório Pereira Barreto no interior da fortaleza de Cacheu
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Nota do editor

Último poste da série de 9 DE FEVEREIRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P22982: Historiografia da presença portuguesa em África (303): "Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné", as partes I e II foram editadas em 1899, o seu autor foi Cristiano José de Senna Barcelos, Capitão-Tenente da Armada (7) (Mário Beja Santos)

1 comentário:

António J. P. Costa disse...

Olá Camaradas


Não entendo de que é que a Guiné está à espera para aceitar o trabalho de Honório Pereira Barreto em prol do seu país. No mínimo era bom que o aceitasse como filho da terra que foi.
Mas eu, nada tenho a ver com este assunto e, por isso só posso constatar...

Um Ab.
António J. P. Costa