Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
segunda-feira, 14 de fevereiro de 2022
Guiné 61/74 - P22997: Notas de leitura (1418B): A teoria e a prática de Amílcar Cabral por Ronald H. Chilcote (2) (Mário Beja Santos)
1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 1 de Março 2019:
Queridos amigos,
Se me perguntarem quais os livros mais importantes para estudar o pensamento e a obra de Cabral, não hesitarei em pôr este trabalho de Chilcote no escasso punhado de obras obrigatórias. Todos os conceitos que este académico expõe estão baseados numa amplíssima investigação, procedeu com a sua equipa a um levantamento minucioso de todos os artigos, intervenções e comunicações de Cabral, igualmente o que publicou na imprensa de Cabo Verde, de Portugal e um pouco por toda a parte e traça-nos uma bibliografia sobre os principais documentos referentes à luta armada, muitos deles de consulta obrigatória para quem quer conhecer a luta armada na Guiné. E mesmo o escol das entrevistas que fez em Cabo Verde e Guiné-Bissau não é raridade histórica para guardar num museu, podem-se tirar elações e uma delas salta imediatamente à vista, o que distinguia a classe intelectual cabo-verdiana dos principais combatentes guineenses. Leitura imperdível, pois, para os mais estudiosos deste período.
Um abraço do
Mário
A teoria e a prática de Amílcar Cabral por Ronald H. Chilcote (2)
Beja Santos
“Amílcar Cabral’s, Revolutionary Theory and Practice, A Critical Guide”, por Ronald H. Chilcote, Lynne Rienner Publishers, 1991, é, indiscutivelmente, um dos estudos mais detalhados e bem organizados sobre o pensamento de Amílcar Cabral feito por um investigador estrangeiro. É um documento de referência, Ronald Chilcote é um académico norte-americano detentor de uma apreciável obra de investigação, desde cedo que se interessou pelo império colonial português, já aqui se fez referência a uma outra obra também de consulta obrigatória, a documentação que ele e a sua equipa organizaram sobre as posições assumidas perante a descolonização portuguesa, é um histórico muito bem elaborado para qualquer consultor à escala internacional.
Recapitulemos em síntese o que o académico releva como essencial do pensamento e da ação daquele que foi considerado um dos principais teóricos revolucionários africanos: dá-nos o itinerário curricular, a sua experiência em Lisboa onde já germina o nacionalismo africano, a construção da teoria do nacionalismo revolucionário, a originalidade do conceito de vanguarda da revolução; a construção do modelo de denúncia do colonialismo português nos areópagos internacionais e o papel desse colonialismo português como meramente subsidiário do imperialismo internacional; a conceção de nacionalismo com base na luta de libertação nacional, onde instituiu uma unidade de dois povos, sem minimizar a importância primordial das culturas étnicas, Cabral estimava que estava a emergir uma nova cultura e uma nova economia decorrente da originalidade da luta armada; percorre-se o seu pensamento quanto à transição da luta armada para a construção do Estado, como ele supunha edificar um modelo de desenvolvimento com o máximo de democracia sob a liderança do PAIGC. Resta dizer que este vasto modelo tem sido objeto de críticas, mormente depois da independência e como em breve veremos aquando da análise da obra “Descolonizações, Reler Cabral, Césaire e Du Bois no século XXI”, com organização de Manuela Ribeiro Sanches, os conceitos de unidade e desenvolvimento, por exemplo, são altamente contestados por estudiosos com provas dadas.
Ronald Chilcote percorrera Cabo Verde e a Guiné entre agosto e setembro de 1975, entrevistou um bom punhado de dirigentes do PAIGC em ambos os países, um apêndice que ele intitula “Perspetivas da vanguarda revolucionária”, entrevista Luís Cabral, Fernando Fortes, dois dirigentes da primeira hora, Felinto Vaz Martins, Paulo Correia, Domingos Brito dos Santos, Manuel Boal, Juvencio Gomes, Carmen Pereira, Augusto Pereira da Graça, José Araújo, Chico Bá, Otto Schacht, entre outros. Para o estudioso, a consulta destes respondentes não é uma mera raridade histórica. Encontram-se contradições, como a questão do envolvimento do PAIGC nos acontecimentos do Pidjiquiti, em 3 de agosto de 1959, há quem diga abertamente que o PAIGC não teve qualquer envolvimento com o protesto dos trabalhadores Manjacos. Recorde-se que estas entrevistas decorrem naquele estado de graça do sonho de um socialismo africano em que a ajuda internacional parecia fadada a pagar todos os devaneios das nacionalizações e de uma industrialização sem pés nem cabeça, muitos dos respondentes dão respostas uníssonas quanto à organização do Estado, à política externa. Ponto curioso, nenhum deles põe acento tónico na necessidade de uma reconciliação nacional após tão longo período de luta armada, com cavadas divisões da população, incluindo as etnias que procuraram a neutralidade, como os Felupes e os Bijagós. Há respostas de grande qualidade, caso de Juvencio Gomes, que foi o responsável pela presença do PAIGC em Bissau no período de transição, quando se deu a retirada portuguesa. Os líderes ligados à educação mostram um compreensível entusiasmo, e apercebemo-nos de alguns homens da envergadura intelectual, caso de José de Araújo que depois dos acontecimentos do 14 de novembro de 1980 se retirou para Cabo Verde. Vale a pena pôr em comparação as respostas dos guineenses e dos cabo-verdianos, sente-se a identidade cultural, sente-se que o verdadeiro fio de ligação são os sonhos de Cabral para a construção de um Estado com dois países.
De primeiríssima importância é o estudo conduzido pela equipa de Ronald Chilcote quanto ao levantamento de todos os escritos de Cabral (livros, discursos, documentação panfletária, textos de ocasião, intervenções em conferências,…), é um levantamento datado de 1942 até à sua morte, bem como edições posteriores até 1988. Também em anexo se juntam por ordem cronológica os artigos de Cabral na imprensa de Cabo Verde, de Portugal e um pouco pelo mundo inteiro. Em secção à parte, a relação dos trabalhos sobre a Guiné e Cabo Verde tendo a luta pela libertação nacional como eixo principal, um impressionante alfobre documental que nenhum estudioso pode ignorar.
Como é evidente, os estudos sobre o pensamento e ação de Cabral conheceram uma significativa evolução depois de 1991. Mas só por pura incúria é que não se deixa referência maior a todo este trabalho de Ronald Chilcote. Está aqui a matriz de um pensamento que foi evoluindo de um adolescente a um cientista que gizou uma teoria sobre o colonialismo e o imperialismo. Não se ilude uma certa confusão entre expetativa e realidade, aquela ideia de federações e de unidades entre países que Cabral viu nascer e que de um modo geral foram um malogro. Cabral distinguia entre o colonialismo e o neocolonialismo, a dominação direta e a dominação indireta, pretendia que o PAIGC estivesse municiado contra o neocolonialismo. Igualmente o seu pensamento traduzia-se numa ideia de nacionalismo diferente daquela que era experienciada pela cultura europeia. O seu conceito de nacionalismo revolucionário articulava perfeitamente cultura e economia, ele imaginou que a luta armada e o processo da independência, em si próprios, esbateriam os sentimentos étnicos, afinal tão profundos. O seu olhar sobre as classes e o desenvolvimento das forças produtivas é indiscutivelmente original e contenda com a cartilha soviética e até chinesa do tempo, nunca quis iludir a inexistência de um proletariado industrial, alçapremou a pequena burguesia à condição de decisor revolucionário, sem contestação a sua análise desobedecia aos cânones marxistas convencionais. Se igualmente se pensar que este teórico revolucionário criou um partido, uma escola-piloto, uma estratégia militar, alcançou gradualmente apoios internacionais para formar os seus quadros e receber armamento cada vez mais sofisticado, se notabilizou pela habilidade diplomática e liderou os termos de uma coesão entre os independentistas das colónias portuguesas, fica-se com o quadro completo de um construtor, um homem de ação, um visionário como houve poucos em África.
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Nota do editor
Último poste da série de 11 DE FEVEREIRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P22989: Notas de leitura (1417): A teoria e a prática de Amílcar Cabral por Ronald H. Chilcote (1) (Mário Beja Santos)
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3 comentários:
"...se notabilizou pela habilidade diplomática e liderou os termos de uma coesão entre os independentistas das colónias portuguesas,..."
Com tantos elogios como este ao independentista Cabral, os outros independentistas angolanos, moçambicanos e principalmente guineenses, ficam manifestamente com um "sorriso amarelo"no mínimo.
As recensões do Mário Beja Santos podem e devem ser úteis.E são, quase sempre.Também tenho aprendido com o MBS, e agradeço.
Neste caso, limitei-me, no post anterior,a expressar a minha opinião divergente quando à essência do pensamento de Amílcar Cabral, um homem marcado pelas ideologias prevalecentes na época,um revolucionário utópico, barca em que aos e vinte e poucos anos, logo após a Guiné, também cheguei a embarcar.
Abraço,
António Graça de Abreu
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