sexta-feira, 18 de fevereiro de 2022

Guiné 61/74 - P23006: Adeus, Fajonquito (Cherno Baldé) - IV (e Última) Parte: Cuntima, 16 e 17 de novembro de 1976: terror e violência de Estado, a execução sumária e pública de antigos milícias, "cães dos colonialistas", por ordem do famigerado comandante das FARP Quemo Mané


Guiné > Região do Oio > Setor de Farim > Cuntima > CART 3331 (1970/72) > Aspeto geral da povoação. Na sua maioria a população era de etnia Fula, de religião muçulmana; havia uma pequena minoria Mandinga.


Guiné > Região do Oio > Setor de Farim > Cuntima > CART 3331 (1970/72) > "Cuntima: reservatórios de água, as duas professoras ao fundo e a casa do agente da PIDE/DGS", Fotos do álbum do ex-1º cabo Vitor Silva, membro da Tabanca Grande desde 2007 (*)


Fotos (e legendas): © Vitor Silva (2008). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementa: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Guiné-Bissau > Região do Óio > Sector de Farim> Cuntima > 2016 > Restos do antigo quartel das NT


Foto (e legenda): © Patrício Ribeiro (2016). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Ao tempo da guerra colonial, Cuntima, junto à fronteira com o Senegal,  era um ponto importante para a segurança da província, Tinha um pelotão de artilhar,com três obuses 14, além de uma unidade de quadrícula, e agência da PIDE/DGS.  Há mais de sessenta referência no blogue sobre Cuntima.

Quem esteve em Cuntima foi o então capitão de infantaria Vasco Lourenço, hoje cor inf ref (CCAÇ 2549, Cuntima e Farim, julho de 1969/junho de 1971).

Refira-se ainda, e por fim, que Cuntima, dois anos depois da independência da Guiné-Bissau, em novembro de 1976, foi palco de cenas de terror e violência de Estado, a execução sumária e pública de antigos milícias que tinham estado ao serviço do Exército Português,  por ordem do famigerado comandante Quemo Mané, cenas essas aqui já reconstituídas num poste memorável e corajoso do nosso amigo Cherno Baldé (***)

Esse  poste merece ser lido e relido ainda hoje: na altura, em 2013, o poste  teve cerca de meia centena de comentários e causou emoção nos leitores do nosso blogue,  até pela coragem, física e moral, do Cherno Baldé. que nos deu o OK para a pubicação  do seu texto, tranquilizando-nos: "Eu já vivi o suficiente para não continuar fechado no medo de possíveis represálias". 

Em todo o caso, o Quemo Mané já tinha morrido, muitos anos  antes ( em 1985, em Moscovo, segundo informação do nosso amigo e camarada Carlos Silva, tendo os seus restos mortais sido trasladados para a Guiné-Bissau, e tendo sido sepultado na sua aldeia natal, nma tabanca para os lados de S João, sector de Tite, região de Quínara). Acrescente-se que há poucas referências na Net sobre este homem sinistro: o liceu regional de Mansoa tem o seu nome... Tem várias referências no Arquivo Amílcar Cabral, alojado no portal Casa Comum da Fundação Mário Soares.

Voltamos  a reproduzir este poste, parcialmente, na série "Adeus, Fajonquito" (****). Mas o relato dos acontecimentos vai integral: o Cherno Baldé não presenciou estes factos, mas reconstituiu o relato, oral,  de uma das testemunhas, o Demburri Seidi (nome fictício) (3).

Em 1975, o "Chico" já estava em Bafatá, a frequentar o ciclo preparatório e o liceu. Nâo guarda boas recordações desse tempo... Em setembro de 1979, rumaria depois para Bissau onde prosseguiu os seus estudos. "Do grupo de mais de cinquenta estudantes que com ele tinham vindo de Fajonquito e Contuboel, já não restavam, na corrida, mais do que cinco"..

Depois, em 1986, já com 26 ou 27 anos, consegue a tão almejada bolsa de estudo para poder frequentar a universidade no estrangeiro. Por azar, calhou-lhe a URSS. Foi parar à Moldávia e depois à Ucrânia, Licenciou-se em economia pela Universidade de Kiev. Regressou da URSS, em 1990, já depois da queda do muro de Berlim... Faria ainda  uma pós-graduação no ISCTE, Lisboa, em 1992/94, já casado com Geralda Santos Rocha, natural de Bissau, de origem nalu (e, tanto quanto sabemos, cristã). O casal, ecuménico, tem 4 filhos, um deles já formado em Engenharia de Energias (pela UNILAB- Universidade Internacional Lusofona Afro-Brasileira, estado de Ceará, Brasil).

Mas voltemos a novembro de 1976... e a Cuntima, na fronteira com o Senegal, a noroeste de Fajonquito (distância: cerca de 60 km), ambas as povoações fazendo parte da carta de Colina do Norte (1956), escala 1/50 mil.

Este relato do Cherno Baldé pode bem ser o último adeus a Fajonquito (****), à sua terra natal ... Vamos omitir aqui o seu extenso preâmbulo e a troca de correspondência com o autor com o editor (***) e dizer apenas, sobre o contexto, que a Guiné-Bissau tinha acabado de celebrar o 2º ano da sua independência (1):


(...) "Em Cuntima, pequeno aglomerado fronteiriço que tinha sobrevivido à guerra de fronteiras de 1973, nada fazia prever que nos dias seguintes seria o palco de acontecimentos que iriam marcar o período pós-colonial e perturbar a pacata vida da aldeia e suas gentes. A região vivia a despedida da época das chuvas e nas áreas alagadas de cultura de arroz, as premissas de uma boa colheita que se avizinhava já se faziam sentir pelo cheiro aromático do arroz novo e pela cor amarelada dos campos a perder de vista nas extensas planícies de terras baixas, rodeadas de verdes cinturas de palmeiras dendém. Com o fim da guerra as aldeias tinham sido repovoadas, todas as bolanhas tinham sido recuperadas e parecia não haver limites para criar a prosperidade tão almejada e recuperar o tempo perdido. Mas, nem todos pensavam assim, helás!" (...)

Adeus, Fajonquito  (Cherno Baldé) - IV (e Última) Parte 


(ix) Cuntima: dia 14 de Novembro de 1976, o ataque ao quartel,
ódio, coragem e perfídia


Na noite do dia 14 de Novembro de 1976, um grupo constituido maioritariamente por ex-milicias, cegos de raiva e de ódio, mas muito mal equipados, cujo material bélico se resumia em catanas de uso doméstico, facas de mato e algumas granadas, apostando no efeito surpresa, decide atacar e neutralizar o destacamento militar do PAIGC colocado em Cuntima.

Ao entrarem na aldeia, uma parte dirige-se para a casa de Sissão Seidi, uma decisão que será fatal a este pacífico aldeão que era colega de alguns dos elementos do grupo. Põem-no ao corrente das suas intenções, isto é,  atacar e neutralizar os homens do PAIGC e, de seguida, com as armas que iriam recuperar, liquidar todos os que, na aldeia e seus arredores, colaboravam com o partido.

Quando o grupo deixa a casa para dirigir-se ao seu alvo, o Sissão vai a casa do Comité da tabanca e, em segredo, conta-lhe tudo o que tinha ouvido dos assaltantes. O Comité apercebe-se de toda a gravidade da situação e sabe que não pode perder tempo, rapidamente, decide passar para o outro lado da fronteira, situada mesmo ao lado, levando consigo a sua família, mas antes de partir informa o incrédulo Sissão de que só voltaria em caso de derrota dos assaltantes.

O grupo aproximou-se em silêncio, encoberto pela escuridão da noite, consegue eliminar a sentinela e penetrar no interior do quartel, apanhando de surpresa os seus ocupantes. Os guerrilheiros do PAIGC reagem bem à investida, refeitos da surpresa inicial e melhor armados, obrigam os assaltantes a bater em retirada de uma forma dispersa e desorganizada. De acordo com a testemunha, o ataque teria durado cerca de 3 horas o que, manifestamente, parece exagerado, tendo em conta a disparidade das forças em presença.

O dia começa a amanhecer e os primeiros raios de sol começam a pintar de amarelo o horizonte claro do fim da época chuvosa. E, nas horas que se seguiram à retirada, alguns elementos do grupo assaltante entram, de novo, na morança de um antigo colega, também ex-militar, impelidos talvez pelo desejo de implicar o maior número de pessoas e convencem-no, desavergonhadamente, que já tinham feito o essencial do serviço, mas que, sem munições suficientes, não conseguiram limpar todos, pelo que, se ele tivesse uma catana bem afiada e um pouco de coragem,  podia ir dar o golpe de misericórdia aos feridos que estavam amontoados no quartel. Sem pensar duas vezes e empurrado pelo ódio que nutria pelos novos senhores, o homem não hesitou e com uma catana nas mãos correu para o local indicado, sem saber que se tratava de uma armadilha para o perder.

Quando chega ao quartel, encontra os guerrilheiros a porta da entrada, armados até aos dentes. O que fazer? Recuar? Tarde demais, ele precisa pensar rapidamente numa saida. Com as akas [, Kalashnikov,] apontadas, perguntam-lhe o que procurava ali aquela hora. O homem responde que vinha a procura de ajuda para socorrer um filho que tinha sido mordido por um cão vadio. Parece uma saída razoável, mas não será. Os guerrilheiros estão apressados, pedem a sua identificação e informam-lhe que no momento não tinham tempo para o ajudar, mas que voltasse mais tarde, juntamente com o seu filho.


(x) No rescaldo do ataque das milícias:
 medo e horror em Cuntima


Na manhã do dia 15 de Novembro, os guerrilheiros mandam convocar o Comité da Tabanca para o por ao corrente do que sucedera durante a madrugada. O enviado encontra a morança vazia de gente. Mas, na tarde do mesmo dia, informado sobre o falhanço do ataque e a debandada das milícias, conforme prometera, o Comité regressa com a sua família a Cuntima. 

O Comandante do destacamento dá-lhe ordem de prisão imediata, por comportamento suspeito. Inquirido sobre as razões que tinham motivado a sua fuga precipitada na noite anterior, confessa que tinha sido informado pelo seu vizinho, Sissão Seidi, mas que, lamentavelmente, não pudera prevenir as autoridades porque os assaltantes eram numerosos e bem armados. Disse ainda que fora obrigado a fugir devido a ameaça de morte que pendia sobre a sua cabeça e que regressara após a confirmação de que o perigo tinha sido afastado. 

Ordenaram-lhe para os conduzir a casa do tal Sissão Seidi, onde os dois seriam presos e amarrados à moda do PAIGC, isto é,  mãos para trás e o peito bombeado à frente, estilo peito de pomba.

Na manhã do dia 16 de Novembro chegou a Cuntima o responsável militar da zona norte, o famigerado Comandante Quemo Mané (2), que assume a direcção das operações e manda convocar toda a população de Cuntima e seus arredores. Querem o máximo de gente e para se certificar que todos estavam presentes, guerrilheiros armados passam revista em todas as casas e sitios passíveis de albergar um ser vivo, querem todos, mulheres, velhos e crianças.

Os dois prisioneiros são colocados no meio da assembleia reunida. O Homem de cabelos grisalhos, toda a gente o conhecia, era o Comité da tabanca, espécie de cipaio reformulado na nova nomenclatura, colaborador activo da ordem instituida, mesmo sendo de etnia fula, ele estava ciente de que a sua prisão não preocupava ninguém para além do círculo restrito da sua familia, mas o caso do Sissão incomodava os espiritos dos pacatos camponeses de Cuntima. 

Que diabo o teria arrastado para as malhas do partido, ele que sempre fora um camponês simples, honesto e trabalhador, distante das lides políticas e das intrigas que esta engendra nos homens mais ambiciosos. Não servira na tropa colonial apesar dos benesses, do ronco e da fama que o estatuto augurava no meio social fula. Toda a sua família estava presente, a mãe, duas esposas, os filhos e o irmão mais velho. Com voz trémula, explicou tintim por tintim como os assaltantes o tinham acordado durante a noite, os seus intentos e as ameaças proferidas. O Comité da aldeia também repetiu a sua versão e as palavras trocadas com Sissão naquela fatídica noite,  bem como os motivos que o impediram de alertar os homens do destacamento.

Não foi preciso ouvir mais e, se calhar nem era preciso, o Comandante levantou-se e, com a frieza de quem estava habituado a tomar decisões graves, disse que,  pelos comprovados actos de rebeldia e traição à Pátria, os dois homens deviam ser fuzilados e imediatamente.

Ao ouvir as palavras “pá, mata!” da boca do Chefe militar, a assistência ficou literalmente congelada. A rapidez e a dureza da decisão tinham surpreendido tudo e todos, mas quem conhecia o Comandante Quemo Mané durante a luta, sabia que com ele tudo era simples, rápido e demolidor como o turbilhão de vento em dia de tornado tropical. A semelhança da grande maioria dos Comandantes do PAIGC, apesar de rotundo analfabeto (2), subira na hierarquia militar por mérito próprio, distinguindo-se pela sua coragem, brutalidade e violência extremas, uma inteligência fora do comum e pelos sucessos acumulados nas operações que dirigia.

Deram ordens para que todos fossem presenciar o acto no centro da aldeia, mas antes de os levarem, um grupo de homens do partido dirige-se ao local onde estava o Comandante a fim de interceder a favor do Comité da aldeia, provavelmente, pela lealdade e serviços prestados no passado. Assim, no local da execução da sentença, só compareceu o assustado Sissão, diante de uma dupla de homens armados com metralhadoras de fitas metálicas, contendo perto de uma centena de balas. O caso não era para menos.

Tudo estava a postos, os dois guerrilheiros com as armas apontadas, o Sissão à frente,  com as mãos amarradas e olhos fixos nos seus carrascos, a população em pé, envolta em silêncio e no céu o Deus dos homens a registar mais uma crueldade humana. O Comandante da zona que ficara retido pelos colegas do partido para deliberar sobre a sorte do Comité, ao entrar no recinto, grita para os dois executantes:
- O que estão a espera, acabem com eleǃ

Os tiros sucedem-se ensurdecedores, o corpo de Sissão é projectado para trás com o impacto das balas das metralhadoras que continuaram a cuspir fogo até transformar o corpo num autêntico manto de retalhos. A poeira e o cheiro acre da pólvora invadiram o recinto. De seguida, um dos guerrilheiros pega no corpo inerte do defunto Sissão, tendo-o arrastado até ao pé da família, diz a estes:
- Aqui está o corpo do vosso cão, agora podem levá-lo, se quiserem!

Da multidão, ninguém proferiu uma única palavra, ninguém teve a coragem de sussurar a mais pequena lamentação, os guerrilheiros atentos ao menor gesto de indignação. Perguntaram se havia alguém que estivesse descontente com o que acabara de assistir. Como ninguém respondia, foram autorizados a dispersar-se no preciso momento em que se ouviam os gritos de desespero vindos da concessão de Sissão Seidi, cujos familiares a muito custo tinham conseguido conter a dor pela perda do seu ente querido.

Na tarde do mesmo dia, o Comissário Político da zona convocou todas as mulheres cujos maridos estavam ausentes, refugiados algures no Senegal, e que, eventualmente, podiam ter feito parte do grupo assaltante e intimou-os a deixar Cuntima para se juntarem aos seus maridos, pois que não tolerariam mais a presença de pessoas que viviam na aldeia, mas, ao mesmo tempo, passavam informações para fora. Mais que intimação,  era uma ordem que ninguém podia ignorar. As mulheres partiram levando consigo os filhos para um destino incerto.

Na manhã do dia 17 de Novembro, foram buscar o homem da catana para as averiguações que se impunham. O homem foi amarrado ao estilo peito de pomba e a população foi novamente convocada para mais um julgamento público. Perguntaram-lhe porque não voltara com o filho conforme tinham combinado, o homem confessou que na verdade ele tinha sido enganado pelos assaltantes e que a sua verdadeira intenção era liguidar os homens do PAIGC aos quais ele odiava com todas as suas forças e que,  mesmo depois de morto,  continuaria a odiar. De certa forma, a coragem deste homem desesperado tinha compensado a humilhação pública da população de Cuntima.

Levaram o homem ao mesmo sitio do dia anterior, a cabeça e o rosto encapuchados com um chapéu (sumbia) e para o executar, estavam novamente os homens das metralhadoras. O homem pediu para ver o seu filho mais novo. Retiraram-lhe o chapéu que cobria o seu rosto e,  durante alguns segundos,  olhou para o filho, depois pediu para que o cobrissem de novo e em voz alta, para que todos pudessem ouvir, disse que estava pronto para morrer. 

Acto continuo, o comandante deu ordens de fogo e a cena repetiu-se de novo. Como ninguém reagia e olhando para a multidão silenciosa, o Comandante aproveitou para informar a população aterrorizada de Cuntima que para ele e para o seu glorioso partido não custava nada e não constituía qualquer problema riscar a aldeia e a sua população rebelde do mapa da Guiné-Bissau. Com esta mensagem curta e clara,  tinham dado por encerrado o capitulo da revolta das milícias em Cuntima, mostrando assim a determinação do partido em impor a sua ordem.

A operação de procura dos assaltantes continuou nos dias que se seguiram. Durante as buscas, encontraram um dos assaltantes, gravemente ferido, a quem entregaram aos pais e que viria a sucumbir, poucas horas depois, dos seus ferimentos e, provavelmente, por falta de assistência mêdica. Como dizem os árabes, quem não consegue defender, com as armas, o seu ponto d’água, perdê-lo-á; quem não ataca o inimigo com todas as suas forças, sofrerá a humilhação da derrota com todas as suas amargas consequências.

Actos desesperados e suicídas,  como este, tiveram lugar em outros lugares do território, no período que se seguiu à proclamação da independência, sobretudo junto à linha da fronteira com o Senegal. Actos isolados e mal preparados que estavam condenados ao fracasso e cuja autoria, sistematicamente e sem uma explicação plausível, era atribuída à FLING, fazendo reviver velhos fantasmas do passado, aumentar o grau de crispação das novas autoridades e, em consequência, multiplicar a violência de represálias cegas, perseguições arbitrárias e execuções sumárias que marcaram a vida desta jovem nação que, para muitos, constituía um modelo exemplar de uma luta popular bem sucedida, contra o colonialismo em África e no mundo.

Bissau, 12 de Junho de 2013

Recordações de Demburri Seidi (3), tradução e texto de Cherno Baldé.

[Revisão, fixação de texto, adaptação, subtítulos, para efeitos de publicação neste poste: LG]
______________

Notas de Cherno Baldé

(1) Na minha infância, povoada pelo espectro da guerra e das fugas constantes de um lado para o outro, quantas vezes não perguntara, a mim mesmo, se a minha vida estaria condenada a ser vivida assim no meio de uma guerra sem fim. Pela experiência dos mais velhos, sabiamos que no passado nem sempre tinha sido assim e sofriamos a bem sofrer,  com a guerra que nos minava a vida pelo medo de morrer em cada minuto, vivendo no improviso e na incerteza do momento, em abrigos imundos, quentes e húmdos, onde todos os ruídos eram ampliados ao máximo, rastreados e identificados a tempo, não fossem silvos de uma granada de obus a caminho ou de uma bala perdida na noite escura.

Para afugentar uma aldeia inteira, qual manada de bovinos na planície, bastava ouvir gritar na noite: “Aí estão eles!”. Não era preciso perguntar, toda a gente sabia quem eram “eles”. Uma vez, um dos meus tios ouviu o grito durante a noite e fugiu nu, como tinha nascido, e foi a mulher que lhe cobriu as vergonhas, no caminho, com o seu pano de cima.

(2) A propósito conta-se uma pitoresca estória sobre o Comandante, que aconteceu no período pós-independência. No término de uma aula rotineira, um Professor dá aos seus alunos um TPC (trabalho para casa) em que pede para citar exemplos de alguns animais voadores. Em casa, o filho pediu o apoio do Comandante, seu pai, para a conclusão do mesmo.
─ Isto é muito fácil ─ diz o pai ─ ponha os nomes de peixe e lagarto.

Na escola, durante a correção dos trabalhos o Professor pergunta ao seu aluno:
─ Quem te ajudou a fazer o trabalho?
─ O meu pai ─   responde o aluno, com uma ponta de orgulho.
─ O teu pai é um burro ao quadrado ─ diz o Prof.

A criança não diz nada e em casa conta tudo ao pai. No dia seguinte, o Comandante vai a escola armado com uma pistola e pergunta ao Professor:
─ O peixe voa ou não voa?
─ Voa ─ responde o Professor ─ mas debaixo d’água.

O Comandante pergunta de novo:
─ O lagarto voa ou não voa?
 ─ Voa ─ responde o pobre professor, com a voz a tremer ─ mas debaixo d’água.
─ Afinal quem é o burro ao quadrado? O burro ao quadrado é o professor que não sabe o que diz e a quem o diz ─ responde este.

Devagarinho, o Comandante coloca a pistola na cintura das calças e diz ao professor:
─ Agora continua a dar as tuas aulas e não te metas com antigos combatentes se não queres levar com uma bala na tua cabeça de burro ao quadrado ─  acrescentou antes de sair.

Um provérbio árabe diz: "Não menospreze uma criança frágil, pode ser que seja filho de um leão".

(3) Em 1974, Demburri Seidi (nome fictício) fez parte de um grupo de jovens que fugiu para juntar-se às fileiras do PAIGC, no mato. Após a independência, fez preparação militar em Canchungo, mas rapidamente chega a conclusão que, com o fim da guerra e sem instrução escolar, as suas hipóteses de subir na hierarquia militar eram praticamente nulas.

 Aconselhado por pessoas amigas, decide trocar a farda pelos estudos, colecciona alguns livros e escolhe a localidade de Cuntima, que dista a poucas horas da aldeia dos pais, para a sua formação escolar. E, sem querer, vai testemunhar os trágicos acontecimentos que se seguiram ao ataque de Cuntima (4) que acabamos de descrever e que marcaram a sua vida e sobre os quais, ainda hoje, não consegue falar sem que os seus olhos se encham de lágrimas.

(4) Comandante do destacamento de Cuntima - Capitão Madiu Kim;
Responsável da segurança – Sana Queita;
Comité da tabanca  ─ Samba Seidi;
Fuzilados ─ Soarê Seidi, Sissão Seidi e  Abbaro Candé,  o homem da catana.

___________

Notas do editor:


(**) Vdf.poste de 31 de março de 2016 > Guiné 63/74 - P15920: Memória dos lugares (337): Cuntima, junto ao Senegal... Imagens do antigo quartel (Patrício Ribeiro, Impar Lda, Bissau)

(***) Vd.poste de 25 de junho de 2013 > Guiné 63/74 - P11762: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (45): Horror e terror em Cuntima, em novembro de 1976: a revolta de um grupo de antigos milícias, a execução pública de Soarê Seidi e de Abbaro Candé, por ordem do histórico comandante do PAIGC, Quemo Mané (Recordações de Demburri Seidi, tradução e texto de Cherno Baldé)

(****) Vd. postes anteriores da série: 

8 de fevereiro de 2022 > Guiné 61/74 - P22979: Adeus, Fajonquito (Cherno Baldé): Parte III: O rabo de um macaco pode ser muito comprido mas não é por isso que deixa de sentir a dor quando picado

7 de fevereiro de 2022 > Guiné 61/74 - P22976: Adeus, Fajonquito (Cherno Baldé) - Parte II: A chegada dos guerrilheiros, outrora "bandidos", agora "heróis da libertação da Pátria"...A (mu)dança das bandeiras... Os meus novos amigos, balantas...

6 de fevereiro de 2022 > Guiné 61/74 - P22973: Adeus, Fajonquito (Cherno Baldé) - Parte I: Os sinais de uma mudança anunciada, os recados vindos do Oio e a delegação que voltou de mãos a abanar

13 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

É mau para a humanidade que homens como Quemo Mané morram, mesmo sozinhos como um cão numa cama de hospital, sem terem prestado contas dos seus crimes (de guerra ou contra a humanidade) e julgados por isso no Tribunal de Haia ( que, infelizmente, só existe desde 2002)...

Quemo Mané morreu em 1985 ainda em plena guerra fria, em Moscovo, no conforto da impunidade...Em todas as guerras, e nos pós-guerras em que os vencedores tomam o poder, há sempre muitos Quemo Manés, de todas as cores, nacionalidades e ideologias... Mas é importante que as suas histórias sejam conhecidas da opinião pública... A História com H Grande os julgará...

Valdemar Silva disse...

Evidentemente, uma coisa é um fuzilamento (pena de morte) de um prisioneiro outra coisa é ter acontecido ser abatido na refrega da revolta.

Vamos começar a pensar ou passar a pensar no Cherno Baldé, o puto de Fajonquito, como um homem com um grande curriculum intelectual, sem medo de apontar os crimes cometidos pelos libertadores da sua Guiné do tempo colonial.
Cherno Baldé, doutor ou engenheiro, sempre nos habituou ao 'no tempo colonial' mas também nos habituou às boas relações com os soldados que estavam numa guerra longe da terra dos seus avós.

Abraço e saúde da boa
Valdemar Queiroz

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Cherno: uma dúvida, de somenos importância... O que era o "Comité de Tabanca" e quais as suas funções, em 1976 ? Era uma entidade coletiva (um grupo) ou individual ? Parece tratar-se apenas de um indivíduo, de acordo com a tua narrativa:

(...) "Na manhã do dia 15 de Novembro, os guerrilheiros mandam convocar o Comité da Tabanca para o pôr ao corrente do que sucedera durante a madrugada." (...)

(...) "O Homem de cabelos grisalhos, toda a gente o conhecia, era o Comité da tabanca, espécie de cipaio reformulado na nova nomenclatura, colaborador activo da ordem instituida, mesmo sendo de etnia fula, ele estava ciente de que a sua prisão não preocupava ninguém para além do círculo restrito da sua familia, mas o caso do Sissão incomodava os espiritos dos pacatos camponeses de Cuntima." (...)

Mantenhas, irmãozinho.
__________

comité
comité | n. m.

co·mi·té
(francês comité)
nome masculino
Reunião de membros escolhidos numa assembleia, numa sociedade, a fim de examinar certos assuntos.


"comité", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2021, https://dicionario.priberam.org/comit%C3%A9 [consultado em 18-02-2022].

Cherno Baldé disse...

Caro Luis,

Uma coisa é o dicionário, a norma e outra a realidade da prática dos homens. Comitê é um grupo, uma colectividade com diferentes funções liderado por um presidente. Na Guiné-Bissau do pós independência, o Presidente passou a ser conhecido por Comitê, porque na prática ele era o representante da(s) Tabanca(s) perante as autoridades. Assim, ele é o Comitê da Tabanca na linguagem simplificada do povo.

Abraço,

Cherno Baldé

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Obrigado, Cherno, o povo é mais sábio que o dicionário da língua... A gente, contigo, está sempre a aprender. O dicionário tem de registar esta aceção guineense de comité...

Na realidade, a democracia é muito bonita, mas a prática encarrega-se de a "avacalhar"... Veja-se o que se passou no país dos sovietes...

É como a noção de "equipa": há muito mais EUquipas do que Equipas...Ou de líder e liderança, que não se confunde com chefe e chefia... Chefia é um "atributo", liderança é uma "relação"...

A construção da democracia é uma picada dura e longa...

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Cherno, tão deliciosa quanto arrepiante, é a história da criança, do pai e do professor... Perante uma Kalash ou uma Walther, dificilmente há argumentos...

Manuel Luís Lomba disse...

Coisas do passado:
Os comandantes Quebo Mané e Bobo Keita saíram derrotados da "Operação Abel Djassi", o primeiro na Frente Norte (Guidaje, Copá...) e o segundo na Frente Leste (Buruntuma), não chegara a cercar esta tabanca, porque a Força Aérea se lhe antecipara, destroçando-lhe a força na base de Koundara.
Assinados os acordos e iniciado o acantonamento militar, o Quebo Mané vingava a sua derrota, complicando a vida ao MFA e à malta fronteiriça; tinha sido cabo da milícia, sob o comando do então capitão Carlos Fabião, havia desertado de Aldeia Formosa, o ora brigadeiro foi ao desarmado ao Senegal ao seu encontro e ele "obedeceu-lhe".
O Bobo Keita também vingava a sua derrota, aquele brigadeiro não foi à GConacri, mandou um oficial do MFA, este fez-lhe a vontade, mandou a guarnição retirar-se e acantonar-se em Piche.
O comandante da guarnição de Buruntuma cumpriu a ordem, mas recusou-se a abandonar o seu posto, ficou sozinho sentado numa cadeira na varanda do seu comendo, para grande espanto dos "vitoriosos", estes trataram-no com deferência, esse oficial do Exército Português continuou anónimo, o seu acto de honra castrense não é falado...
Abr.
Manuel Luís Lomba

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Manuel Luís, que sejas bem aparecido!... Espero que a saúde vá melhor!... Interesssante, o teu comentário. Mas gostava que referisses as tuas fontes... Já agora, é Quebo ou Quemo Mané ?... O Cherno escreve "Quemo", no Arquivo Amílcar Cabral, o nome é também "Quemo"...

Mas será que vale a pena a gente gastar o nome latim com esta figura ?... Wu acho que sim, temos a obrigação de fazer a "pedagogia da guerra", para que os os nossos netos não nos acusem de que morremos calados...

Mantenhas. Que Deus te proteja. Luis

Antº Rosinha disse...

Este episódio de uma guerra pós independência, que nos trás o Tcherno, podemos considerar que é uma pequena, mínima amostra daquilo que se teria passado com elementos de todos os movi mentos que saíram "vitoriosos" após o nosso 25 de Abril na ex-colónias portuguesas.

Mas no caso da Guiné-Bissau, um país tão pequeno geograficamente, mas tão variado etnicamente, havia obrigação da parte dos principais dirigentes do PAIGC de controlarem os presidentes de comité, e de terem dado atenção a inevitáveis abusos de poder.

Quando falo de dirigentes do PAIGC refiro-me a caboverdeanos dirigentes do PAIGC, que ficaram durante 6 anos com o poder nas suas mãos, e fizeram tudo o que entendiam fazer, e com todo o apoio internacional, principalmente cubanos e suecos, soviéticos e até muitos portugueses.

Em 1980 foram corridos da Guiné, foram uma vergonha, não os caboverdeanos, gente fora de série, uma vergonha aquela "seleção" especial de caboverdeanos e "berdianos, que assistiram a tudo de poltrona sem mexerem uma palha.

Antº Rosinha disse...

José J. Macedo, aquela "seleção" estava dentro daquelas várias dezenas (centenas?)que em menos de uma ou duas semanas sumiram por todos os meios da Guiné-Bissau, uns para Caboverde outros para Portugal, ou para onde pudessem ir mais rápido. (14 de Novembro/1980)

Claro que nem todos os que sumiram teriam sido testemunhas de desmandos, e mesmo dos que ficaram (muio poucos) seriam desconhecedores de atrocidades, até porque algumas foram bem públicas e ninguém apelou à reconciliação.

Nomes? isso não é comigo, não sou historiador, talvez fosse fácil contar os que ficaram em Bissau, porque foram muito poucos e seria mais fácil.

Os dirigentes são intocáveis? Os dirigentes quanto mais evoluidos e preparados e conscientes mais responsáveis pelas atrocidades que se seguiram nem que nem tenham pegado numa arma.

Valdemar Silva disse...

Luís Lomba, sejas bem aparecido.
Tá bem que já acabou o confinamento, mas isso foi só para os covidados sem bolanhas no curriculum.
E entras logo a tratar do Fabião, coitado que por aqui já levou mais que o burro do cigano e deve estar descansando à nossa espera sem estar interessado em conversas bolorentas.
Então ficamos sem saber se foi o Quebo ou Quemo Mané o não quê da milícia.
Fabião foi o responsável pela Milícia em 1971-1973, e julgo que o Quebo Mané fez parte dos atacantes a Tite em 1963, pelo que não teria sido cabo da milícia 1971-73.

Abraço e saúde da boa
Valdemar Queiroz

Manuel Luís Lomba disse...

Olá, Luís:
A tua saudação tocou-me, a tua saúde e a de outros camaradas do blogue estão bem registadas na minha mente.
No referido a nomes, Quemo é certo e Quebo é erro de simpatia, escrevi o comentário de memória, escarafunchei a Guerra da Guiné há mais de 15 anos, algumas das nossas funcionalidades não esperam pela "doença do alemão" (o direito de autor é teu) para deixar de funcionar bem...
No referido às fontes, não há apocrifia.
Ao derrotados na Frente Norte devemos acrescentar o malogrado comandante Paulo Correia; aos derrotados na Frente Leste devemos acrescentar o comandante Eduardo Pinto.
No referido ao encontro Carlos Fabião/Quemo Mané, no Senegal, ouvi-o da boca daquele ex-Alto Comissário, na TV, em que também se queixou do Juvêncio Gomes, Bissau era zona 0 do PAIGC, tão deserta de militares como de representantes políticos. Julgo que a Universidade de Coimbra passou este e outros seus depoimentos a letra de forma.
No referido ao desbaratar em Koundara da força que atacaria Buruntuma, no contexto da crise dos 3G´s, o António Martins Matos "dixit" aqui no blogue, "foi lá lançar umas bilhas", fim de citação.
No referido à retracção intempestiva da guarnição de Buruntuma, o major Ornelas Monteiro foi o emissário do brigadeiro Carlos Fabião junto do Bobo Keita e Eduardo Pinto, já essa guarnição iniciara a retirada para Piche.
Talvez por "pudor", não se tem revelado o nome do comandante que ficou sozinho na sua cadeira de comando, nem do oficial promotor dessa retirada à revelia do Comando-chefe, que terá afirmado que se este levantasse um "auto de corpo de delito", o liquidaria com a própria arma e seguiria para Lisboa a apresentar-se ao Tribunal Militar.
Dou a palavra à malta dessa guarnição.
Olá, Valdemar, a tua militância comentarista supera toda e qualquer tua limitação física -não desistas! Mas o Carlos Fabião prestou serviço na Guiné durante 12 anos..
Aquele abraço.
Manuel Luís Lomba

Valdemar Silva disse...

Tá bem, Luís Lomba.
Mas o Fabião chega à Guiné em 1955 e vai para a formação de recrutas em Bolama, e depois é colocado em Bissau.
Volta à Guiné em 1965, já tinha acontecido o ataque a Tite, então quando é que o Quebo Mané foi seu 'cabo da milícia'?
Sabes, quando se tem muito que fazer, como é o meu caso, estes assuntos do Quebo Mané ter sido cabo da milícia do Fabião até me ajudam a descansar das muitas tarefas de cutelaria, concretamente de colhereiro, por não conseguir adaptar-me aos hashis.

Abraço e saúde da boa
Valdemar Queiroz