sexta-feira, 18 de fevereiro de 2022

Guiné 61/74 - P23007: Notas de leitura (1421): “Declarações de Guerra, Histórias em carne viva da Guerra Colonial”, por Vasco Luís Curado; Guerra e Paz Editores, 2019 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Abril de 2019:

Queridos amigos,
Desde o trabalho jornalístico à investigação universitária, passando pelas páginas dos jornais e depoimentos televisivos, são variados os relatos dos antigos combatentes que a sociedade guarda num discreto anonimato. O que há de relevante neste levantamento de Vasco Luís Curado é que nunca se foi tão longe na versatilidade das citações, há prisioneiros na Índia, de primeiros-cabos atiradores, soldados-paraquedistas, alferes-sapadores, soldados-atiradores, condutores, oficiais de operações especiais, parece que o autor escolheu a dedo a representação dos estilhaços físicos e psicológicos, das manifestações mais díspares que vão da apatia à agressividade permanente. 

Como diz o autor, "O país, todos nós, não quis saber do combatente que, regressado a casa, dormiu um mês no bosque próximo com a faca-de-mato, ou daquele que, de vez em quando, acorda convicto de que, aos pés da cama, está um saco cheio de orelhas e dedos humanos (...) Há que continuar a ajudá-los num outro combate contra dois tipos de esquecimento: o que eles individualmente gostariam de fazer mas não podem, e o que o país lhes quer impor mas não devia".

Um abraço do
Mário



A voz de antigos combatentes que se mantêm em conflito, em carne viva

Beja Santos

“Declarações de Guerra, Histórias em carne viva da Guerra Colonial”, por Vasco Luís Curado, Guerra e Paz Editores, 2019, reúne relatos de antigos combatentes, um mostruário eloquente dos estilhaços físicos e psicológicos que a sociedade portuguesa finge esquecer, a guerra já está longe, estes stressados que se amanhem. 

Quem os recolheu é psicólogo clínico, trabalhou dez anos num hospital militar, acompanhou estes stressados, e visa um objetivo primordial com este livro: contribuir para um reconhecimento impedido por divisões profundas na sociedade portuguesa de homens que combateram e que se sentem votados ao esquecimento, muitos deles profundamente doentes ou levando uma vida familiar desgraçada. Como, explicitamente, observa:

“O país e o combatente individual são o duplo um do outro. Assim como o combatente se apazigua aceitando as marcas físicas ou mentais como parte indelével de si mesmo, o país amadurece recuperando o seu passado e aqueles que enviou para o combate. Foram necessários muitos anos para se caminhar em direção a algum equilíbrio na forma de interpretar a guerra e fazer face aos homens que ela mobilizou. Há que continuar a ajudá-los num outro combate contra dois tipos de esquecimento: o que eles individualmente gostariam de fazer mas não podem, e o que o país lhes quer impor mas não devia”.

Diga-se em abono da verdade que o tema está abundantemente versado, as livrarias oferecem muita leitura sobre vidas atormentadas destas experiências de combate sobretudo em terra mas também nos céus e nos rios, falam de jovens que queriam emigrar e que procuraram despachar o serviço militar, seguiram-se as comissões muito duras que tudo alteraram. O que distingue verdadeiramente estes relatos de Vasco Luís Curado do que até agora se escreveu é a versatilidade do caleidoscópio humano, fica-se com a impressão que o apanhado de testemunhos cobre o essencial dos estados daqueles para quem a guerra ainda não acabou, acompanhará muitos até à tumba. Veja-se o caso de quem acreditava no dever pátrio de ir para a guerra, ela mostrou-se tão cruenta que o crente desses valores se foi alterando, e assim testemunha, com uma franqueza que ronda a brutalidade:

“Os meus melhores amigos foram morrendo. Um deles foi atingido numa emboscada, em Cabo Delgado, por um tiro vindo da mata. Vi-o cair. Quando cheguei ao pé dele, estava morto. Quando fazíamos escolta a uma coluna de Engenharia, vi outro ser atingido por uma granada de morteiro e ficar desfeito. Estive com ele até morrer. Sabe o que é apanhar ao colo um amigo sem braços nem pernas?”

Quem testemunha confessa que sentiu prazer em matar, fica o peso da consciência: 

“Por cada pessoa que matei, os rostos ainda me perseguem e devoram”.

 Regressou e a inadequação cedo se manifestou. Sentia-se consumido por uma fúria destruidora: 

“Engravidei a minha segunda mulher quando ainda vivia com a primeira – e também a abandonei anos mais tarde. Sempre fui abandonando as pessoas de quem gostava, para não as magoar mais. Um dos meus netos, ainda criança, odeia-me e com razão: parti o braço ao pai dele. O meu genro é toxicodependente e esteve envolvido em assaltos. Eu tentava fazer-lhe mal de cada vez que o via e cheguei a atropelá-lo. Tenho medo de dormir, quando fecho os olhos vejo coisas passadas na guerra. Às vezes dou por mim a chorar sozinho quando penso no Ultramar, parece que sinto uma pessoa a gemer dentro de mim”

Meses continuados de tensão podem, imprevistamente, revelar-se em sinais de abulia, indiferença ou o seu contrário, alguém testemunha assim:

“Ao fim de quinze meses, depois de me confrontar com tantos problemas, os homens motivados por minas, dar dinheiro a soldados para pagarem medicamentos dos filhos na Metrópole, comecei a desparecer de vez em quando: disseram-me mais tarde que me iam encontrar na estrumeira, fora do aquartelamento, sujeito a expor-me ao fogo inimigo, sem saber o que estava ali a fazer”.

O convívio com a morte e toda a escala do sofrimento também pode gerar relações paradoxais, como alguém revela: 

“Éramos capazes de cantar e beber cerveja ao pé de camaradas mortos. Quando um de nós recebia alguma coisa da Metrópole, como chouriços e coisas assim, era uma festa. Comíamos e bebíamos juntos, mesmo que ali ao lado estivessem os mortos embrulhados. Isto já numa fase mais avançada, endurecidos pela guerra”

E alguém morreu por ele, a dor parece interminável: “Fui ferido três vezes num ataque. Viram-nos a entrar para o abrigo e mandaram para lá a granada. Um dos que tinha entrado para o abrigo primeiro do que eu estava à minha frente e salvou-me a vida, porque levou com tudo. Caio com o meu peito em cima dele, que estava a morrer, senti o sangue dele a jorrar para cima de mim, a correr em golfadas que faziam barulho, parecia que silvava. Eu fiquei ferido com dezenas de estilhaços cravados no peito, barriga e pernas. Ainda hoje encontro camaradas que me dizem como é que eu tinha tanto sangue para deixar lá”

A destruição familiar é muito frequente, oiçamos alguém: 

“Ao fim de 36 anos de casamento, a minha mulher deixou-me. Fiquei sozinho. As minhas filhas estão do lado da mãe. Uma não me liga nada, a outra sim, porque precisa de mim para ir levar e trazer a minha neta que anda no infantário. Dizem que sou um sobrevivente, um exemplo para os meus camaradas, que me viram como morto e nunca julgaram que escapasse. Recebi um louvor, porque, mesmo ferido, não deixei de incentivar os meus camaradas. Eu quero viver, levar a vida para a frente. Mas como é que eu chego lá?”.

Insónias, solidão, sonos invadidos pela guerra, gritaria nos pesadelos, arrependimentos, viver como um fantasma, a vida a fazer uma revisão da guerra… E o horror de um momento capital que depois é versado em termos banais: 

“Perto do fim da comissão, seguíamos dez numa viatura, íamos assistir a um jogo de futebol no quartel da companhia mais próxima. Não ia eu a conduzir. O meu colega deixou o carro despistar-se na picada. Fiquei com o braço debaixo do carro, que me decepou a mão esquerda. Vi a mão caída no chão, mesmo à minha frente. Olhei para o couto, olhei para a mão. Com raiva, dei um pontapé na mão, que voou para o mato. Na enfermaria perguntaram-me pela mão, ainda poderia ser cosida ao braço, no hospital central. Eu e alguns camaradas voltámos ao local do acidente, procurámos no meio da vegetação. Já não a encontrámos. Deve ter sido um festim para as formigas”.

 Tudo é indelével, e momentos há em que se percebe o quilate da camaradagem indefetível: 

“Nos anos 90, quando visitei o Monumento aos Combatentes do Ultramar, em Belém, com o mural onde estão gravados os nomes dos mortos, li o nome completo do Valter, a quem fechei os olhos, e, nesse momento, tornei a sentir o corpo dormente: era o espírito dele a sair do meu corpo”.

Cansaço, cólera, abandono, recolhimento, susto com o barulho dos carros, foguetes, estrondos, sair da cama a meio da noite, vestir-se com a preocupação de que vai para uma operação, um choro compulsivo repentino, olhar para o arvoredo e pensar que está ali um belo sítio para fazer uma emboscada… O que Vasco Luís Curado regista em testemunhos muito bem cuidados é uma gritante chamada de atenção para esses milhares de combatentes que precisam de apoio e de muita compreensão. A sociedade portuguesa precisa de estar mais aberta e compreensiva para este passado colonial, pois muita desta dor aqui contada vem do esquecimento a que estes homens se sentem votados.

De leitura obrigatória.

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Nota do editor:

Último poste da série de 17 DE FEVEREIRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23005: Notas de leitura (1420): "Um caminho de quatro passos", de António Carvalho (2021, 219 pp.): apontamentos etnográficos para o retrato da nossa geração, de antigos combatentes - Parte III (Luís Graça): uma excursão a Lisboa, de 4 dias, em 1959

2 comentários:

antonio graça de abreu disse...

Que sofrimento! Mórbido...Até uma mão decepada num despiste foi comida, num ápice, por formigas.
Para quem gosta de espetar facas no baixo ventre é de leitura obrigatória.

Abraço,

António Graça de Abreu

Valdemar Silva disse...

"Declarações de Guerra, Histórias em carne viva da Guerra Colonial"
Só esta epígrafe dava para uma advertência 'a leitura que se segue pode conter linguagem suscetível de ferir a sensibilidade dos leitores' e assinalado com uma bolinha vermelha ser para maiores de 16 anos por causa das criancinhas curiosas.

Quanto não vale ouvir "A Cavalgada das Valquírias" misturado com uns tirinhos e umas explosões coloridas.....(e aquilo nem se passou connosco)


Saúde da boa
Valdemar Queiroz