sábado, 19 de fevereiro de 2022

Guiné 61/74 - P23009: Os nossos seres, saberes e lazeres (492): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (38): De regresso à primeira grande obra da arquitetura manuelina (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 16 de Dezembro de 2021:

Queridos amigos,
O regresso a Setúbal tinha como pretexto uma tasquinha de pitéus, a Dona Rosa, senhora de muitos dotes em caldeiradas, choco frito e carapaus. Revelou-se irresistível a visita à Igreja do Convento de Jesus e ao respetivo Museu, sempre a aprimorar-se. E ficou a vontade de rapidamente ali voltar, mais não seja para ir conhecer o Museu das imagens de Lauro António e ver uma exposição do meu amigo Vasco no Museu do Trabalho.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (38):
De regresso à primeira grande obra da arquitetura manuelina

Mário Beja Santos

Havia que ir a Palmela, a um armazém de livros, trazer umas caixas com obras oferecidas para uma IPSS da Saúde, foi assim que me senti acicatado a avançar sobre Setúbal, e mesmo em cima do acontecimento dei comigo a pensar, para além de ir comer carapaus, que belezas visitar: o Museu do Trabalho? A Galeria Municipal, a coleção oferecida pelo Lauro António? Deambular pelo casco histórico para ver as melhorias nas mais recentes intervenções? Ir até ao Museu de Arqueologia e Etnografia? Subir até à Fortaleza de S. Filipe? Ir sentir os cheiros do Mercado do Livramento? Tanta foi a indecisão que se cortou o mal pela raiz, o melhor é ir até ao Convento de Jesus, voltar a visitar o museu e deter-me com mais atenção sobre as preciosidades do Coro Alto.
Encomendados os carapaus, investe-se no centro em direção à primeira grande obra da arquitetura manuelina. É nisto que se dá com uma vivenda de outras eras em derrocada, é certo e seguro que não há salvação possível nem para os azulejos, requintados, por sinal. O que dá para refletir que andamos sempre a bater com a mão no peito na defesa do património e mantemos olímpica diferença com certos primores que nos cercam. São estas imagens que aqui se mostram da azulejaria que marcou uma época, veja-se a imagem final com a graciosidade que teria aquela escadaria antes de todo este conjunto ter sido votado ao abandono, agora não dá para chorar sobre o leite derramado.

Não é à toa que se diz que esta igreja é a primeira manifestação do que se convencionou chamar o manuelino, iniciou-se a sua construção em 1490, desta iniciativa à ama-de-leite de D. Manuel, uma senhora de nome D. Justa Rodrigues Pereira, cortesã, solteira, mas mãe dos dois filhos de D. Frei João de S. Lourenço, Bispo de Ceuta e da Guarda, com filhos legitimados por Carta Régia. A fundadora lá foi fazendo as suas compras de terreno, contou com o patrocínio do Rei D. João II e a licença do Papa Inocêncio VIII, atribui-se a Mestre Diogo de Boitaca a obra. Nas escavações arqueológicas que se realizaram em 1989 apurou-se que a cabeceira e o corpo da igreja conventual foram construídos na mesma fase da obra. As recentes urbanizações valorizaram a perspetiva que se tem do templo religioso. Consegue-se centrar o nosso olhar do todo para a parte, o portal toma logo conta de nós, é feito em brecha da Arrábida, apresenta 18 nichos projetados para as imagens, que se pensa nunca terão a ser esculpidas. Tem no tímpano dois Alfas (letra do alfabeto grego que simboliza o Mistério da Criação) as portas são do final do século XVI, conforme data gravada no exterior.
O Convento ganhou imenso com esta urbanização, aumenta a espacialidade, são uns belos espaços verdes e a visibilidade é logo atraída para toda esta brancura de uma construção sóbria onde imperam janelões harmoniosos, o destaque do portal e os contrafortes no exterior.
É impossível o visitante ficar indiferente há ligação entre o interior da igreja com as suas colunas torsas em brecha de Arrábida, a sua perfeita ligação com a capela mor e o Coro Baixo, e a vista espraia-se pelas paredes azulejadas, por um lado é a sensação de grande leveza como se o templo fosse levantar voo, por outro os painéis de azulejos de uma extraordinária beleza. Seja qual for o autor de todo este projeto, as soluções construtivas no interior da igreja geram uma atmosfera etérea. Escusado é dizer que houve diferentes intervenções, é o caso da atual platibanda, que remata a fachada e a cabeceira no exterior, obras realizadas entre 1941 e 1943, restauro baseado no estudo de fragmentos da platibanda original.
É uma igreja de três naves, as suas colunas torsas geram surpreendentemente um espaço unitário e os dois janelões e o portal também produzem uma iluminação de forma homogénea. A sua cabeceira eleva-se sobre o corpo. Estão aqui as formas gramaticais que se tornarão comuns no manuelino: arcos de volta perfeita (em substituição de arcos de ogiva), abóbadas assentes sobre arcos abatidos, redes de nervuras, elementos decorativos como as meias-esferas e os chanfros papo-de-rola.
Surpreende, a quem entra aqui pela primeira vez desconhece as campanhas de obras, a austeridade da capela-mor. Ela foi coberta por uma abóbada em pedra lioz com nervuras em brecha da Arrábida, preenchida com azulejaria nas paredes laterais e no fundo da cabeceira tinha um retábulo de treze pinturas de grandes dimensões, em óleo sobre madeira de carvalho, atribuído à Oficina de Lisboa de Jorge Afonso. Em finais do século XVII ou inícios do século XVIII, este conjunto retabular foi desmontado e substituído por um retábulo em talha. Entretanto, os painéis pintados do retábulo quinhentista foram emoldurados e pendurados ao longo das paredes laterais do corpo da igreja. Na atualidade, este magnífico conjunto, altamente representativo da pintura portuguesa da primeira metade do século XVI, encontra-se na Galeria Municipal, até que terminem as obras no interior do edifício do Museu de Setúbal/Convento de Jesus. O retábulo em talha dourada não voltou à igreja.
Resta esclarecer que este Convento, sob o orago do nome de Jesus, recebeu religiosas da Ordem de Santa Clara (ramo feminino da Ordem de S. Francisco de Assis), a vida conventual ter-se-á iniciado em 1496, mas parte da obra conventual continuaria em trabalhos, o que não impediu a ocupação do edifício pelas religiosas. É essa vivência conventual que iremos seguidamente ver no que é hoje o Museu de Setúbal e aproveitaremos para admirar a magnificência do Coro Alto.

(continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 12 DE FEVEREIRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P22990: Os nossos seres, saberes e lazeres (491): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (30): Óbidos, diferentes povos, presenças régias, rico maneirismo, restauros e omissões (Mário Beja Santos)

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