quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022

Guiné 61/74 - P23023: Memórias do Chico no Império dos Sovietes (Cherno Baldé) - Parte III: Em Kichinev, Moldávia... Pôr-se em pelota, na inspeção médica perante um mulher?!... Mostrar tudo?!... Subahaanallai!...


URSS > Ucrânia > Kiev > 1987 > O Cherno Baldé, à esquerda, com mais dois colegas da Guiné Equatorial

Foto (e legenda): © Cherno Baldé (2011). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

 




Cherno Baldé, Kiev, Ucrânia, 1986


Memórias do Chico no Império dos Sovietes, 1985-1990
(Cherno Baldé) - Parte III:  Em Kichinev, Moldávia... Pôr-se em pelota, na inspeção médica perante um mulher?!... Mostrar tudo?!... Subahaanallai!...


por Cherno Baldé (*)


(x) A primeira viagem de comboio: até Kichinev, capital da Moldávia

A viagem para Kichinev [, capital da Moldávia,] foi de comboio. Depois da viagem do avião, esta era uma nova descoberta não menos interessante. Blagat... Blagat... Blagat... Este som, provocado pelos veios de um velho e lento comboio, tinha ocupado os seus ouvidos durante toda a noite, povoando o seu sono inquieto.

Viajavam dez a doze pessoas por vagão, divididos em compartimentos, com camas individuais, o que, visto com a lupa de hoje, constituía de facto um grande luxo se comparado com as condições dos outros comboios, que viria a conhecer nas terras mais a oeste, fora do território da URSS.

Tudo decorreu conforme estava previsto. Receção na estação, distribuição de residências, roupas de frio, visita médica, salas de aulas; era simplesmente impressionante a capacidade de organização das estruturas que os recebiam. Tudo estava planeado ao mínimo detalhe, uma máquina a perfeição como só o espírito europeu sabe criar. Quando chegavam num sítio já estava alguém à espera para recebê-los e conduzi-los, a seguir, para o local indicado. 

Se o comunismo era assim, então, de certeza que podiam contar com ele, dizia para com os seus botões. Viva o Lenine!... Viva a revolução comunista!...


(xi) Inspeção médica: "uma afronta à dignidade de homem africano"...

Bem, depois passou por uma pequena afronta durante a inspeção médica que teria diminuído um pouco o seu entusiasmo. Que fosse obrigado a entregar as suas fezes e urina já era um grande sacrifício e quase que um atentado à sua dignidade de homem africano, agora pediam que tirasse toda a roupa que cobria a sua nudez, assim como veio ao mundo, diante de uma mulher.

Ele ficou aterrorizado, outros gracejavam. É bom que conste, também, que só um espírito europeu, talvez comunista, era capaz de exigir uma coisa semelhante a um indígena africano que tinha passado toda a sua vida sob uma dupla educação conservadora, tradicional e muçulmana. Mostrar tudo!?... Subahaanallai!

As enfermeiras que procediam ao exame não queriam saber de tabus, ele tinha que mostrar-lhes tudo. O Chiquinho recusou e, por isso, foi acantonado ao lado, dando lugar aos outros menos envergonhados. Quando finalmente cedeu, pegaram no seu sexo, ou do que dele restava, virando e revirando-o em todos os sentidos como que para mostrar a insignificância do seu falso sentido de pudor.

Apanhado de surpresa, o desgraçado do sexo, centro nevrálgico de pudor, de timidez mas também de orgulho e da força masculina, ficou tão retraído e minúsculo ao ponto de ser ridículo. Para o Chiquinho tinha sido uma experiência decepcionante e, para aquelas curiosas senhoras de bata branca, também, mas por motivos diferentes.

Uma das enfermeiras, pegando numa ferramenta que parecia um martelo, bateu ao de leve nos seus joelhos. De seguida, pegou no seu braço esquerdo, depois o direito à procura de uma veia saliente donde poderia retirar sangue para as análises. Deu trabalho encontrar a veia e no fim, dirigindo-se ao tradutor, aconselharam o Chiquinho a pegar numa enxada e ir trabalhar a terra todos os dias a fim de desenvolver os seus músculos de bebé. Com tais características, certamente que não se enquadrava na classe dos trabalhadores, um conceito caro aos comunistas.

(xii) Quatro meses de aulas intensivas de língua russa, segundo um método tão eficiente quanto brutal... que o fez esquecer o português!

As aulas começaram de imediato. Uma primeira fase de aprendizagem da língua onde, diga-se de passagem, se utilizava um método tão eficiente quanto brutal, em salas especiais de audição linguofónicas durante horas intermináveis. Após quatro meses de aulas intensivas da língua russa, quando o Chiquinho se sentava para escrever uma carta em português já não encontrava as palavras certas nos espaços onde estavam antes.

Ele percebeu então que o método de ensino utilizado provocava este fenómeno de erosão cerebral. Percebeu também que, apesar das graves insuficiências de instrução escolar no seu país, faziam figura de avantajados diante de outros estudantes vindos de países ditos amigos da URSS, confrontados com profundas mudanças políticas, sociais e/ou de orientação ideológica como o Congo, de Marien N’gouabi, a Etiópia, de M. Hailé Marian, a Nicarágua, Laos, Camboja, entre outros. Alguns, como era o caso do meu amigo Peruano, Aníbal, não teria feito nem o ensino primário e tinha que lidar com o teorema de Pitágoras ou dissecar o capitalismo com as pinças de “O Capital”, de Karl Marx.

(xiii) Síndroma russa, provocada pela 
desoladora visão da natureza morta, pela omnipresença do frio e pela escassez da luz solar (1)

Passados alguns meses, o Chiquinho começou a sofrer de um estranho mal-estar físico, com sintomas de uma espécie de nostalgia aguda acompanhada de uma sensação de vazio profundo provocado, provavelmente, pela desoladora visão da natureza morta à sua volta, pela omnipresença do frio e pela escassez da luz solar.

Um dia, recusou-se a ir às aulas, pronto. Só queria que o deixassem dormir aconchegado no calor do quarto e dos cobertores. Impossível. A sua professora de língua russa, a meiga e simpática Victoria Aleksandrovna, veio falar com ele para dissuadi-lo. Juntamente com a professora, tinha vindo também a Vika, uma jovem moldava, sua afilhada, que ela o tinha apresentado. Parecia ter encontrado o remédio certo. A Professora, ao menos, compreendia o mal que o clima provocava nos africanos e estava habituada a resolver estas situações de crise emocional à sua maneira. As suas palavras calmas e serenas mobilizaram o Chiquinho ao ponto de fazê-lo desistir da greve.

Não obstante, a primeira vítima desta sua estranha doença seria ela, Victoria Aleksandrovna. Num dia normal de aulas de língua russa, após três dias sucessivos a falarem do mesmo assunto, o Chiquinho não tinha conseguido conter a sua irritação e tinha afirmado, em voz alta, que já estava farto das aulas que só falavam de Lenine. Lenine na Suíça!... Lenine em Petrogrado!... Lenine em Moscovo!... Poça, vida!

Para a grande surpresa de todos, que esperavam ouvir uma repreensão muito dura da parte da professora, ela simplesmente desatou a chorar, feita uma criancinha, revelando as linhas da idade que começavam a aparecer na sua linda cara de velha solteirona.

Teria ele mexido no tabu do espírito sagrado da União Soviética e Empiriocriticista?...

(xiv)  "Com que então, estava farto de Lenine!?"

O Chiquinho não sabia e, na verdade, nem queria saber. Não era aquela a manifestação do espírito comunista que esperava encontrar, depois de toda a propaganda sobre o comunismo científico e a dialética marxista que tinha lido durante anos. Era simplesmente incrível como um espírito tão crítico, tão pragmático e oportunista como Lenine teria podido parir (produzir) uma mentalidade tão seguidista e apática, um charco de água parada. Para ele já era o bastante para perder a razão.

Depois das aulas mandaram-no chamar no gabinete do Reitor para interrogatório. O que não o surpreendeu, pois já estava prevenido pelos mais velhos de que uma provocação destas podia valer a expulsão.
- Com que então, estava farto de Lenine!?...

Quiseram saber, entre outras coisas, a profissão dos seus pais. Ele disse-lhes a verdade, que a sua mãe era camponesa e seu pai comerciante. De filho de comerciante, certamente, terão deduzido que era da pequena burguesia, logo reacionário, anticomunista.

“Autant mieux” [, tanto melhor, em francês], pensava ele. Se o mandassem de volta, até agradecia, maldito clima. Desde que o inverno começara, ele não conseguia andar direito, os pés gelavam, escorregava e caía com muita frequência, não raras vezes tivera que andar de gatas para descer ou subir nas encostas, embrulhado num enorme paletó e botas de tropa que mal conseguia arrastar com os seus pequenos pés de criança. Deslizar em cima da neve era um exercício delicado para um homem dos trópicos. Nunca poderia imaginar que pudesse sentir tanta saudade dos raios do sol e do chão firme e vermelho da sua terra natal.

O reitor foi brando com o Chiquinho, quase simpático. Provavelmente, os ventos da mudança (**) já estavam a soprar. Não o mandaram embora e, ao invés, redobraram a atenção para com ele, convidando-o para excursões e visitas culturais. Foi durante esse período que o levaram ao teatro da cidade para assistir ao ballet de Lebedinoye Ozero (O lago dos cisnes), de Tchaikovsky.

Extraordinário!... Sem o saberem, tinha sido a melhor prenda que lhe poderiam oferecer. Tratava-se de uma interpretação poética e musical de envergadura universal, executada num cenário de sonho, animada com uma cativante variação de estilos e ritmos. A dança dos cisnes, a dança polaca, húngara, russa, espanhola. Tempo de valsa, allegro, allegro moderatto, allegro vivo.

Ao contrário da maioria dos seus colegas, tinha passado a melhor noite desde a sua chegada à União Soviética. Aconteceu naturalmente. Tchaikovsky constituiria assim o primeiro passo e a porta de entrada para a poesia e a música clássica russa e europeia.
___________________

RASSIA (1)

Eu fui a Rassia
Para ler poesia,
Cheguei no Outono,
O maldito nevoeiro
Que mudou o sentimento;
Acordei no inverno
Quando a terra,
A Ukraina inteira,
Não era beleza para sedução,

O mar de lágrimas, eu vi,
Deste povo que nunca chorou,
As vítimas isoladas
Porque justamente vitimadas,
O regresso doloroso, eu vi,
Desta gente que nunca partiu.

Eu fui a Rassia
Para ler poesia
Adorei Ecenin e Tsvetaeva
Pushkine e Akmatova
Em toda a mística e gratidão,
Em toda a dor e solidão,

Eu fui a Rassia
Onde a beleza de forma radiante
Acompanha a rudeza de gente arrogante
Ha...! Poltava!...
Ha...! Smolensk!...
Ha...! Tchornobyl!...
E as vossas lavras?
E as vossas lágrimas?
E Kaniev Tcherkassy?
E Taras Sevtchenko?

“Dumi moi...”
“Dumi moi...”


(Viagem pelo Dnepr/Kiev-Kaniev, Abril de 1989)
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Notas do autor:

(1) Rassia=Rússia; Ukraina=Ucrània;

Ecenin+Tsvetaeva+Pushkine+Akmatova=Poetas Russos do virar do séc.XIX/XX;

Poltava+Smolensk+Tchornobyl=Regiões e localidades Russas e Ucranianas, teatros de batalhas sangrentas e de tragédias humanas;

Tcherkassy+Kaniev=Região e localidade histórica e cultural ucraniana ligada ao maior poeta ucraniano de todos os tempos, Taras Sevtchenko [1813-1861]

“Dumi moi...”= Pensamentos meus...= expressao poética de Sevtchenko num poema da sua coletânea Kobazar, o Bardo.


[Fixação / revisão de texto / negritos / título e subtítulos: LG]

(Continua)
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Notas do editor:

(*) Vd. postes anteriores:

(**) 'Ventos de mudança' que se traduziam nas célebres expressões russas Glasnost (гла́сность, transparência) e Perestroika (Перестройка, reconstrução, reestruturação) introduzidas no vocabulário político dos russos, em 1985, pelo governo de Mikhail Gorbachev, num processo de reforma que conduziria em 1989 ao fim da guerra fria e ao desmantelamento da URSS.

7 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Meu Testamento


Quando eu morrer, me enterre
Em um túmulo
Em meio à estepe ampla
Na minha querida Ucrânia,
Em um lugar de onde os campos lavrados
E o Dnipro e suas margens íngremes
Pode ser visto e
Suas corredeiras rugindo ouvidas.
Quando se leva
O sangue do inimigo da Ucrânia
Para o mar azul profundo... eu vou embora
Os campos cultivados e as montanhas—
vou deixar tudo para trás e ascender
Para orar a Deus
Ele mesmo... mas até então
Eu não conheço Deus.
Enterre-me e levante-se, quebre suas correntes
E polvilhe sua liberdade
Com o sangue maligno do inimigo.
E não se esqueça de me lembrar
Na grande família,
Em uma família nova e livre,
Com uma palavra gentil e calma.

25 de dezembro de 1845

Pereiaslav

Taras Shevchenko. “Iak umru, para pokhovaite”


https://web.archive.org/web/20080501043219/http://www.shevchenko.org/Ukr_Lit/Vol01/01-04.html

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Tive médicos 0da Europa de Leste, imigrantes em Portugal há uns largos anos atrás, ucranianos, moldavos, romenos, russos... que foram meus alunos de saúde pública. Sei quanto foi duro para eles passarem o exame na Ordem dos Médicos, depois de aprenderem o português. A Fundação Calouste Gulbenkian na altura ajudou-os na preparação para o exame
... Enquanto isso trabalharam nas obras e nos campos... Vi as mãos de alguns duramente calejadas. Todos tiveram que voltar ao princípio. Vários ficaram por cá e estão a trabalhar no SNS.

Sei dar o devido valor ao testemunho
do Cherno Baldé... Que, apesar de tudo, guarda algumas boas recordações da Ucrânia...

antonio graça de abreu disse...

A mãe Rússia, a inefável Ucrânia. Também por lá andei,1981, 1992, 1995, esfusiantes e dolorosas passagens. Um baú de decepções com os homens, com o mundo. O Cherno sabe mais...

Abraço,

António Graça de Abreu

Antº Rosinha disse...

Em Bissau nos anos 84, 85 e 86 os militares soviéticos, que muitos eram ucranianos, formaram uma equipa de futebol de salão, que agora se diz Futsal.

E, embora sem grandes "conversas"aceitaram entrar em torneios maioritariamente organizados pela portuguesada (2 grandes empresas, mais de 150 trabalhadores) e por uma equipa guineense do Banco da Guiné.

Embora reservados devido a hábitos lá deles, eram bastante simpáticos, e no futebol eram duros de roer.

Curioso que recentemente Portugal foi finalista e campeão europeu contra a Rússia e a Ucrania tinha sido semi-finalista com os russos e perderam por um triz.

Foi um esforço brutal soviético em quase toda a África, menos nalgumas ex-colónias inglesas, para levar aquele continente, vizinho da Europa, a bom porto.

Trabalharam numa obra onde eu estive, dois russos, perto de Sintra, e encostaram-se a um sub-empreiteiro angolano, porque este tinha estudado na União soviética e batia o russo, e eles usavam-no precisamente para interprete, enquanto não se desenrascavam no português.

As voltas que o mundo deu! e não para.



Valdemar Silva disse...

Precisamente no momento em que estavam a ter atacadas as "Torres Gêmeas" em NY (11-09-2001), e por isso não vi em directo, fui com dois ucranianos, um russo e três romenos tratar da suas legalizações para trabalhar na empresa em que fui o responsável da secção de pessoal. Foram admitidos como indiferenciados no sector oficinal da empresa, e um dos ucranianos quando entregou preenchido o seu formulário, nome, filiação, naturalidade, o funcionário questionou 'mas que gafanhotos são estes?', e expliquei que ele escreveu em cirílico por ainda não saber escrever as letras do nosso alfabeto. 'Ciriquê?' perguntou funcionário, e como a assunto era melindroso não dei corda e o outro preencheu o documento.

Valdemar Queiroz

Fernando Ribeiro disse...

Kichinev é o nome em russo da capital da República da Moldova, mas a língua dominante no país não é o russo; é o romeno, que é uma língua latina, como o seu próprio nome sugere. O nome original da cidade é Chișinău, que se pronuncia aproximadamente "Quichinau". A Wikipedia chama-lhe Quixinau: https://pt.wikipedia.org/wiki/Quixinau.

O nome oficial do país é Moldova e não Moldávia, como em Portugal lhe chamam. A Moldávia é uma região que abrange não só a República da Moldova, mas também as zonas vizinhas na Roménia e na Ucrânia. No tempo do Império Otomano, esta região chamava-se Bessarábia.

Anónimo disse...

Caros amigos,

Muito obrigado a todos.

Neste preciso momento a Ucrânia está a ferro e fogo. O meu coração está dilacerado e lamento que gente boa e pacífica que aprendi a gostar e admirar, esteja a sofrer por motivos que os ultrapassam.

Choro por Ucrânia, mas compreendo a Rússia. É uma guerra entre irmãos da mesma mãe, a Kievski Rush. A Russia tem suas raízes enterradas terras ucranianas apelidada nostálgicamente de "Ukraína" a nossa terra distante, longínqua.

Não há palavras para expressar nem de justificar.

Cherno Baldé