(xv) Primavera, 1986: recuperação da boa disposição mental
Estava de novo apaixonado, o Chiquinho, desta vez, por uma mulher do Iémen do Norte (ou era do Sul?), sem hipótese de aproximação. Ela era casada e vivia com o marido num quarto isolado. Tinha tanta inveja do homem que queria matá-lo. Foi, talvez, a mulher mais bonita que os seus olhos alguma vez tinham visto.
Mas, ou era o sentido universalmente humano que o guiava ou era a tolice de um coração desorientado, pois no meio de tanta diversidade étnica e cultural, tinha que apaixonar-se logo por uma mulher árabe, com a carga de desprezo secular que estes beduínos do deserto nutrem pelos negros.
- Acorda, preto!.. - apetecia dizê-lo.
Era mais um daqueles amores platónicos, impossíveis, destinados a colmatar o vazio do seu coração. O frio agudizava o seu sentimento de solidão. Começou, assim, a criar o hábito de deambular sozinho pelos parques da cidade na secreta esperançaa de encontrar, numa viragem qualquer, a sua europeia de cabeleira reluzente, a promessa de um destino que o empurrava para o desconhecido.
No entanto, ainda tinha muitas questões sem resposta. Por exemplo, por onde a pegaria?... Pela mão, no braço ou por cima dos seus ombros?... Seria capaz de adivinhar seus sentimentos encarando os seus olhos azul-marinhos?... O que lhe diria, e como lhe diria?... Contar a verdade ou mentir descaradamente sobre a sua vida como faziam alguns colegas para melhor seduzir?... Na sua terra natal ouvira dizer que a mulher conquista-se com a mentira e mantem-se com a verdade. E para os europeus, seria o mesmo?... Tinha muitas duvidas e uma certeza, a certeza de que a amaria muito, dentro do seu coração.
Com a chegada da primavera, o Chiquinho começou também a recuperar a boa disposição mental e fez mesmo parte de um grupo de estudantes que, vestidos de trajes multicolores, ensaiavam a dança tradicional moldava para apresentar em palco, para mostrar a integração cultural dos africanos. Não resultou tão bem assim, tecnicamente falando, mas permitiu apertar e acariciar as partes arredondadas das colegiais ainda adolescentes, recuperando assim um pouco da sua jovialidade e amor próprio.
A sua amiga, a Vika, parecia gostar dele, mas nunca dizia nada, limitava-se a olhar para ele e a sorrir. Também ele sorria, dividido entre o desejo de seduzi-la e o medo de enganá-la. Pode-se mentir a quem se ama?... O Chiquinho ainda vivia no mundo em que um homem era incapaz de transformar o mundo com o enredo das palavras dúbias, enviesadas, entorpecentes como a morfina.
(xvi) Finais de junho de 1986: o Chiquinho, aspirante comunista e de altos valores, não entendia a atração dos africanos e dos próprios soviético pelo Ocidente
Em finais de Junho de 1986, terminaram os exames e muitos estudantes foram a Moscovo tratar de vistos nas embaixadas para viajar aos países do Ocidente. Ele recebeu o convite de um irmão que era estudante em Lisboa, mas ainda não queria afastar-se muito do universo que queria integrar e também da posibilidade de aproximar-se da Vika. Todavia, a menina com os seus cabelos cor de trigo, não correspondia muito à imagem da europeia dos seus sonhos.
Adiou a visita para o ano seguinte. Entretanto a expetativa da viagem aos paises do Ocidente fazia furor entre os estudantes estrangeiros, particularmente nos congoleses que sonhavam com as luzes de Paris e não escondiam o seu entusiasmo. Lisboa era o destino preferido dos guineenses e angolanos.
O Chiquinho, aspirante comunista e de altos valores, não compreendia porque razão os estudantes eram tão atraídos pelo Ocidente, atitudes que ele considerava como subproduto da mentalidade neocolonial e servil. Para ele, era mais importante a apropriação da doutrina marxista-leninista, em especial o pilar da economia política que encerrava as premissas para a verdadeira libertação dos povos do terceiro mundo.
Mais surpreendido ficou ainda quando viu a avidez com que os próprios soviéticos consumiam os mais insignificantes produtos trazidos do Ocidente pelos estudantes em contrabando, bugigangas de um regime em decadência.
Afinal, as férias dos estudantes escondiam outras realidades que, não sendo políticas nem filosóficas, contribuíam para minar os alicerces de base sovietica e comunista.
(Continua)
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Nota do editor:
(*) Último poste da série > 24 de fevereiro de 2022 > Guiné 61/74 - P23023: Memórias do Chico no Império dos Sovietes (Cherno Baldé) - Parte III: Em Kichinev, Moldávia... Pôr-se em pelota, na inspeção médica perante um mulher?!... Mostrar tudo?!... Subahaanallai!...
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