1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Junho de 2019:
Queridos amigos,
Felizmente, têm evoluído nas últimas décadas os trabalhos de investigação sobre a presença portuguesa na chamada Senegâmbia, há que destacar as pesquisas e estudos de Maria Emília Madeira Santos, Eduardo Costa Dias, José da Silva Horta. Nesta obra coordenada pelo professor Luís Albuquerque, o seu último grande trabalho, Maria Emília Madeira Santos debruça-se sobre os lançados na costa da Guiné, define-os com rigor, mostra a natureza do seu comércio, exemplifica com alguns lançados que tiveram prosperidade, dá voz aos dois principais autores que registaram esta presença e que foram Francisco Lemos Coelho e André Alvares de Almada. Foi sol de pouca dura, a concorrência inglesa, francesa e holandesa subtraiu-lhes a influência. Mas fazem parte do nosso património histórico pois não há estudo sobre a presença portuguesa que possa iludir estes pontas de lança internacionais, intérpretes de linguagem diversa, trocadores de produtos e muito mais, aproveitavam-se da fragilidade da presença da Coroa, mestiçaram-se e porventura estão entre os principais responsáveis por se ter falado português desde os séculos XV e XVI na Senegâmbia.
Um abraço do
Mário
Um pouco da Guiné na obra de Luís de Albuquerque (2)
Beja Santos
Em 1989, as Publicações Alfa deram à estampa o maior empreendimento editorial da responsabilidade desse grande historiador dos Descobrimentos que foi Luís de Albuquerque, falecido em 1992. Foram seis volumes que abonam a sapiência deste investigador e revelam a sua portentosa capacidade de coordenar projetos científicos de grande envergadura. É precisamente no segundo volume que Luís de Albuquerque e prestigiados colaboradores referem a contextualização histórica do primeiro período da presença portuguesa na Senegâmbia.
A Terra dos Negros possuía ingredientes pouco convidativos à fixação de populações, o Infante D. Henrique concluiu que a presença portuguesa exigia dois elementos básicos: boa comunicação com os chefes locais, com o repúdio a atos hostis e a constituição de empórios ou feitorias que dessem apoio a atos de missionação (no caso da Guiné se revelaram dececionantes). Como escreve na obra a investigadora Maria Emília Madeira Santos, uma boa parte das atividades económicas e de relacionamento deveu-se não às iniciativas do Coroa mas a um punhado de aventureiros que passou à História com o nome de “lançados”. Observa a investigadora que desde o princípio do século XVI, pioneiros portugueses registaram presença nesta região entre o cabo Verde e a Serra Leoa (mais ou menos o território que ficará conhecido como Senegâmbia Portuguesa), ignoravam a subordinação ao governador e às autoridades estabelecidas na ilha de Santiago de Cabo Verde. A Coroa tinha uma prioridade: povoar as ilhas de Cabo Verde, escala estratégica para a navegação atlântica, na míngua de povoadores estimulou a vinda de escravos. E assim foi decidido que podiam os vizinhos da ilha de Santiago navegar com os seus navios e mercadorias nesta Senegâmbia, mas apenas lhes era permitido movimentar os produtos do arquipélago, que se reduziam, naquela época, a algodão e cavalos. E para proteger Cabo Verde proibia-se rigorosamente a fixação de portugueses naquele ponto da costa ocidental africana. Mas houve vozes insubmissas, homens de diversos estratos sociais, aventureiros, renegados e cristãos-novos que se lançavam na terra firme, estabelecendo ali residência e ocupantes de comércio de produtos vários, isto sem prejuízo de manter relações comerciais com as ilhas. Ficaram conhecidos pelo nome de lançados, tangomãos, tangomaus ou tangumans. Havia judeus neste grupo, expatriados a partir de 1496. Segundo o Capitão Francisco de Lemos Coelho, que ali viveu e comerciou demoradamente, os judeus portugueses lançados na costa da Guiné “eram assaz vituperiados dos mais moradores e negros da terra e pagavam mais tributos que os brancos; e tudo sofriam por viverem em liberdade em sua lei”. Havia entre estes lançados gente rica. Foi o caso de Diogo Henriques de Sousa, que, no início do século XVII, se estabeleceu no porto de Guinala, não longe do Rio Grande, terra dos Beafadas. Outro exemplo de lançado que aqui enriqueceu foi o de Sebastião Fernandes. Viveu na povoação de Guinala com muitos navios e cabedal, foi para Cacheu com 18 embarcações onde levou 1800 negros com muito marfim e algum âmbar.
A investigadora cita o Capitão André Alvares de Almada quando este escreveu acerca dos muitos negros que “sabem falar a nossa língua portuguesa e andam vestidos do nosso modo. E assim muitas negras ladinas, chamadas tangomãs, porque servem os lançados. E estas negras e negros vão com eles de uns rios para os outros e à ilha de Santiago e a outras partes”. Havia dois tipos de acusações que impendiam sobre os lançados: faziam concorrência ao resgate de embarcações portuguesas, eram apelidados de ladrões, traidores; e viviam fora da alçada da Igreja, dedicados ao tráfico da escravatura durante vinte ou trinta anos, sem se confessarem. Os lançados para regressar ao reino tinham que pagar metade dos bens que traziam, eram igualmente obrigados a entregar dez cruzados ao Hospital de Todos os Santos de Lisboa. Mais diz a investigadora que os lançados ocupavam-se no comércio de troca entre mercadorias europeias e produtos africanos, mercadorias vindas da Europa em grande variedade. Em troca, compravam couros, marfim, cera, goma, âmbar, algália, anil, ébano, escravos e ouro. Fixavam-se de preferência na costa ou nas margens dos rios, tudo faziam para viver na melhor convivência com os reis africanos.
Esta atmosfera de resgates ir-se-á alterar com a presença dos franceses, primeiro, ingleses e holandeses, depois, a partir do terceiro quartel do século XVI. Até aí, está historicamente comprovado, no cabo Verde e angra de Bezeguiche, os portugueses comerciavam com os jalofos islamizados, e umas léguas abaixo no porto de Recife, aqui viviam os portugueses e os brancos “filhos da terra”. A presença judaica ganhou enorme expressão, são estudos efetuados por Eduardo Costa Dias e José da Silva Horta, todo o comércio no porto de Ale e no porto de Joale. O rio Gâmbia, navegado pelos portugueses desde o século XV, quando foi subido até Cantor por Diogo Gomes, podia navegar-se com navios com 80 a 90 toneladas por 130 léguas. Aqui se contatavam os Mandingas que falavam da cidade de Tombuctu e das feiras de ouro. Francisco Lemos Coelho, que exercia funções em Cabo Verde e conhecia palmo a palmo a costa da Guiné deixou-nos relatos memoráveis desta presença portuguesa no comércio do Gâmbia e da Senegâmbia em geral. A concorrência aos portugueses foi devastadora, tornou-se sumamente difícil o controlo dos navios negreiros saídos para as Américas. Cacheu tinha uma fortificação de pau-a-pique que só veio a ser substituída por uma fortaleza de pedra em 1641 com o governador Gonçalo Gamboa de Ayala, a praça passou a ter capitão-mor, oficiais de justiça e uma guarnição militar. Nem tudo era mantida nas melhores condições, como escreveu Francisco Lemos Coelho em 1669: “Consta a povoação de Cacheu de duas ruas, uma posta ao longo do rio, que chamam a Direita, e outra por detrás, que chamam de Santo António; do princípio está a modo de um bairrozinho, que chamam Vila Fria, em a qual primeira casa é de Sua Majestade em que assiste o capitão-mor, que não tem mais forte, que o nome, está a dita casa com um cerco de mangues que é a muralha, a que chamam tabanca, a casa é de adobes, coberta de palha com um grande terrado em que está a fazenda por amor do fogo, que se chama combete, e semelhante a esta são todas as da povoação, que tem pela banda do mar uma plataforma com camisa de pedra e cal em que está a artilharia que lhe põem capitães-mores…”
Os lançados judeus tinham uma relação especial com a Flandres, dado que certamente ali tinham familiares e amigos expulsos de Portugal no reinado de D. Manuel.
Os lançados em geral acabaram, a partir do final do século XVI, por estar menos ligados aos portugueses. Viviam em núcleos mais ou menos isolados, sem lei, sem justiça e sem religião, estabeleciam relações de convivência com as populações locais, pagavam mais ou menos diretamente o acolhimento e a permissão de comerciar. Com os europeus entabulavam ligações comerciais de acordo mútuo que os tornaram intermediários entre a Europa e regiões dos rios da Guiné e Serra Leoa, tornando-se pontas de lança internacionais, este papel só foi possível desempenhar pela aceitação local e pela fraqueza do poder da Coroa Portuguesa na região.
Cena de uma aguada. Representa um dos variados aspetos do relacionamento entre os europeus e os africanos. Gravura extraída da obra setecentista “Relation du voyage de Mr. De Gennes au Detroit de Magellau”
Ilustração extraída da revista “O Mundo Português”, n.º 6, junho de 1934
____________Nota do editor
Último poste da série de 28 DE FEVEREIRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23041: Notas de leitura (1424): "Portugal no Mundo"; Publicações Alfa - Um pouco da Guiné na obra de Luís de Albuquerque (1) (Mário Beja Santos)
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