domingo, 27 de fevereiro de 2022

Guiné 61/74 - 23037: Memórias do Chico no império dos Sovietes (Cherno Baldé) - Parte V: No campo de férias de um Sovkhoze, a apanhar maçãs, damascos, abóboras... Um 'desastre', que acabou sem diploma de mérito nem contrapartida financeira


Cherno Baldé, em Kiev, Ucrânia, 1989


Memórias do Chico no Império dos Sovietes, 1985-1990
(Cherno Baldé) - Parte V:  No campo de férias de um Sovkhoze, a apanhar maçãs, damascos, abóboras... Um 'desastre', que acabou sem diploma de mérito nem  contrapartida financeira


por Cherno Baldé (*)


(xvii) No campo de férias de uma Sovkhoze

Aqueles que ficaram [, na Moldávia, durante as férias de verão de 1986, como Chiquinho] (*) foram convidados para integrar as brigadas de trabalho de campo numa Sovkhoze (propriedade agrícola do Estado) (**).

Logo no primeiro dia levaram-nos para a colheita de maçãs. Mal sabiam do erro que tinham cometido. A fruta estava bem madura e bem saborosa, de diferentes cores e tamanhos numa área extensa. Os estudantes assaltaram as árvores como um bando de macacos. Depois do magistral banquete, deitaram-se à sombra. 

Quando os camiões que vinham para o carregamento da fruta chegaram,  ainda nem metade do trabalho estava feito e,  pior ainda, o trabalho não tinha servido de nada, pois no dia seguinte toda a colheita tinha sido deitada fora por causa das manchas pretas provocadas pela brutalidade dos desprevenidos trabalhadores, oriundos essencialmente de países tropicais. As maçãs tinham-se mostrado ser muito mais frágeis do que as frutas que a maioria conhecia na sua terra.

No segundo dia, tentaram corrigir o erro e mandaram-nos para uma plantação de apricots (damascos). Disseram-lhes que no fim, o pagamento seria feito mediante a quantidade de caixotes da fruta que tivessem enchido. A colheita durou alguns dias e tudo parecia bem encaminhado, mas a partir da segunda semana, já cansados da rotina, começaram a procurar uma estratégia de contornar a situação.

Foi um estudante de Bangladesh que deu o mote, e  que rapidamente foi adotado pelo resto do grupo. Colocaram ramos da árvore por baixo dos caixotes, completando a parte de cima com a fruta vermelho rubra. O rendimento tinha aumentado rapidamente, enchendo muitos camiões. Só descobriram o logro no dia seguinte.

Em retaliação desta aldrabice, o grupo foi desmantelado, os seus elementos foram dispersos, engrossando outras equipas. O Chiquinho continuou na companhia do Amin, o genial rapaz de Bangladesh que tinha mostrado claramente que não tinha aterrado naquela terra para se transformar num Kolkhoznik (trabalhador de colectividade agrícola).

Para acabar com a brincadeira, mandaram-nos para a poda de um extenso campo de pés de uvas recém-plantadas. Com o sol a queimar as espinhas no campo aberto, não tardou muito para que a maioria se despistasse à procura de água e de sombra. Quando os vieram buscar, ao fim da tarde do primeiro dia de trabalho, ainda não tinham avançado vinte metros ao longo das fileiras que se estendiam por mais de um quilómetro de comprimento.

Do campo de uvas, foram enviados para a colheita de abóboras verdes, mas os resultados não eram muito melhores, pois os estudantes,  esfomeados, comiam a maior parte das abóboras que encontravam e que eram destinadas aos animais e à indústria da conserva. 

(xix) Valeu-lhes a bola...

No fim deste ciclo de insucessos, acabaram por ser dispensados do trabalho de campo, sem diploma de mérito nem contrapartida financeira.

O campo de férias prolongou-se ainda por mais algum tempo. Dispensados do trabalho, depois de terem demonstrado aquilo que não sabiam fazer,  que era trabalhar, criaram uma equipa de futebol para passar o resto dos dias que lhes restavam antes do regresso a Kichinev onde os esperava a afetação para as cidades onde deveriam continuar os estudos (, que no caso do Chiquinho seria Kiev, capital da Ucrânia,  onde frequentou a universidade estatal nos anos letivos de 1986/87, 1987/88, 1988/89, 1989(1990, tendo se formado em economia; regressou da então URSS em 1990).

[Fixação e revisão de texto / negritos / título e subtítulos: LG] 

Texto original: Poste P8870 (***)

(Contimua)
___________

Notas do editor:

(**) Sovkhoze (palavra russa) : s. m.  Na ex-U.R.S.S., grande herdade modelo do Estado, com a finalidade de exploração piloto. (Fonte: Dicionário Priberam da Língua Portuguesa).  

Também havia o kolkhoze  (palavra russa)  s. m. Na ex-U.R.S.S., cooperativa agrícola de produção, que detinha perpetuamente as terras que ocupava e a propriedade colectiva dos meios de produção.(Fonte: Dicionário Priberam da Língua Portuguesa)

(***) Vd. poste de 8 de outubro de 2011 > Guiné 63/74 - P8870: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (28): De Bissau a Kiev ou o percurso de um ex-rafeiro (Parte IV) (Cherno Baldé)

3 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Cherno: tenho ideia que as tuas memórias do tempo de estudante bolseiro na URSS acam


a acabam aqui nas férias de 1986 na Moldávia... De Kiev restam fotos e poemas, que vou publicar bem como um comentário ou outro que fizeste... Certo ?

Uma tragédia imensa o que está a acontecer... E eu percebo que tenhas o coracão dilacerada... A Ucrânia tambem foi tua pátria entre 1986 e 1990. Devez lá ter feito amigos e amigas...

Saúde e paz. Luís

Tabanca Grande Luís Graça disse...

E o ensino? Era em russo, claro, não em ucraniano...No tempo do Franco em Espanha, depois da guerra civil, os bascos e catalães também eram proibidos de falar a sua língua.

Anónimo disse...

Caro Cherno , irmão dos combatentes da Guiné:

Adoro ler sobre o teu percurso, especialmente, sobre a tua vida académica por terras da Ucrânia. Vai daqui um grande abraço para ti.

Carvalho de Mampatá