sexta-feira, 24 de julho de 2020

Guiné 61/74 - P21195: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (12): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 1 de Julho de 2020:

Queridos amigos,
Annette Cantinaux está a entusiasmar-se com a figuração que lhe foi proposta por aquele portuga que pretende escrever um romance contando com um amor à distância. O diabo tece-as, a realidade supera a ficção, besuntam-se dos mesmos condimentos, e atrapalham-se numa narrativa que está permanentemente a pôr de sobreaviso o leitor, a intérprete belga pede mais informações sobre o território da guerra, o amoroso português ganha balanço, vai aos escaninhos da memória, socorre-se dos mapas, conta-lhe os primeiros meses, já se adaptou, patrulha, vai buscar comida, leva e traz doentes, conheceu o primeiro foguetório, identifica por onde passa a guerrilha, os pesados tormentos estão prestes a acontecer.
Entretanto, e ele não dá por isso, a malha afetiva estreita-se, os dias são cheios, ainda consegue ler e ouvir música, e tudo quanto vai contando à intérprete belga acende-se aos 50 anos, ganha um outro olhar, ele sente-se encadeado por tudo quanto a amorosa belga lhe pede para contar.
É uma lamechice, mas foi assim que aconteceu, como se vai ver.

Um abraço do
Mário


Esboços para um romance – II (Mário Beja Santos):
Rua do Eclipse (12): A funda que arremessa para o fundo da memória

Mário Beja Santos

Chère Annette, estou em alvoroço, e com justificação, já tenho a viagem marcada e a certeza de que não tem impedimentos profissionais naquele fim de semana de três dias, feriado na Bélgica na sexta-feira, tive em conta o facto, parto quinta-feira à tarde, as minhas reuniões prolongam-se por segunda e terça-feira, regressarei na noite desse dia. O seu entusiasmo contagia-me, percebo perfeitamente que queira saber-se situar na topografia e até na toponímia daquela minha guerra. Tem aí a carta da Guiné, e em tamanho reduzido aquele território que era militarmente designado por Sector L1, gravitando à volta de Bambadinca. O Cuor era o respaldo desta sede do batalhão, para lá do Geba, o principal rio da Guiné, tem o nome de Geba ou Xaianga. Veja com atenção, tem também aí imagem de uma larga linha bem sulcada de laterite, vai desde a rampa do aquartelamento de Bambadinca e desce numa linha perfeita até ao porto. Aí, eu faço a cambança numa canoa e chego a um caminho lamacento, muitas vezes esburacado (é preciso em permanência estar a enchê-lo de pedras e a alisar a superfície, para que o Unimog 411 ou o Unimog 404, as duas únicas viaturas de que eu disponho, não resvalem para o arrozal, quando isso acontece é o cabo dos trabalhos, pôr o guincho a funcionar para voltar a pôr a viatura no trilho), é a “estrada” de e para Finete, mais de dois quilómetros tormentosos, até chegar a um destacamento de milícias e de população civil de etnias Mandinga e Balanta. Daqui se parte para Missirá, sobe-se uma encosta rochosa, depois é uma linha igualmente perfeita até Canturé, muitos anos atrás aqui se plantaram, quase numa geometria perfeita poilões em igual distância, não houvesse guerra e era um completo desfrute ouvir-se ali bem perto o rumorejar das águas do Geba estreito, como vê na carta o Geba adelgaça-se, é uma perfeita tripa, navegar até Bafatá só em embarcações de calado reduzido.

Adoro esta viagem, e gosto muito de Canturé, passo por aqui praticamente todos os dias quando vou ou venho de Mato Cão, local onde tantas vezes chegamos para montar a segurança dos barcos, há atrasos enormes, enganos nas tabelas das marés, podemos chegar às oito da noite e estamos aqui dez horas a fio, já me habituei a levar no bornal umas bolachas e uma bebida achocolatada para acalmar o estômago. Há em Canturé o que eu julgava ser um esplendoroso laranjal, aqui muitas vezes nos dessedentamos, julgava que se tratava de umas laranjas horríveis, com uma invulgar acidez, só muito mais tarde é que soube que eram toranjas que cumpriram o seu dever, mitigavam a nossa sede. Em Canturé vamos por uma picada que na época das chuvas é um perfeito lago, o abastecimento é um inferno, o problema será ligeiramente ultrapassado quando recebermos um Sintex, uma embarcação com um motor, monta-se segurança pela margem até um ponto chamado Gã Gémeos, aí estará um Unimog que rapidamente se encaminhará para Missirá, passando por Sansão. Tenho ao serviço dois condutores, gente exemplar, e de vez tem de vir um 1.º Cabo Desempanador, o último que cá esteve não gostou muito da intensa flagelação, estava encolhido no abrigo, crepitavam os cartuchos quentes que saltavam da metralhadora, queimou-se ligeiramente, para além daquele sobressalto que é ouvir aqueles estrondos e estar sempre à espera do pior. Quando o levei a Bambadinca, avisou-me que da próxima vez vem ao amanhecer e parte depois do almoço, não quer mais sustos.

Tem aí o Cuor intenso, já conheço a três quintos, patrulho até à Ponte de Gambiel, e como lhe disse, é um paraíso aquele palmeiral frondoso, só dói é ver destruída uma bela ponte em madeira que noutros tempos nos podia levar até à povoação de Geba e depois a Bafatá. Um outro pormenor, chère Annette, é o “passeio” de Sancorlã até Salá, é uma floresta hermética, desapareceram vestígios da presença humana, as copas das árvores parecem constituir formidáveis abóbadas por onde entram nesgas de luz, nunca me fora dada a conhecer este tipo de vegetação onde se misturam o piar das aves, o restolhar de animais cujo nome desconheço, alguém diz que é da família do porco, ou mesmo javali, corre à distância, os símios aparecem e desaparecem, talvez intrigados por aquele tipo de incursão em território sem vivalma. Ouvem-se tiros de caçadores, a uma boa distância e alguém me informa que é para lá do Gambiel, já no regulado de Mansomine, ou então para os lados de Quebá Jilã, aí habita gente que apoia o PAIGC. Percorro tudo à volta do rio Gambiel, não se pode atravessar o rio Passa, é profundo, foi-me dado ver, só trazendo botes, e então entrava-se em território onde tudo é inesperado. Mas o Cuor vai muito até cá abaixo ao Geba, e eu aproveito as idas a Mato de Cão para percorrer à volta do rio de Biassa, não há indícios de presença humana. Indícios encontro-os nas margens do Geba estreito em frente àquela enorme bolanha onde Annette vê o nome Nhabijão, com várias designações, ali perto, veja o nome Samba Silate, foi a maior tabanca de todo o Leste da Guiné, as populações fugiram seja para a proteção portuguesa, seja para os confins do rio Corubal, encontro pegadas e já descobrimos duas canoas metidas no tarrafo, foram destruídas, deu-se mensagem a quem vem de Madina e Belel, e atravessa o Geba para trocar produtos e obter informações. Mais acima, no Geba estreito, como se fosse em frente a Canturé, do outro lado há uma povoação chamada Mero, consta que é aí que as populações do PAIGC e que vivem no Cuor se abastecem, o que eu encontro do lado de são bostas de vaca, carregadores de pistolas-metralhadoras e granadas de bazuca. Isto significa que as colunas de abastecimento trazem esquadrões armados, ou coisa parecida.

Não a incomodo mais com estes dados sobre o local onde vivi e me fiz homem. Estou muitíssimo feliz por a ter conhecido e por nutrir por si esta crescente ternura e necessidade da sua presença, telefonar-me constantemente, saber do meu dia-a-dia, falar-lhe dos meus projetos e cimentar uma relação tendo por fio condutor uma guerra de guerrilhas que a Annette há escassos meses nem sabia ter existido. Parto para Bruxelas para contemplar o seu sorriso, vivo o entusiasmo de um cinquentão que parece ter descoberto alguém que também precisa de companhia e de muita ternura. Temos igualmente este ponto em comum que é o prazer de calcorrear Bruxelas, fiquei muito contente quando me disse que no Botanique há agora uma exposição sobre transatlânticos decorados com arte Déco, que temos no domingo de manhã um pequeno concerto na Igreja dos Mínimos, cantatas de Bach, e que vai fazer em sua casa waterzooi, que tanto aprecio.

Disponha do nosso tempo neste fim de semana prolongado. Cumpro a promessa de levar jornais e revistas, o seu vinho do Porto, tudo farei para aí desembarcar com pastéis de nata não a escaldar, mas frescos. Agradeço a Deus tudo quanto me dá, é esse seu sorriso que me faz dardejar a esperança, sinto que encontrei alguém com quem posso contar e a quem posso oferecer o meu tempo, os meus sonhos, o meu futuro. Bien à toi, Paulo.


 © Infogravuras Luís Graça & Camaradas da Guiné

 Eu com Madiu Colubali à minha direita e abraçando o régulo Malam Soncó

Imagem da Bambadinca do meu tempo, a meio, do lado direito, o edifício dos CTT, depois comércio e ao fundo o porto e na linha do horizonte o Cuor.
Uma bela fotografia do meu querido amigo Jaime Machado, já inserida no blogue.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 17 de julho de 2020 > Guiné 61/74 - P21178: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (11): A funda que arremessa para o fundo da memória

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