quinta-feira, 23 de julho de 2020

Guiné 61/74 - P21194: Manuscrito(s) (Luís Graça) (188): Ficarão as moscas quando eu morrer


Selfie. © Luís Graça (2011)


Ficarão as moscas quando eu morrer


Aumento o som do aparelho dos ouvidos
só para captar as vocalizações dos golfinhos.
A vinte mil léguas submarinas dos meus tímpanos doridos.

Pobre de mim se fosse um golfinho bebé
com uma prótese auditiva,
e andasse perdido pelo mar largo e profundo.
Ou fosse apanhado pelos corsários de Salé.

Não creio que a minha mãe, em situação tão aflitiva,
me pudesse valer, encontrar e resgatar neste mundo.
Muito menos a santa casa da misericórdia
a quem cabe remir os cativos.

Imprevidente, devia ter trazido o sonar,
o chapéu de sol, e o gel,
e o livro do código fonético internacional.
Ah!, e o sextante, e 
o útero materno,
que quem vai para o mar 
avia-se em terra.
Mas não faz mal,
na Mauritânia Deus é grande 
e o oceano ainda é maior.

Terei muito que esperar pelos golfinhos,
que andam atrás das traineiras de sardinhas.
Fazem pela vida os golfinhos
e os pescadores de sardinhas,
ah!, e os comedores de sardinhas.

Eu arrisco a pele, ou melhor, o cancro de pele.
Mas já não tenho pernas 
para bater a costa de lés a lés.

Estão sentados à mesa da esplanada,
os comedores de sardinhas,
à espera que chegue o peixeiro.
São, de resto, muito mais peixeiros do que carneiros.

Não sei se os golfinhos comem sardinhas, grelhadas,
dizem que eles preferem o choco frito
com sumo de limão.

Como os corsários, afiam as facas
e os dentes de marfim, já muito gastos,
os comedores de sardinhas.
Aguardam pela iguaria que lhes sabe pela vida.

Há quem troque a vida por um bom prato de sardinhas,
ou por um saque, 
que ainda é bem melhor.

Há naus que levam escravos 
da Guiné para o Novo Mundo.
E regressam, ao Velho, 
com quinquilharia de ouro e prata.
E um pó branco a que chamam açúcar
(ou, em árabe, as-sukkar)

Contam os cêntimos os pescadores, na lota.
E já ninguém grita, de punho erguido,
que a luta continua.
Chui!, ninguém dá mais.
Fecha-se a porta à morte
ao dobrar o cabo Branco atrás do goraz.

O preço justo, camarada da companha ?
É o da lei da sobrevivência,
dizem os caçadores de escravos.

Pagam-lhes, aos "dealers",
com cavalos brancos, puros sangues árabes,
imunizados contra a peste equina africana,
diz a propaganda.
Afinal, a vida tem muito mais de arte & manha
do que de ciência.


Não há epistemologias que nos salvem,
muito menos a exata epidemiologia do nascer e do morrer
em África, com o Atlântico pelo meio,
a estrada da globalização à minha frente,
e os corsários ingleses e holandeses atrás de mim.

Em Mogador fui senhor,
em Essouira fui cativo.
Do nascer ao morrer vai um tiro de obus.
Infeliz, já nasceu, catrapus, já morreu.

Ninguém escolhe pai e mãe.
Nem os saarauís o deserto do Sara,
nunca mais ouvi falar deles, pobres coitados,
foram extintos com a partilha do planeta.
Confesso que simpatizava com eles,
cheguei a dar-lhes batatas da minha terra
em troca dos gorazes do mar deles.

Bolas, também não trouxe comigo a tabela
das equivalências. Nem a máscara.
Dizem que aqui o uso de máscara é obrigatório.

Mas, afinal, quanto pesa uma alma ?

Nem sei se a balança de pesar almas
estará devidamente calibrada.

Até no "hall" de entrada do purgatório
devia haver um aferidor (oficioso) de pesos e medidas.

Quantas toneladas de corpos
serão precisas para salvar uma alma ?,
perguntava o padre jesuita António Vieira,
nos engenhos de açúcar do Maranhão.
E quanto vale um império, em corpos e almas ?
Ou um herói ?

Que penosa essa cena
do Santo António a pregar aos golfinhos,
como se fossem predadores do topo da cadeia alimentar.

Da peste, da fome e da guerra… e do santo da nossa terra,
Libera nos, Domine!
Foi pregar para outros mares,
disputado entre Lisboa e Pádua.
Santos da casa nunca foram milagreiros.

Dos comedores de sardinhas, agora desconfinados,
sigo o rasto olfativo:
estão sentados à mesa da esplanada
num dos bairros populares, ribeirinhos,
salvos do camartelo camarário,
e por fim reordenados.

Mas será que as sardinhas já estão gordinhas ?
Há sempre uma dúvida existencial,
para o "chef", agora em "lay-off":
serão portuguesas ou espanholas, 
frescas ou congeladas ?

Vão-se os anéis, opulentos, do real erário,
ficam os magros dedos da saúde pública
e as luvas descartáveis.

Cega, surda e muda,
segue em procissão a santa senhora da saúde,
colina acima, rua abaixo.
Não vai segura, nas vielas da Mouraria,
por prevenção vai mascarada.
E queixa-se de que não ganha para o desinfetante.

Também não vale a pena gritar "Aqui-d'el-rei!",
que a corte já seguiu, lesta, para Santarém,

a toque de caixa.
Em caso de peste (de que Deus nos livre!),
aplique-se sempre o regimento:
"Meninos e meninas, chichi e cama!".

Em fila, os comedores de sardinhas,
em mesas intercaladas,
uma sim, outra não,
por causa do PPC, o processo da pandemia em curso.

Há um guarda-mor da saúde em cada porta da cidade,
a pôr carimbos: "Clean & Safe".
Por causa dos turistas do Mar do Norte que são fóbicos,
e temem que se acabe o desinfetante.

Não há moral na história, escrita ou por escrever,
de Salé à Guiné,
só os golfinhos há muito que não conhecem fronteiras
nem respeitam a zona económica exclusiva
nem as quarentenas 
nem sequer os cercos sanitários.

Gosto do internacionalismo proletário dos golfinhos,
velozes, roazes, vorazes.

Tenho pena que não sejam mais solidários.

Golfinhos e cachalotes de todos os mares, (re)uni-vos.
Não sei se eles entenderão a velha palavra de ordem,
outrora verdadeira declaração de guerra contra Neptuno:
uniform november india
victor oscar sierra.


São livres mas indefesos, 
temem as redes dos pescadores
como os chimpanzés do Bóe
temem os caçadores furtivos
e os negros os navios negreiros
e as baleias os arpões dos baleeiros
e os tubarões os cortadores de barbatanas.


No fim, perco o rasto aos golfinhos
já ao largo das Berlengas,
no regresso a casa,
e eu próprio me perco no mar da meia via,
a meio da minha história de vida.

Afundo-me com a minha nau de quimeras,
entre os restos de vírus e bactérias, em saldo,
da última pandemia.

Seria reconfortante saber
se os heróis vão para o olimpo,
e os sociopatas para o inferno.
Mas que sei eu do além ?! 
E sobretudo da justiça escatológica ?!

Regressam os pescadores a Peniche, à luta, à lota.
Há um golfinho que dá à costa, exausto, já cadáver.

Na mesa da esplanada ficam as cabeças e as espinhas
das sardinhas.
E as moscas.

Ficarão as moscas quando eu morrer.


Luís Graça

Lourinhã, Praia da Areia Branca, 19 de julho de 2020,

o ano da pandemia de COVID-19
___________

Nota do editor:

Último poste da série > 6 de julho de 2020 > Guiné 617/74 - P21143: Manuscrito(s) (Luís Graça) (187): Tabanca de Candoz, entre o pôr do sol e o nascer da lua cheia...

14 comentários:

Anónimo disse...

A vida. As sardinhas . As moscas.
As moscas?
As moscas!

Vivi.

Um abraço do J.Belo

Tabanca Grande Luís Graça disse...

José, a poesia não deve tirar o apetite a ninguém. Muito menos aos comedores de sardinhas. E muito menos ainda a quem vai comer sardinhas este fim de semana...

De qualquer modo, o pior o das sardinhas é o cheiro, as espinhas e... as moscas. Desde o pequeno original, não há bela... sem senão.

Os seres humanos, em geral, e os portugueses , em particular, nunca veem o essencial (as sardinhas), mas o acidental (as moscas).

O Alexandre O'Neil diria isto de maneira mais fina, cruel e sarcástica do que eu, que sou um aprendiz da poesia de escárnio e mal-dizer.

Será que o cheirinho das sardinhas da Tabanca da Lourinhã chega aí à Tabanca da Lapónia ?...

Um abraço, Luís

Anónimo disse...

Caro Luís

As moscas poéticas do meu existencial (m’ai nada!) comentário têm mais a ver com a VIDA e os seus odores do que com as saborosas sardinhas.

Ps/ Quando se acompanham rebanhos de mais de mil renas ,este odor envolvente eleva-nos o espírito a luxuriantes êxtases...poéticos.
E as moscas (há volta da “substância”!)tanto existem em alguns comentários como também nas curtas 3 semanas do Verão Árctico.

Mais um abraço do J.B.

Antº Rosinha disse...

Coitadas das moscas no tempo da sardinha para três, nem espinhas nem cabeças sobravam, as moscas lerpavam!

Agora é o que se vê, nem O'Neil arranjaria inspiração pois só ficavam as moscas.

Tabanca Grande Luís Graça disse...

... Eu queria dizer: "Desde o PECADO original, não há bela... sem senão"...

As gralhas estão-nos sempre a pregar partidas. Aliás, cumprem o papel para que foram feitas.

E já que falamos de O'Neil, fica aqui uma sugestão poética:

"Portugal", dito pelo ator Rui Spranger:

https://www.youtube.com/watch?v=dZvS7Po3v6g

Tabanca Grande Luís Graça disse...

E falando de Salé, no noroeste de Marocos...

Outrora uma república autónoma famosa, no séc. XVII, pelos corsários que ali se refugiavam e a governavam...

Foi oi uma importante base dos corsários da Barbária, de onde partiam a maior parte dos ataques contra a costa portuguesa e os arquipélagos das Canárias, Madeira e Açores, além de expedições para locais tão longíquos como o norte da Península Ibérica e as Caraíbas.

Para saber mais:

https://pt.wikipedia.org/wiki/Sal%C3%A9

Anónimo disse...

As patologias do foro psiquiátrico são usadas,e abusadas,na Escandinávia por muitos juristas na procura de ilibar,ou pelo menos menorizar,
atos praticados pelos arguidos.
Especialistas em Psiquiatria têm vindo a desenvolver alguns interessantes métodos de análise rápida,em fase processual primária,quanto a quais dos arguidos serem verdadeiros doentes ou se procuraram passar por tal.

O método consiste em fazer o arguido ler o mesmo poema em dias consecutivos e após cada uma das leituras descrever o que,para ele,aparenta ser fundamental no texto.
Segundo esta teoria os “normais” apresentam sempre(!) algumas discrepâncias valorativas em cada uma das distintas leituras,tornando-se estas mais acentuadas consoante o aumento do tempo entre elas.
A grande maioria dos “doentes verdadeiros” apresenta em todas as leituras uma análise dos textos sempre idêntica,independentemente de o espaço entre leituras ser curto ou prolongado.
Estes resultados analíticos são mais evidentes em textos de poesia do que de prosa.
Este método passou a ser também usado(e aperfeiçoado) desde há décadas nos Estados Unidos.

Na minha segunda leitura do poema acabei por encontrar ideias prioritárias distintas da minha leitura anterior,demasiado fixada nas “moscas”.
Em resposta à feliz sugestão quanto ao poema “Portugal “ de O’Neil lá voltei a relê-lo,depois de demasiados anos.

Com os resultados de ambas as leituras começo pela primeira vez a julgar-me (tendo em conta o método anteriormente descrito) não um psicopata criminoso mas um quase normal .......ex-combatente da Guiné!

Bem hajas Luís Graça!

Um abraço do J.Belo

Tabanca Grande Luís Graça disse...

A análise de textos poéticos é "tramada"... É também uma "hermenêutica"... Os textos poéticos, sejam, em prosa ou em verso, nunca têm uma única leitura, muito muito linear, lógica... O poema é para ser dito em voz alta, e ter um efeito "encantatório" no leitor...A poesia não é apenas a arte & manha de manipular palavras...

Não compete aos poetas (muito menos menores, como eu) a "obrigação" da fazer a "análise de conteúdo" dos seus poemas...Quando, quando muito, dar algumas "dicas" sobre o "making of" do poema, o contexto, a data e o local em que o escreveu ou começou a escrever...

Ando sempre com um bloco de notas, na minha mochila, onde escrevo com regularidade...É uma espécie de diários, onde aparcem esboços de sonetos, quadras, versos livres, contos, apontamentos de viagem, "estados de alma", etc.... É aqui que tudo começa, só depois passa para o computador... Adoro o papel e a esferográfica, à moda antiga. Tenho já largas dezenas de blocos de notas, que só eu consigo ler...

Neste caso, este poema (que já teve outro título, "cenas de um dia de verão"), terá começado a "germinar" há coisa de e meses, ainda na "quarentena", quando eu e a Alice começávamos a infringir "a lei e a ordem", escaulindo-nos, ao fim da tarde, para ver o pôr do sol nas arribas de Paiomogo, uma zona de paisagem protegida onde há coelhos e perdizes... Na realidade, é um dos recantos mais belos da nossa costa do Oeste estremenho, entre a Praia da Areia Branca e a Praia de São Bernardino... Paimogo é o limite, a norte, do concelho da Lourinhã, depois começa o de Peniche...

Estes recantos (pequenas praias de paisagens jurássicas, como o Vale de Frades, o Caniçal, o Paiomogo...) já me "inspiraram" alguns dos meus poemas que mais gosto... E aqui "esbarro" que os sonhos e os pesadelos do passado, individuais e coletivos, a começar pela nossa história trágico-marítima...

A referência aos "corsários de Salé" não é acidental: toda esta costa, ao longo dos séculos, esteve sujeita à incursão de invasores, piratas, corsários, incluindo os mouros e ou "mouriscos" da costa marroquina (depois da sua "expulsão" da península ibérica: recordo que o último reino mouro a ser "reconquistado" pelos reis católicos foi o de Granada, em 1492...)

(Continua: vou fazer o pequeno almoço do pessoal da casa, hoje tenho cá visitas do Norte, que vieram visitar os "mouros" da Lourinhã)...



Hélder Valério disse...

Olá!
Não vou entrar pela análise, ou tecer considerações, sobre o poema, a poesia, o tema/conteúdo, etc.
É apenas para dizer que cada vez mais me coloco como "fã", apreciador do estilo mais ou menos "corrosivo" das comentários e intervenções do JB (José Belo para os conhecedores).
Quase sempre de acordo e quase sempre com um sorriso quando as leio.
Obrigado.

Hélder Sousa

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Este ano, por sorte ou azar, por culpa da pandemia de covid-19, o Zé fez-nos muito mais companhia... Era esperado vê-la em Key Westm, no célebre Sloppy joe's bar, a beber uns daiquiris, muito melhor acompnhado do que na Tabanca da Lapónia,s em nosacas nem renas...

Estamos de acordo, Hélder, tem-nos feito bem, à saúde mental, ler os comentários do Zé. E sei que ele tem apreciado também a nossa companhia... LG


Tabanca Grande Luís Graça disse...


Há dias recebemos do Mário Gaspar o seguinte texto, que tem a sua piada, e que é
aplicável a muitos outros poetas e outros poemas... Reproduzimo-lo aqui, com a devida vénia:

Mário Vitorino Gaspar
sexta, 10/07, 01:39

Interpretar Poema de Camões

"Amor é fogo que arde sem se ver,
é ferida que dói e não se sente,
é um contentamento descontente,
dor que desatina sem doer".

Luís Vaz de Camões


Uma Aluna deu a sua Interpretação:

"Ah Camões, se vivesses hoje em dia,
tomarias uns antipiréticos,
uns quantos analgésicos
e Prozac para a depressão.

Comprarias um computador,
consultarias a Internet
e descobririas que essas dores que sentias,
esses calores que te abrasavam,
essas mudanças de humor repentinas,
esses desatinos sem nexo,
não eram feridas de amor,
mas somente falta de sexo!"...

Manuel Luís Lomba disse...

Oh Luís...
Depois do consolo da alma (da tua e das nossas) na admiração de passarinhos "Entre o pôr do sol e o nascer da lua cheia", (tornaste-te indiferente às "passarinhas" de Candoz-Marco de Canaveses ?!) pregaste-me um susto com a poesia "Ficarão as moscas quando morrer", imaginei-te pessimista,em deriva poética antónionobreana, mas logo o meu optimismo regressou,ao perceber que as moscas não eram as dos teus restos mortais, referias-te mas dos restos mortais das tuas (vossas) sardinhadas na Praia da Areia Branca...
PS - A sardinha aproveita a todos - do tubarão à espécie humana. Os meus refeiçoam em comunidade, mas perdem o "civismo", guerreiam-se, na disputa os restos mortais das sardinhas...
Abr.
Manuel Luís Lomba

Manuel Luís Lomba disse...

Errata: Onde se lê Os meus refeiçoam..., deve ler-se Os meus gatos refeiçoam...

Anónimo disse...

“É necessário sair da ilha para ver a ilha”

J.Saramago