segunda-feira, 20 de julho de 2020

Guiné 61/74 - P21188: Notas de leitura (1294): “Guiné-Bissau: Um caso de democratização difícil (1998-2008)”, por Álvaro Nóbrega; Coleção Estudos Políticos e Sociais, Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, 2015 (1) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Maio de 2017:

Queridos amigos,
Tenho a declarar que esta obra é um dos trabalhos mais sérios e abrangentes que conheço sobre a realidade guineense contemporânea. É um longo olhar sobre o processo democrático, a sua transição em África, com nasceu o Estado e quais as singularidades dos seus elementos; disseca os diferentes aspetos da elite política da Guiné-Bissau, a natureza do poder político dos militares, o que constitui o presidencialismo, o porquê da proliferação de partidos e trata com profundidade questões como a visão patrimonial do poder, a luta por esse poder, o estado dos direitos humanos e da justiça, etc, procura justificar as diferentes vicissitudes das asperezas por este percurso tão sinuoso e sem tranquilidade à vista.
De leitura obrigatória para quem gosta de conhecer a Guiné, a sua história e as suas gentes.

Um abraço do
Mário


Os ziguezagues da democracia guineense:
Uma obra indispensável de Álvaro Nóbrega (1)

Beja Santos

O livro titula-se “Guiné-Bissau: Um caso de democratização difícil (1998-2008)”, por Álvaro Nóbrega, Coleção Estudos Políticos e Sociais, Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, 2015. E logo pela estrutura apresentada no índice ficamos a saber que este professor de estudos africanos se acomete a trabalho árduo, de grande ecrã, sob a especificidade da implantação da democracia na Guiné, a partir das condições do nascimento do Estado, após uma luta armada que se tornou referencial à escala do movimento revolucionário mundial.

Álvaro Nóbrega enceta o seu estudo sobre o entendimento das democracias africanas onde se conjugam elementos do chamado modelo democrático ocidental com outros oriundos das suas culturas políticas. A Guiné-Bissau é o país lusófono daquele ponto da África Ocidental, segundo o autor, que reúne caraterísticas interessantes para entender a complexidade do processo democrático, e adianta as suas razões: a influência da cultura europeia foi tardia e de pouca penetração; possui grande diversidade etno-religiosa e uma sociedade tradicional muito forte; a elite moderna revela um elevado grau de ambivalência cultural; tem uma longa tradição de autoritarismo colonial e pós-colonial; é marcado por uma acentuada instabilidade político-militar e é uma das economias mais pobres do mundo. Tudo conjugado, a Guiné-Bissau é um espaço privilegiado para um estudo de caso sobre a implantação da democracia liberal na África Ocidental.

Atenda-se em primeiro lugar ao lugar e ao tempo que foi o ponto de partida da descolonização. O modelo de referência dos independentistas era o de partidos únicos onde se fazia a convergência de todos aqueles que aceitavam o modelo idealizado pelos libertadores. Desdenhava-se então o capital, sinónimo de colono e rapina de matérias-primas. A grande cobertura política assentava no marxismo mas desvalorizando o materialismo e o ateísmo. 

Cabral era portador de uma mensagem inovadora: a vanguarda era constituída pela pequena burguesia libertadora, o proletariado inexistente era substituído pela massa rural, na justa medida em que o território guineense conhecia empresas exploradoras mas não detentoras de terra; o PAIGC seria um partido-Estado cuja cultura decorria da luta de libertação e tinha o foco principal na modernização do país sem descurar o peso das tradições, do islamismo e do animismo. 

Só que Cabral não pode estar à frente do que tinha idealizado, a Guiné-Bissau inicia o seu percurso num tempo crítico: choques petrolíferos, quebra dos preços das matérias-primas, dívidas externas avassaladoras, erros monumentais no planeamento. O ajuste de contas entre guineenses e cabo-verdianos tem lugar neste cenário de insatisfação da população guineense com carências e perseguições internas. 

Os grandes auxiliares dos movimentos de libertação, URSS e República Popular da China, por este tempo não exerceram o poder em África, o que lhes garantiu aceitação pelas elites ressentidas com as potências ocidentais e o temor do neocolonialismo. No entanto o seu apoio era relevante na área militar, na cooperação técnica e na formação das elites, não o era na ajuda pública ao desenvolvimento; acresce que os chineses não tinham fundos nem uma economia dinâmica para o gerar, procuravam construir infraestruturas de prestígio, projetos industriais de pequena dimensão e enviavam especialistas na agricultura. É nesta atmosfera que a queda do Muro de Berlim alterou os termos da equação.

O FMI e o Banco Mundial entram nestes países e trazem um cardápio de medidas socialmente penalizantes: a redução do peso do setor público, com a diminuição do número de funcionários e a privatização de empresas e de outros bens públicos; a desvalorização da moeda e a liberalização dos preços; a reforma do aparelho fiscal de forma a aumentar a carga tributária; o fim do regime de subsídios às produções e aos preços; a abertura dos mercados às importações, com eliminação de barreiras e redução de tarifas aduaneiras. 

Foi exatamente isto que aconteceu na Guiné-Bissau, em que uma boa parte da elite governante beneficiou de fundos (surgiram novos proprietários agrícolas), aumentou a pobreza, o desemprego, o programa de ajustamento estrutural fracassou, estabelecendo-se à sua volta uma grande polémica.

O partido-Estado da Guiné-Bissau não podia escapar aos acontecimentos do Muro de Berlim, foi obrigado ao multipartidarismo, a rever a Constituição do Boé. Foi um processo que se iniciou em 1991 e desembocou nas eleições de 1994.

Álvaro Nóbrega lança o seu olhar sobre o Estado e Democracia da Guiné a partir de 24 de Setembro de 1973 elenca os complexos etno-culturais principais e o vigor da sociedade civil rural, quando chegou ao poder o PAIGC trazia um modelo teórico, tentou impor uma modernização que não vingou. É preciso entender a natureza deste voluntarismo vanguardista. 

Perante a complexidade do problema da identidade nacional Cabral contornava a questão adotando o princípio de que a nação se forjou na luta de libertação, a mesma que estava a impulsionar uma nova cultura. Com a vitória sobre o colonialismo abrem-se clivagens e antagonismos internos: entre as etnias não recetivas à modernização; entre os poderes tradicionais e o poder moderno; entre as classes sociais que tomam conta de Bissau e geram a ilusão de que controlam o país todo. A identidade nacional é um conceito difuso, esbarra com inúmeros obstáculos: heterogeneidade étnica, pluralidade de identidades, múltiplas pertenças (comunitária, religiosa, étnica e política) o que vai dificultar a governação e a gestão dos interesses nacionais. Acresce que o período colonial fez germinar a cultura crioula, a cultura afro-lusitana das praças e presídios. 

O autor interroga-se se não é mais apropriado falar de população guineense do que de povo guineense. E há um elemento tradicional insuperável: o “Tchon”. A Guiné atual provém da Pequena Senegâmbia, das compras de Honório Pereira Barreto, da questão de Bolama, da convenção luso-francesa de 1886. Era o espaço físico territorial que interessava definir, daí o desinteresse prestado ao mar, que é uma das maiores riquezas da Guiné. Desde a origem do novo Estado pairam estas ambiguidades e não se encontra receita para uma solução eficaz no curto e médio prazo: existe o Estado, mas ele está ausente em grande parte do país; o governo é frágil e precário, está sujeito a inúmeras contingências que mais adiante serão analisadas e o povo orienta-se pelos usos e costumes do local onde tem berço, o “Tchon”, local da identidade, dos valores e dos princípios.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 13 de julho de 2020 > Guiné 61/74 - P21165: Notas de leitura (1293): “BC 513 - História do Batalhão”, por Artur Lagoela, edição de autor, Junho de 2000 (3) (Mário Beja Santos)

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