sexta-feira, 17 de agosto de 2018

Guiné 61/74 - P18931: Notas de leitura (1092): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (47) (Mário Beja Santos)

Vista sobre a entrada principal da Câmara Municipal de Bolama, imagem de Francisco Nogueira no livro “Bijagós Património Arquitetónico”, Edições Tinta-da-China, 2016, com a devida vénia.


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 1 de Fevereiro de 2018:

Queridos amigos,
Aqui fica um relato parcial das dificuldades vividas na Guiné em 1927, faltava dinheiro para salários, a Associação Comercial da Guiné enviou uma longuíssima exposição ao Ministro das Colónias refutando qualquer bondade, interesse ou vantagem em transferir a capital para Bissau. Entretanto, José Granger Pinto, que se diz amigo de Francisco Vieira Machado, escreve-lhe a pedir ajuda e a lembrar-lhe que é um homem cheio de projetos, tem todos os elementos para que se faça a construção de um Casino Hotel, pede dinheiro ao BNU.
Dentro em breve vamos presenciar os acontecimentos turbulentos de um movimento revolucionário que sacudiu a Guiné em 1931, bem registado em ampla documentação guardada no Arquivo Histórico do BNU.

Um abraço do
Mário


Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (47)

Beja Santos

Introdução 
De V. Senhorias para V. Exas.

Na documentação avulsa respeitante a 1926, há um documento importante com data de 22 de Dezembro, assinado pelo Administrador Francisco Vieira Machado e endereçado ao gerente de Bissau. Tecem-se comentários ao movimento da caixa, aos câmbios, às letras descontadas sobre a praça, aos devedores e credores, e questões afins, e passamos a ter conhecimento de um novo património do BNU, o da fábrica de cerâmica adquirida à Sociedade Comercial e Fabril da Guiné, Lda, abarcando edifícios, maquinismos, móveis e utensílios, combustíveis e produtos manufaturados, a propriedade inclui armazéns, terrenos, edifícios e uma flotilha de cinco embarcações e também camiões.
O administrador em Lisboa comenta positivamente a importação de tabaco e faz considerações à crise que se vivia na Guiné, como exprimiu por escrito:
“São muito interessantes as informações e o parecer de V. Sas. sobre este assunto, quer na generalidade, quer em particular sobre a administração do Estado nessa colónia.
Os governos não têm feito na Guiné, infelizmente, qualquer obra de fomento, nem grandiosa nem modesta, e as estradas inúteis não podem ser consideradas como obras de fomento.
Será certo que a influência comercial portuguesa na Guiné se tenha quase perdido, em proveito das casas estrangeiras, devido um pouco à nossa forçada retracção na concessão de créditos, era e ainda é indispensável seguir tal política, devendo atribuir-se este mal à falta de capitais próprios das empresas nacionais.
Se estas tivessem recursos seus, que pudessem constar como garantia para o nosso banco, jamais lhes negaríamos auxílio, que nunca regateámos àqueles que em condições aceitáveis no-lo demandam.
E as casas estrangeiras, se melhor concorrência tivessem do comércio tradicional, ver-se-iam obrigadas a aperfeiçoar a sua rede de instalações.
Quanto ao financiamento indispensável da Província, sabemos o que o governo central poderá fazer. A importância que poderia utilizar não poderia ser muito superior a 5 mil contos, que não daria para pôr a casa em ordem, e a colónia precisa, evidentemente, de melhoramentos que permitam um melhor aproveitamento das riquezas do seu solo.
De contrário, corre-se o risco de ver aumentar todos os dias o êxodo já tão grande dos seus indígenas que nas colónias vizinhas encontram meio mais favorável e compensador.
Não basta olhar ao problema financeiro. Ele está indissoluvelmente ligado ao problema económico e erro se nos afiguram em tentar separá-los.
Para tanto, importa começar a pensar no estabelecimento de certas indústrias, por forma a valorizar as exportações e a diminuir as importações; e, além disso, no estabelecimento de uma pauta mais racional e consentânea com os interesses nacionais.
O trabalho de V. Sas. foi por nós muito apreciado e assim o felicitamos”.

Imagem retirada do livro Guiné Portuguesa, II Volume, por Luís Carvalho Viegas, 1936

Em 19 de Julho de 1927, José Granger Pinto, com escritório em Bolama, envia a Francisco Vieira Machado, vice-governador do BNU uma longa missiva, recordando a velha amizade e recomendando-lhe atenção para o projeto do Casino Hotel em Bolama. Projeto esse que tem alguma elasticidade, já se falava na transferência a capital para Bissau, o Casino Hotel poderia ser construído aqui.

E começa aqui uma carta pessoal, há motivos sérios para a reproduzir tal como foi escrita:
“Vai certamente ficar admirado de eu me encontrar nestas paragens, mas um mau sócio comprometeu tudo quanto eu tinha, vejo-me na necessidade de recomeçar a vida. A transição da Alemanha e Bélgica para aqui foi bastante violenta, mas paciência.
Sua Excelência, o Governador, tem mostrado a melhor boa vontade em me auxiliar, já escreveu ao Dr. João Ulrich, que se encontra ausente, recomendando o meu projecto que, permite-me dizer, sendo construído em Bissau, com garantia pelo Governo de juro de 10% sobre o capital empregado é negócio seguro. Aquela cidade está tomando um desenvolvimento considerado, carecendo de um hotel e local aprazível aonde os negociantes do interior e viajantes encontrem conforto, durante os dias que são obrigados a permanecer ali.
Tomei esta iniciativa estimulado pelo Senhor Governador, a fim de aproveitar eficazmente todos os maquinismos que possuo, grupo eléctrico poderoso de 14HP, capaz de iluminar a cidade de Bissau, máquina de fabricar gelo, máquina cinematográfica e plateia completa para um cinema, faltando-me apenas o mais importante, que é o edifício adequado para a instalação destas máquinas.
Já me elegeram para Presidente da Associação Comercial, Vice-Presidente da Câmara e Delegado do Comércio junto da Comissão de Revisão de Pautas Aduaneiras, pelo que me tenho obrigado a fazer um pequeno estudo económico da colónia”.

Vieira Machado responde a 20 de Setembro e informa que se pensa em transferir a capital para Bissau, “foi resolvido sobrestar este assunto até que essa ideia se efective ou seja abandonada”. Logo prontamente José Granger Pinto volta à carga, conta o que anda a fazer:
“Por enquanto estou procurando a probabilidade de fornecer com o meu motor e dínamo luz eléctrica à cidade de Bolama, mas apesar da Câmara me pagar a instalação, tenho que adiantar o numerário necessário para adquirir o material, o que na ocasião não é possível. Já falei com o Sr. Machado, gerente do banco aqui, que me respondeu que embora a minha proposta não oferecesse risco ao banco e fosse de interesse público, não a podia atender, porque tem rigorosas instruções da direcção para não abrir créditos.
Conversando com o Sr. Governador, disse-me que se tivesse dinheiro do Crédito Agrícola mo forneceria, e que referisse o assunto ao meu amigo, que sendo possível não me deixaria de dar as facilidades necessárias desde que não haja risco para o Banco, pelo que tenho atrevimento de lhe falar sobre esta pretensão, visto a importância do crédito não ir além de 50 contos”.
Desconhecemos o desenlace deste pedido de empréstimo, mais adiante se volta ao assunto do Casino Hotel em Bissau.

Este mesmo ano de 1927 deverá ter sido de penúria e carestia para os projetos do Governo da Guiné, logo em Janeiro o Encarregado do Governo expede para o Gerente do BNU em Bolama o ofício com o seguinte teor:
“Encontrando-se actualmente esta Província numa situação deveras angustiada, proveniente da falta de numerário em cofre, situação que não pode ser resolvida enquanto pelo Governo da Metrópole não sejam dadas as providências já pedidas; e desejando satisfazer o pagamento de rações a pesos, doentes, soldados e assalariados e bem assim os vencimentos dos funcionários de categoria inferior a 1.º Oficial; rogo a V. Exª se digne autorizar um adiantamento de trezentos mil escudos, reembolsável com as primeiras receitas a entrarem, possivelmente no corrente mês, a fim de debelar a situação aflitiva em que se encontram os pequenos servidores do Estado entre os quais já lavra a fome”.

Imagem retirada do livro Guiné Portuguesa, I Volume, por Luís Carvalho Viegas, 1936

Viviam-se tempos terríveis, acrescia que era público e notório que Bissau começara a juntar os requisitos suficientes para pretender vir a ser a capital, a inquietação instalara-se em Bolama, e daí a extensa exposição que em 15 de Agosto de 1927 a Associação Comercial da Guiné envia ao Ministro das Colónias, juntamente com a Comissão Urbana da cidade de Bolama. É de facto um documento de iniludível importância, daí a larga referência que dele faremos.
É a possibilidade da mudança da capital da colónia que põe estes comerciantes ao rubro, mas iniciam a exposição com macieza:
“Não nos animam mesquinhos propósitos de bairrismo. Para nós esta questão não é uma questão de duas cidades disputando-se a primazia de serem a cidade principal da colónia. Podemos ter, é certo e decerto os temos interesses ligados a Bolama. Esses interesses são, de resto, os próprios interesses da colectividade e da qual o Estado não é mais do que a expressão jurídica. Mas procuramos ver o problema através do alto interesse da colónia. Para isso temos de considerá-lo à face da História, da situação geográfica, económica, financeira e sanitária da Província e até da política internacional”.

Procede-se a uma narrativa sobre a existência de capitais, o descobrimento da região, a sua ocupação, fala-se de Cacheu, de Bissau, da Ilha de Bolama e do conflito luso-britânico pela posse da ilha, e quanto à geografia mais indicada para a capital, seguem-se alguns parágrafos originais:
“Se fôssemos procurar um ponto equidistante de todos os centros da colónia, então não se fixaria a capital nem em Bolama nem em Bissau. Mediríamos o mapa da Província com o compasso e era a geometria e não as necessidades de ordem administrativa, política, económica e social que determinavam a sede. Seria sensivelmente Bissorã o meio, em Bissorã instalaríamos o Governo Provincial.
Haverá maior absurdo?
A Ilha de Bissau está separada do continente por um rio, o Impernal, na região dos Balantas. A Ilha de Bolama encontra-se separada do continente pelo mar. Mas é uma distância pequeníssima; de Bolama a S. João há uma distância menor que a do Terreiro do Paço a Cacilhas. Quer-se dizer que quem estiver em S. João, defronte da cidade de Bolama, está em toda a parte do continente.
A situação de Bolama permite comunicações rápidas com os principais pontos da colónia, tendo até o Governador Caroço projectado, com a construção de uma ponte no rio Corubal, a mais importante rede de estrada do continente que fica fronteiro a Bolama. Rigorosamente, estão a grande distância de Bolama as regiões de S. Domingos e Cacheu, apenas. Como, também, ficam a grande distância de Bissau as regiões de Cacine e Gabu…”

É claro que os subscritores louvam Bissau, recordam a riqueza da região de Cacine e o rico e fértil arquipélago dos Bijagós. Seria uma estragação gastar dez mil contos para instalar as repartições públicas em Bissau, abandonando as repartições públicas e as residências dos funcionários em Bolama, edifícios públicos que valem, numa avaliação muito por baixo, cerca de sete mil contos. A haver tal transferência de capital resultaria uma desvalorização da riqueza pública.
E há outra conveniência que parece subestimar-se quando se fala na mudança da capital para Bissau, a salubridade de Bolama, o clima saudável e aprazível de Bolama, e não falta à exposição uma pirueta literária:
“Bolama, com o seu ar de velho burgo, docemente ensombrada por altas árvores, que dir-se-ia estender-nos, ao chegarmos, os seus braços verdes e aconchegantes, com a sua fisionomia de velha cidade de província portuguesa, é inclusivamente pela atmosfera de quietude, de paz e de tranquilidade que nela se respira, a cidade mais indicada para a capital política da colónia”.

A exposição remata com uma conclusão cujas premissas já a anteveem:
“A situação económica, financeira e internacional da Província não aconselha, antes se opõe a essa transferência. Bolama vale para o Estado e para os colonos que há tantos anos nela labutam esforçadamente qualquer coisa como vinte mil contos. Se deixasse de ser a capital da colónia, morreria como meio social. É lícito abandonar esta velha terra portuguesa?”

(Continua)
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