Bolama, vestígios do quartel-general, fotografia de Francisco Nogueira,
retirada, com a devida vénia, do livro “Bijagós Património
Arquitetónico”, Edições Tinta-da-China, 2016
1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Janeiro de 2018
Queridos amigos,
O que temos hoje a oferecer para leitura é variado. Antes de mais, nesta década de 1920 foram lançados empreendimentos que não chegaram a bom porto, expetativas não faltavam, corria a fama que as terras da Guiné eram luxuriantes, de Norte a Sul. Não é por acaso que se inicia a exposição com os belos propósitos da Companhia de Fomento Nacional, investiu-se muito e correu tudo mal, irá a seguir a Sociedade Agrícola do Gambiel. Fala-se também da Companhia Estrela Farim e das imensas propriedades que Vítor Gomes Pereira desbaratou. E há cenas de intriga, com veneno à mistura, do gerente de Bolama, já em contencioso com Bissau e a dizer cobras e lagartos de Velez Caroço.
Um abraço do
Mário
Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (46)
Beja Santos
Introdução
De V. Senhorias para V. Exas.
A década de 1920 vê surgir alguns empreendimentos agrícolas que se julgavam ter futuro. Não acontecerá assim, darão todos com os burrinhos na água, a despeito de muitas expetativas. Logo a Companhia de Fomento Nacional, em Aldeia do Cuor, ocupando em parte os regulados de Cuor, Joladu e Mansomini. Na resposta dada em 16 de Fevereiro de 1923 ao gerente do BNU em Bissau, tudo são promessas, veja-se o que se conjeturava a partir de um farto documento enviado da sede, Rua Augusta, 176, 2º, Lisboa:
“A linha de confluência entre as terras altas e as lalas que pelo exame da planta da concessão facilmente se verifica ser extensíssima e quase sempre guarnecida de palmeiras de Dendém em povoamentos mais ou menos densos, devendo o seu número subir alguns milhões, constituindo uma grande riqueza a explorar.
As suas instalações em Aldeia, na margem do rio Geba, com dois portos para embarque e desembarque, cobertas de telha, possuindo instalação eléctrica, cobrem já uma grande superfície (e descrevem-se as construções). Estas construções todas indispensáveis para a vida da exploração representam muitas centenas da exploração de metros quadrados de alvenaria, muitos metros cúbicos de madeiramentos e milhares de telhas e não se levantavam hoje se não com muitas centenas de contos.
Devemos ainda mencionar 9 quilómetros de estradas de penetração, não contado com os 20 ultimamente construídos pela circunscrição (de Bafatá) assim como 20 quilómetros de caminhos diversos e ainda duas pontes lançadas sobre o rio Gambiel que permitem a sua travessia por todos os nossos mecanismos de lavoura e transporte”.
Segue-se ainda uma descrição minuciosa do que já está cultivado. Não foi um êxito, tempos depois o empreendimento passou a ter outra designação, Sociedade Agrícola do Gambiel.
Outra empresa que parecia votada ao sucesso era a Companhia Estrela Farim, o seu diretor dirigia-se ao governador de BNU nestes termos em 9 de Março de 1924:
“A Companhia Estrela Farim possui na Guiné Portuguesa uma das mais vastas e belas propriedades, 25 mil hectares ocupando cerca de 12 quilómetros da margem do rio Cacheu, acessível a embarcações de 3 mil toneladas.
Esta propriedade acha-se no começo de exploração agrícola e possui instalações e maquinismos adquiridos no valor de cerca de 700 contos.
Tem a companhia os seus estudos feitos para uma exploração susceptível de larguíssimo desenvolvimento futuro, compreende duas culturas principais e o aproveitamento dos palmares existentes de muito mais de um milhão de palmeiras de coconote, cujos frutos os indígenas trarão à permuta desde que se encontrem quem lhes forneça artigos apropriados às suas necessidades de consumo. As duas culturas principais serão o gergelim e o tabaco.
Para realizar este trabalho a companhia carece do auxílio do BNU, precisa de um crédito contracorrente prestado em dinheiro em notas da Província da Guiné, constituído pelas seguintes importâncias: até 31 de Março do corrente, 50 contos; e em cada um dos meses subsequentes 20 contos, num total de 230 contos”.
Encontrar-se-á em diferentes relatórios a verberação, tanto de Bolama como em Bissau, de que estas empresas eram mal geridas, mal planeadas, nunca se visualizava uma relação efetiva com os agricultores locais, sempre ciosos por agricultar as suas coisas, remunerando mal e sem nunca oferecer contrapartidas sociais. Um poderoso empresário do Sul, Vítor Gomes Pereira, dissipará o seu capital, milhares e milhares de hectares das suas terras passarão para a posse do BNU.
Estamos agora em 1925 e surgem sinais claros de arrufos entre Bolama e Bissau, nunca mais se extinguirão até ao momento em que a filial de Bolama desaparecer. Vejamos uma queixa de Bolama enviada para Lisboa em 6 de Julho de 1925:
“Pedimos há tempo à agência de Bissau para nos comprar ali uma porção de sacos; estes sacos destinavam-se ao embarque da mancarra do nosso cliente Vítor Gomes Pereira, que nos está consignada a mancarra.
A agência de Bissau, quando nos enviou o documento do custo dos sacos, incluiu no mesmo uma comissão de 1% para si.
Baseado no artigo 312 do Regulamento das Dependências, reclamámos contra aquela comissão, mas aquela agência, com o fundamento em que os sacos não eram para uso próprio desta filial mas sim para um cliente, insistiu naquela exigência, não só naquela compra como em outras que lhe se seguiram.
Pondo de parte a alegação de que os sacos não eram para uso da filial, alegação que não merece contestação, resta o muito trabalho que causa a compra dos sacos. Não compreendemos como aquele serviço possa causar muito trabalho, quando ele pode ser feito tão simplesmente mandando um contínuo ou praticante às casas que costumam vender aquele artigo, perguntar se o tem e quanto custa e depois em face das informações dizerem: mandem tantos sacos. O embarque dos mesmos também não demanda muito trabalho, nem a interferência de nenhum empregado superior, pois se resume a saber quando vêm uma lancha para Bolama e mandar pôr a bordo dessa lancha os referidos sacos.
Seja, porém, como for, o que é certo é que o artigo 312 do Regulamento é taxativo e bem explícito, não fazendo referência alguma ao maior ou menor trabalho que os serviços recíprocos possam ocasionar, e tanto assim que aquela agência, em anos anteriores, já nos tem prestado iguais serviços sem reclamação da comissão.
A termos de pagar aquela comissão, não é lícito carregarmos ao cliente duas comissões, uma para esta filial e outra para a agência de Bissau, temos de chegar à conclusão que esta filial terá de trabalhar gratuitamente em serviços dos seus clientes, para ir dar interesses à agência de Bissau.
O nosso colega, em face da nossa insistente reclamação, propôs agora que aquela comissão seja dividida pelas duas dependências e sugere-nos que, caso não estejamos de acordo, para apresentarmos a nossa reclamação perante V. Exas., o que nós vimos fazer, não tanto pela importância daquelas comissões, que é relativamente diminuta, mas como uma questão de princípio a estabelecer para outros negócios de, porventura, maior importância”.
Logo Lisboa respondeu: “O número 312 do Regulamento é muito claro e terminante: o serviço prestado pelas dependências entre si é gratuito. Isto mesmo dissemos a Bissau”. Mas as tensões jamais serão aplacadas.
Data de 16 de Novembro de 1926 um documento enviado por Bolama a Lisboa sobre a situação da colónia, o Governador Velez Caroço está na berlinda:
“Como alguns jornais de Lisboa iniciaram ultimamente uma campanha contra o governador da Guiné, parece-nos oportuno informar V. Exas, imparcialmente, do que aqui se está passando.
Desde há meses a esta parte que se vem notando nesta colónia um movimento de desagrado à administração do Governador Velez Caroço.
Rompeu hostilidades, ostensivamente, o Capitão de Engenharia João Pedro da Costa com um relatório dirigido ao ministro das Colónias, verberando a administração do governador, que classifica de perdulária.
Este relatório foi organizado um tanto levianamente, ressentindo-se falta de provas jurídicas, e não sortiu o efeito que o autor desejava: uma sindicância àquilo a que o governador chama a sua obra.
Dizem-nos que o governador facilmente destruiu as acusações que lhe foram feitas. O certo, porém, é que o Capitão João Pedro da Costa não foi até hoje castigado militarmente por ter acusado um seu superior sem o ter feito pelas vias competentes.
Pouco depois era o Engenheiro Costa secundado na campanha pela Associação Comercial de Bissau, elegendo como seu representante para o Conselho Legislativo o Dr. Alçada Padez, advogado naquela cidade e particular amigo do Engenheiro João Pedro da Costa.
Passaram então a revestir certo interesse para o público as sessões do conselho legislativo, onde o Dr. Padez entrou em franca oposição, comentando, por vezes acaloradamente, a administração do governo da Guiné.
Entretanto o governador seguiu para Lisboa. Dá-se a revolta militar e o governador embarca apressadamente para o seu posto.
Como todos contavam que o governador pedisse a demissão, a pouco e pouco foram perdendo o medo que ele inspirava e por todas as esquinas eram comentadas desfavoravelmente tanto a administração dos dinheiros públicos como a sua adesão ao governo militar”.
O gerente de Bolama tudo vai comentando sobre estes confrontos, quem é quem no baluarte da oposição, em que constituem os ataques aos Caroços, pai e filho, um governador, outro Secretário dos Negócios Indígenas e Comandante da Polícia. A campanha “anti-carocista” atinge o auge, mas o gerente de Bissau não deixa de dizer que parece que o atual ministro das colónias mantém por tudo quanto se está passando na Guiné um desprezo superior, e lança o seu veneno:
“Nas repartições públicas nada se faz. Em Bolama sente-se uma atmosfera densa de terror. As perseguições aos funcionários que não votaram com o governador não se fizeram esperar. Inventam-se intentonas. Houve tropas de prevenção, com metralhadoras e tudo. Quase se não respira.
Não nos move a mais leve animosidade contra o senhor Governador Velez Caroço, com quem mantemos amistosas relações pessoais, mas não podemos, imparcialmente deixar de reconhecer que não são sem fundamento a maioria das acusações que lhe fazem.
Há esbanjamentos, há imoralidades e o orçamento é uma ficção”.
(Continua)
Reproduz-se na íntegra a troca de correspondência a propósito de um acontecimento embaraçante para o BNU da Guiné: a República da Guiné aparecia com uma moeda nova, estava estabelecido o caos nos mercados do interior, que valor se podia atribuir ao franco guineense? Era esta a pergunta-chave, para qual não se encontrava resposta, houve que proceder a consultas. Era esta a primeira grande dor de cabeça que vinha do regime de Sékou Touré
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Notas do editor:
Poste anterior de 3 de agosto de 2018 > Guiné 61/74 - P18892: Notas de leitura (1088): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (45) (Mário Beja Santos)
Último poste da série de 6 de agosto de 2018 > Guiné 61/74 - P18901: Notas de leitura (1089): Nó Cego, por Carlos Vale Ferraz; Porto Editora, 2018 (1) (Mário Beja Santos)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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