sexta-feira, 3 de agosto de 2018

Guiné 61/74 - P18892: Notas de leitura (1088): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (45) (Mário Beja Santos)

Câmara Municipal de Bolama


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de Janeiro de 2018:

Queridos amigos,
Estava-se num período de grandes dificuldades, as empresas queixavam-se da falta de dinheiro papel para Lisboa, Lisboa tomava medidas rigorosas proibindo todas as dependências do banco do império de sacarem sem cobertura imediata sobre a metrópole ou o estrangeiro.
Os trabalhadores metropolitanos queixavam-se do poder de compra exíguo e ameaçavam regressar a Portugal caso não fossem contempladas as suas reivindicações e dois gerentes da Sociedade Guiné Comercial, Lda, tratavam as desavenças ao pontapé e à estalada, chegando ao cúmulo de um criado indígena dar palmatoadas no empregado branco, o mundo colonial estava virado do avesso...
E data desse ano de 1923 a primeira referência à Companhia de Fomento Nacional, sediada em Aldeia do Cuor, quando folheei este papel não contive a emoção, estavam finalmente explicados os vestígios de grandes construções em pedra que conheci em 4 de Agosto de 1968 e que ninguém, em todo o Cuor, me deu explicação razoável. Esta Companhia de Fomento Nacional antecede a Sociedade Comercial do Gambiel, ali trabalhou Armando Zuzarte Cortesão, eminente cartógrafo, à chegada a Missirá ofereceram-me a sua cama em ferro, mandei fazer um colchão de folhelho, tudo durou até 19 de Março de 1969, uma granada incendiária só deixou uns ferros calcinados.

Um abraço do
Mário


Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (45)

Beja Santos

Introdução 
De V. Senhorias para V. Exas.

A documentação referente a esta época releva a escassez e a penúria que paira sobre a Guiné. Logo em 14 de Fevereiro de 1921, trabalhadores metropolitanos recrutados para obras no banco em Bissau dirigem-se ao gerente pedindo aumento de vencimentos, “visto que tudo tem aumentado a tal ponto que os nossos vencimentos descontando as mesadas que enviamos às nossas famílias não chegam para a nossa manutenção e como tudo dia-a-dia vai num crescente ameaçador, vimo-nos na contingência de vir pedir a V. Exa. que se dine a tender o nosso pedido. Em Lisboa, quando fomos contratados os salários que nos foram dados eram do triplo que se pagava lá; agora, como em Lisboa se está pagando seis escudos por dia, é justo que sejamos aumentados na proporção acima, pois que de contrário não nos valerá a pena estarmos aqui sacrificando as nossas saúdes e o bem-estar das nossas famílias para mais tarde quando voltarmos à metrópole irmos sem saúde e sem dinheiro para nos tratarmos”.

De facto, havia obras no edifício da agência em Bissau, ali se trabalhava afanosamente segundo a planta do senhor Felgueiras, o mestre e de obras, o gerente recomendava que o construtor do mobiliário falasse com ele. E seguia-se a lista das necessidades de móveis e utensílios: para o salão do primeiro andar, uma mesa de centro, um sofá inglês, algumas cadeiras simples e outras estofadas, dois contadores, um espelho biselado, duas colunas, várias carpetes e galerias com sanefas; no hall um bilhar, bancos estilo império e 4 mesas para chá (servindo para bridge); para a sala de jantar uma mesa elástica para 12 pessoas, um guarda-prata, 2 trinchantes, um aparador, 12 cadeiras e 2 vasos para begónias; no gabinete de trabalho, uma secretária de ministro, uma cadeira giratória, uma mesa para máquina de escreve, cadeiras, um pequeno armário classificador, uma pequena estante rotativa, uma coluna para busto e um relógio; na livraria, duas estantes, uma pequena mesa simples e duas cadeiras; no quarto de vestir, uma cómoda, um guarda-fato, uma chaise-longue, uma mesa de centro e cadeiras… Lista altamente pormenorizada, abarcando quartos, o quarto de criadas, vestíbulo, cozinha, gabinete de gerência, sala de espera, área de atendimento público e tesouraria. Desconhecemos qual tenha sido a reação de Lisboa a tais pedidos.

Não escapa a esta correspondência algumas cenas truculentas, podem meter tiros, denúncia de imoralidades ou história de vigarices. É o caso do ofício enviado em 14 de Outubro de 1921 com o título Celorico Gil.
Começa com o texto de dois telegramas, e o gerente de Bissau explica-se:
“O procedimento do senhor Celorico Gil é deveras inexplicável, e só o podemos classificar de idiota, pois é impróprio de um advogado que se preze. Já tínhamos conhecimento de que este senhor andava propagando aqui que ia processar o Banco e exigir uma indemnização de 100 contos, mas nunca supusemos que dissesse tal baboseira a sério.
Para responder a V. Exas, aguardámos o regresso a Bissau do senhor Celorico Gil que na ocasião se encontrava em Bolama; procurámo-lo na Casa Gouveia, onde habitava, e negou-se a receber-nos, alegando nada ter a tratar com o Sr. Rolão. Insistimos, mandando-lhe dizer que não era o Sr. Rolão que o procurava mas sim o gerente do Banco, para assunto oficial; persistiu na recusa.
Que pretendeu o Sr. Celorico Gil telegrafando a V. Exas? Visar o signatário? Com mentiras e insinuações, que nós com a maior facilidade desfazemos com documentos, foi tolice porque gastou dinheiro no telegrama e demonstra que muito pouco vale como carácter e como advogado.

Este senhor não podia ver, e o seu rancor chegava a ponto de afirmar a toda a gente que logo que chegasse a Lisboa procuraria o nosso Governador, Dr. João Ulrich, de quem pessoalmente é amigo, e que havia de conseguir a imediata demissão do signatário!
Nós só podemos encarar tão estulta vaidade rindo-nos, tanto mais que nem nós quereríamos estar exercendo um cargo de confiança e responsabilidade dependentes do primeiro parvenu¸ como o grotesco Sr. Celorico, pessoa que aliás não conhecemos, a quem nunca fomos apresentados e com que nunca trocámos sequer uma palavra.
Que mal nos podia fazer este cavalheiro se o processo ainda está correndo e o exame de peritos é desfavorável aos sírios Sóda Frères? Que responsabilidade temos nós na prisão dos inculpados, se não fomos nós que os acusámos nem os mandámos prender?

A assinatura do cheque falsificado está perfeitamente limitada, e portanto nem sequer temos responsabilidade pelo seu pagamento. Não temos nenhum interesse que os falsificadores fossem os sírios Sodas ou outrem, o que queremos é que o assunto se arrume.
O Sr. Celorico atreveu-se a insinuar maldosamente, como tivemos conhecimento pelo nosso guarda-livros, que estava convencido de que o cheque teria sido falsificado no próprio Banco, por algum empregado! Um cheque que primitivamente e antes de ser pago tinha sido visado, pois o caso ocorreu o ano passado, quando a nossa emissão se esgotou!
Repetimos e confirmamos o que declarámos já no nosso telegrama: assumimos inteira responsabilidade pessoalmente pela nossa parte no processo, que se limitou a participar os factos ocorridos.
Pena temos nós de não termos elementos mais concretos sobre as insinuações a respeito do nosso pessoal, porque talvez o Sr. Celorico se arrependesse da leviandade e infâmia”.

Alçado tipo de topo do quartel militar (duas fotografias de Francisco Nogueira retiradas do livro “Bijagós Património Arquitetónico”, edições Tinta-da-China, 2016)

De 1922 para 1923, sentem-se novas dificuldades na Guiné, surgem reclamações, algumas de teor bem curioso, é o caso de uma carta datada de Bissau, de 24 de 4 de Fevereiro de 1922, da empresa Huilerie de Copenhaga dirigida à administração em Lisboa protestando com a falta de dinheiro papel, queixando-se de que não podiam pagar aos indígenas com cheques visados e perguntava-se:
“Havendo dinheiro em Bolama, que, se não é o suficiente para fazer face aos encargos do comércio, com a actual depreciação da moeda, de forma alguma remediaria quem neste momento não tem nenhum, por que motivo não dão V. Exas. as competentes ordens para pôr em circulação tal dinheiro?
Além disso, queremos também frisar o caso do senhor gerente da filial de Bissau, de não tratar com a devida correcção os agentes das casas comerciais, bem como sabemos também que o dinheiro ainda não acabou no banco, pois há sempre meio de satisfazer pequenos cheques para pagamento ao gentio e todavia não nos foi pago um cheque de um fornecimento feito ao Estado, senão metade, ficando o resto em depósito”.

As dificuldades financeiras sentidas na metrópole são comunicadas a Bissau e pede-se o maior rigor, como se pode ler no documento reservado que o BNU em Lisboa envia em 31 de Julho de 1923:
“A situação extremamente melindrosa a que nos estavam conduzindo os intermináveis saques a descoberto das Dependências do Ultramar – já por nós mais de uma vez denunciada – levou-nos a tomar medidas de rigor extremo, nomeadamente com as Dependências de Angola e Moçambique que são aquelas que de uma maneira mais sufocante pesam sobre esta Sede com saldos devedores que, em seu conjunto, se elevam já a uma verdadeira enormidade.
A primeira dessas medidas, como naturalmente estava indicado, foi a proibição rigorosa que fizemos a todas as dependências daquelas Províncias de sacarem sem cobertura imediata sobre a Metrópole ou Estrangeiro, proibição essa que agora tornamos extensiva a essa Filial.
Todas as operações que se traduzam em transferências para a Metrópole ou Estrangeiro igualmente ficam absolutamente proibidas sem a respectiva contrapartida”.

Imagem retirada da revista “Mundo Português”, que era publicada pela Agência Geral das Colónias

Nesse mesmo ano de 1923 Lisboa pede ao gerente de Bissau que ponha o seu maior empenho em conseguir uma solução digna para o conflito com os gerentes da Sociedade Guiné Comercial, Limitada.
Recorreu-se a um intermediário, o diretor interino da Agrimensura, que era muito íntimo deles, foram desagradáveis, e o gerente de Bissau adianta as suas razões:
“Os gerentes da Sociedade Guiné Comercial, Lda há muito que vinham sendo acusados de agredirem empregados europeus e de gozarem de poucas simpatias na praça, não só pela sua falta de educação, que os levava a frequentes inconveniências, mas também por terem sempre, como supremo argumento, a imposição dos seus músculos de montanheses.
Chegaram ao cúmulo de segurarem um empregado branco para que, às suas ordens, e intimidado sob ameaças, um criado preto lhe desse palmatoadas!
Este ato, indefensável por indigno, revoltou justificadamente os europeus de todas as nacionalidades representadas nesta colónia, que pediram a expulsão dos acusados, tendo o governador da Província comunicado o caso para o Ministério das Colónias.
Confidencialmente, o Administrador do Conselho, Adolfo de Jesus Leopoldo, Tenente do Exército Metropolitano, que procedeu às investigações, informou-nos que são absolutamente verdadeiras as acusações lançadas sobre os gerentes da Sociedade Guiné Comercial, Lda.
Consta-nos que um deles, José Barbosa, o principal responsável e o mais antipático, forjou telegramas falsos para a sua sede, conseguindo ainda manter-se mais algum tempo. Já embarcou para Lisboa e o outro deve também retirar-se brevemente”.

(Continua)
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Notas do editor

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Último poste da série de 30 de julho de 2018 > Guiné 61/74 - P18880: Notas de leitura (1087): “Máscaras de Marte”, por Nuno Mira Vaz; Fronteira do Caos Editores, 2018 (2) (Mário Beja Santos)

1 comentário:

Manuel Luís Lomba disse...

A foto do "alçado" do quartel militar refere-se ao edifício do comando do então CIM - Centro de Instrução Militar. A escada estava ladeada por duas peças de artilharia da casa Kruppp, antiquadas, decorativas, que a Guiné-Bissau "pós-colonial" terá destinado à sucata, na senda do destino da estátua do general Ulisses Gant - que também foi presidente dos USA.
Um abraço, Mário.
Manuel Luís Lomba