quarta-feira, 1 de agosto de 2018

Guiné 61/74 - P18887: Historiografia da presença portuguesa em África (126): 1917: O BNU na Guiné e as convulsões republicanas (2) (Mário Beja Santos)

Um tocador de tambor

Imagem de 1954, na obra de propaganda “Fotografias Guiné, Início de um Governo”, referente à chegada à Guiné do Governador Mello e Alvim.


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Fevereiro de 2018:

Queridos amigos,
Período de turbulência, o que antecede a entrada de Portugal na I Guerra Mundial, graves conflitos na governação e chega um inspetor vindo de Benguela para apurar das contas da agência em Bolama e dá notícia de como começou a funcionar a recém-criada filial de Bissau, tão desejada pelos comerciantes da localidade. Vale a pena insistir na faculdade que era concedida a estes homens para falarem desassombradamente dos políticos, do funcionamento da praça e dos funcionários do BNU, punham-se descaradamente em bicos de pés face à administração em Lisboa e não poupavam críticas brutais, havendo de quê. O inspetor David desembesta sobre o gerente Moreira e com a maior candura indica para sua substituição Cristóvão Ribeiro, que merece todos os elogios e ainda por cima priva na intimidade com António José de Almeida, o prestigiado líder republicano…
Está tudo dito.

Um abraço do
Mário


1917: O BNU na Guiné e as convulsões republicanas (2)

Beja Santos

Julgo que o leitor beneficiará, para melhor entendimento do que politicamente se passava na Guiné nesta altura, passar os olhos pelo que escreveu Armando Tavares da Silva no seu livro “A Presença Portuguesa na Guiné: História Política e Militar, 1878-1926”, Caminhos Romanos, 2016.

O inspetor David, como se escreveu anteriormente, está em Bolama para avaliar a situação e escreve regularmente para a Sede.
Em 9 de junho de 1917 refere-se nos seguintes modos ao gerente Moreira:
“Acompanhado da família, partiu ontem definitivamente para Bissau, a fim de inaugurar a nova agência no próximo dia 14. Fiz-lhe sérias recomendações a respeito da sua norma de proceder no exercício do seu novo cargo, tendo-me prometido que V. Exas. não teriam motivos de queixa a seu respeito. Não confio porém no cumprimento da sua promessa. O conflito, a intriga e a má educação são apanágio do Sr. Moreira. Tive o desgosto de me sentar à sua mesa. Nada lhe fico devendo nem à sua família, a não ser a mais ligeira consideração e estima dispensada ao representante directo de V. Exas.”

Em 10 de julho segue para Lisboa um documento recheado de detalhes, merece a nossa atenção, o gerente Moreira fora repreendido por se meter em política, infringira o regulamento do BNU, escreve-se textualmente:
“Subscreveu em nome do Banco telegramas expedidos ao Senador Gouveia e Ministro das Colónias pedindo a recondução do Coronel Coelho como Governador da Guiné. Só agora tive conhecimento do facto pelos jornais recebidos de Lisboa!
Representa este facto um absoluto desprezo pelas ordens de V. Exas, reincidindo conscientemente em tal falta, não falando do desprimor para comigo, a que aliás o Sr. Moreira e família me habituaram.
O Sr. Moreira que tem grande receio de ver aqui o Governador Sequeira e Secretário do Governo Sebastião Barbosa, que por todas as formas o desconsideraram, não só subscreveu o telegrama como sugeriu a ideia e a patrocinou. Acompanha o mesmo o gerente Carvalho da Casa Salomão, Pereira, Neves & C.ª no acto da expedição.
O telegrama foi expedido um tanto a contento de quase todos os comerciantes de Bissau, porque atrás do pedido de recondução do Governador Coelho sabe-se que este prometeu a transferência da sede do Governo e da capital da Província de Bolama para Bissau! Aqui é que está a gravidade do acto praticado por Moreira, porque os comerciantes e proprietários de Bolama, sabedores do caso, têm manifestado o seu desagrado para com aquele gerente, que, dizem eles, abusando da sua função, pretende arruinar Bolama, intrometendo-se em assuntos que devem ser alheios ao Banco.
Em que situação fica o Sr. Moreira se amanhã regressar ao seu posto o governador efetivo Sequeira, ou outro, que não seja o Coronel Coelho?
Não cessarão as queixas contra aquele senhor, e desta vez bem justificadas. O Sr. Coronel Coelho deseja realmente voltar em Outubro próximo depois de fazer exame e tirocínio para general”.

Coronel Manuel Maria Coelho, Governador Interino da Guiné

E a carta retoma as atuações do gerente Moreira:

“A circunstância do Sr. Moreira ter apresentado bons lucros no ano passado e no corrente foi devido unicamente a três casos absolutamente favoráveis, a saber:
1º - a coadjuvação constante de V. Exas, abrindo amiudados créditos a favor de Salomão, Pereira, Neves e C.ª e outros – todos eles para a compra de géneros em que a agência obtém lucros provenientes de letras;
2º - constante alta na Europa dos preços da mancarra, couros, cera e na borracha desta colónia;
3º - gradual e constante alta de câmbios que nos proporcionaram belos lucros. Estes três factores é que são a causa imediata dos lucros auferidos e não o zelo do gerente, que é bem medíocre.
Falo assim, porque ao fim de três meses tive tempo suficiente para avaliar as qualidades do Sr. Moreira, e direi mais, estou convencido que em toda a parte o Sr. Moreira há-de dar desgostos a V. Exas.
Ele pretende ir para o Brasil por mão do Sr. Cabrita, que mais ou menos se assume em seu protector. Ficam V. Exas. avisados das intenções do Sr. Moreira.”

Seguidamente o inspetor David vai falar de Cristóvão Ribeiro, do gerente Cotter, da sua licença e do coronel Coelho.
Cristóvão Ribeiro é apresentado como um nome bem posicionado para a gerência de Bissau:
“Se V. Exas. tiverem necessidade de gerente para Bissau, visto que o Sr. Moreira pensa em pedir licença daqui a alguns meses, lembrava como muito competente para aquela praça o Sr. Cristóvão Ribeiro que em Benguela exercia o cargo de agente das Companhias da Pesca da Baleia, exportava e comprava géneros à consignação e era vice-cônsul da Noruega. O Sr. Cristóvão Ribeiro dispõe de aptidões para exercer o cargo que indico em Bissau, porque está habituado a lidar com estrangeiros. Conhece bem os negócios de géneros, o que ali é muito preciso, e julgo-o honesto. Com tempo, creio que se interessou por ele o Dr. António José de Almeida. Creio que o Sr. Cristóvão Ribeiro se encontra actualmente em Portugal, mas não sei em que ponto. Se tanto for preciso, eu prontifico-me – como aliás é do meu dever, - a ir a Bissau para elucidar e encaminhar o Sr. Cristóvão Ribeiro durante as primeiras semanas da sua gerência, evitando deste modo que o Sr. Moreira permaneça ao lado do seu sucessor durante dois compridos meses (o intervalo de um suceder ao outro) por ser pernicioso o convívio do futuro novo gerente (aquele ou outro qualquer) com o Sr. Moreira. Este, desde que se visse substituído usaria da maior deslealdade.”

E na carta fala-se do seguinte modo quanto ao gerente Cotter:
“Com prazer comunico a V. Exas. que estou satisfeitíssimo com o procedimento deste novo gerente. Instruído, inteligente, falando e escrevendo o francês e o inglês, compreendendo muito bem os negócios, metódico e trabalhador, dispõe de aptidões que devem fazer dele um bom gerente, até mesmo para dirigir uma dependência de maior responsabilidade. Um verdadeiro contraste com o seu desmazelado antecessor”.

E aborda o assunto da sua licença:
“Usando aqui a licença que V. Exas. dignaram conceder-me, sigo no Vapor Bolama para a Madeira, com transbordo em S. Vicente, onde talvez seja forçado a demorar alguns dias. Quando chegar à Madeira telegrafarei a V. Exas. – pedindo no entretanto que escrevam para aquela ilha ao cuidado do correspondente do Banco ou por posta-restante. Ali permanecerei à inteira disposição de V. Exas.”

Não deixa de alertar Lisboa de que os negócios da agência estão a correr bem e a contento da praça. E quanto ao Governador-Coronel Coelho presta a seguinte informação:
“Acaba de me afirmar o Capitão Monteiro, ajudante do Coronel Coelho, que este, assim que teve conhecimento dos telegramas pedindo a sua recondução telegrafou ao Ministro das Colónias pedindo-lhe para não fazer caso algum do que se solicitava a seu respeito”.

Eu peço ao leitor que não se esqueça que aqui é invocado o nome de um dos políticos republicanos mais conhecidos na época, António José de Almeida, não terá sido um acaso, ligava-se sempre alguém a altos conhecimentos, neste caso Cristóvão Ribeiro, nome tão louvado para vir a ser gerente em Bissau.
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Nota do editor

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