terça-feira, 31 de julho de 2018

Guiné 61/74 - P18884: Estórias do Juvenal Amado (60): O azar das margaridas



1. Em mensagem de 13 de Julho de 2018, o nosso camarada Juvenal Amado (ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1971/74), autor do livro "A Tropa Vai Fazer de ti um Homem", enviou-nos mais uma das suas estórias.


ESTÓRIAS DO JUVENAL AMADO


59 - O AZAR DAS MARGARIDAS

Juvenal Amado

Costumo dar umas voltas a pé aqui pelo sítio onde moro. Umas vezes aproveito para ir à farmácia, ou supermercado, levar ou trazer coisas da costureira. Umas vezes vou sozinho de auscultadores para ouvir a Antena 1, outras com a minha mulher porque é sempre bom fazer estes passeios acompanhado.

Gaivotas e pombos cruzam os céus, em comparação não vi andorinhas por aqui este ano.

À medida que passo pelas ruas da primeira cidade de Abril vou apreciando como é diferente dos sítios onde morei. A falta de limpeza das ruas motivado pelo excesso populacional, a falta de civilidade que raia o incompreensível com papeis, plásticos, que redopiam ao vento e se espalham pelas ruas e caneiros.

Mas a riqueza étnica com que nos cruzamos a cada passo, dá-nos a ideia que é viver a par com África. Ao envelhecimento da população branca respondem a quantidade de crianças e jovens negros, ciganos de origem romena, brasileiros, etc.

No trabalho de jardinagem são as mulheres negras bem como nas limpezas, nos cafés, restaurantes são brasileiros e os chineses tomaram conta do comércio de bairro, indianos pequenas mercearias, quanto aos romenos para além de terem filhos com fartura não sei o que fazem na verdade, mas são felizes nas suas vidas pouco sujeitas a imposições sociais.

Nota-se pelos costumes que há populações oriundas da Guiné, de Cabo Verde e Angola. A par de velhos com olhar perdido talvez de melancolia, é engraçado ver passar crianças com o cabelo às trancinhas, com contas coloridas nas pontas e algumas mães com os filhos nas costas tipo Racal, hábito bem conhecido das Fulas. Nos adolescentes imperam os hábitos importados dos states, com roupas e bonés tipo rappers, que publicitam clubes futebol americano ou mesmo de basebol, coisa que por cá é um “ignoro”, mas modas são assim e não vale a pena pôr mais na escrita.

No meu prédio, uma moradora queixava-se do barulho que a vizinha de cima fazia logo de manhã a batucar. Dizia a queixosa para a outra, que não sabia o que ela fazia para provocar aquele barulho. Pensei para mim, que talvez a tal vizinha confeccionasse alguma coisa no pilão ou estivesse a fazer “funge” (acompanhamento típico angolano) para o marido e filhos.

Aos Sábados de Sol coisa que tem andado arredada, é ver a criançada a jogar à bola aqui no pátio na linha de prédios, que noutros tempos foi resguardado, para que hoje haja um local onde os carros não entram. Mas não há bela sem senão, pois no resto-chão mora uma velha, que de bengala em punho, qual condestável, entende que ali não é sítio para jogar a bola e passa a vida a ameaçar a garotada com a policia e com a bengala. Bem, o policiamento da velhota não é bem encarado por todos e já resultou em troca de galhardetes entre aos prós e os contra sem Fátima Campos a moderar os debates.

Estes lugares vulgo florestas de cimentos, que há quase cinquenta anos afastaram muitos lisboetas da sua cidade com promessas de melhores condições de alojamento na periferia, onde puderam comprar apartamento, onde criaram os filhos e hoje alguns cuidam dos netos, bem felizes uns e outros. Na verdade há um tempo para tudo mas não deixam de ser efectivamente cimento e mais cimento, não é fácil viver em especial para os mais velhos que vivem sozinhos, por vezes em equilíbrio instável.

Mesmo assim é visível o esforço da Câmara Municipal no cuidar dos poucos espaços com relva.

Hoje, quando passava, vi que com a relva brotam milhares de margaridas com as suas cabecitas amarelas e pétalas brancas. Se lhes dessem tempo também algumas papoilas tingiriam o verde de vermelho empoleirado nos seus delicados caules pretos.
Mas as cidades são normalmente desprovidas destes pruridos e à mediada, que também não se condoem com as necessidades individuais de cada um, também as flores, que teimam nascer livres e selvagens, têm os dias contados. Quando regressei a casa e passei pelo jardim, vi que tinham andado a cortar a relva. Pensei como era diferente ver, como ainda se vê, nas pequenas cidades e vilas os terrenos baldios polvilhadas de flores silvestres, como quando íamos para a escola e apanhávamos e sugávamos a sua seiva avinagrada.

A relva tinha sido aparada e as margaridas tinham sido erradicadas no “holocausto” jardineiro e só se viam os caules em pé misturados com a relva aparada.

O tempo é severo, vai e não volta e também passou o tempo das “margaridas “ só que elas renascem sempre, quanto a nós há várias opiniões não condicentes.

Um abraço
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Nota do editor

Último poste da série de 8 de fevereiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18300: Estórias do Juvenal Amado (58): Histórias com Pharmácias

1 comentário:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Belo texto, Juvcenal...Deixa-me dar-te os parabébs... O quotidiano pode ter poesia, mesmo que à volta nem tudo seja perfeito... LG