segunda-feira, 13 de agosto de 2018

Guiné 61/74 - P18919: Notas de leitura (1091): Nó Cego, por Carlos Vale Ferraz; Porto Editora, 2018 (2) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 25 de Junho de 2018

Queridos amigos,
Muito mais do que uma obra contada com mestria, um registo do horror e da brutalidade feito com contenção e a secura quanto baste, "Nó Cego" veio a alcandorar-se no pódio das obras-primas absolutas graças a um caso raro, talvez mesmo único, em que tudo quanto se passa naquele teatro de guerra ganha legitimidade para qualquer outro teatro, ali estamos todos nós, bramindo e rilhando os dentes, naquele companheirismo que só a guerra tem o condão de acrisolar e de elevar aos píncaros, para todo o sempre.
A mais singela homenagem que se pode fazer à obra maior da literatura da guerra colonial é contá-la assim, sem prejuízo da sua leitura integral, as leituras repetem-se, e o diamante literário faisca sempre de outra maneira.

Um abraço do
Mário


Nó Cego, a obra maior de toda a literatura da guerra colonial (2)

Beja Santos

"Nó Cego", por Carlos Vale Ferraz, Porto Editora, 2018, impôs-se ao longo de 35 anos, como leitura obrigatória, é o mais universal dos romances, o mais poderoso, melhor arquitetado e de dimensão clássica. Já se falou da primeira operação da Companhia de Comandos no Planalto dos Macondes, um bom número dos seus figurantes perfilou-se diante do leitor. Estamos agora em M, um verdadeiro entreposto em que os aviões andam num virote, os helicópteros depositam feridos na enfermaria, as colunas partem e chegam.

É-nos apresentado o Tio Abílio, o tenente-coronel comandante do batalhão de caçadores de M, “um homem precocemente envelhecido, magro e pequeno, de barriga dilatada, fardado com uma camisa verde e uns calções compridos a ultrapassarem os joelhos, ostentando na cabeça um boné de pala que lhe dava o ar ridículo de menino velho”. Informa o capitão que o brigadeiro está aborrecido com os resultados da operação, parecia-lhe inexplicável como duas Companhias de tropa especial não tinham conseguido assaltar uma base de guerrilheiros. E começa a reunião, parece uma sessão solene, não faltam mapas da situação, com setas e cruzes, uma ventoinha dá o ruído de fundo, o capitão dos Comandos não se exime a fazer a sua apreciação:
“Mentalizados ou não para morrerem, a verdade é que os homens lutam, morrem, ficam estropiados, isto apesar de lá em baixo, no quartel-general, e em Lisboa os nossos chefes não quererem aceitar que estamos numa guerra a sério e não a realizar operações policiais”.
O brigadeiro dá-lhe réplica:
“Vamos alterar a nossa estratégia. O nosso novo general comandante-chefe e eu próprio acabámos de ocupar os nossos cargos, e contamos com o vosso patriotismo e a vossa coragem para dentro de um ano termos a área limpa”.

Comia o capitão a sopa quando foi confrontado com as mais recentes peripécias do Tino, que lhe apareceu de camisola branca rota e suja, tinha havido zaragata da grossa no bar do batalhão, havia que agir rapidamente:
“Quando passaram à porta de armas distinguiram, mesmo à fraca luz do quartel, vultos correndo a tomarem posições de assalto junto a um dos edifícios. Os seus homens estavam a cercar os soldados do batalhão e imaginava o que lhes iriam fazer. Nada que melhorasse a consideração do novo brigadeiro por eles”.
O capitão lá conseguiu repor a ordem. É chamado ao brigadeiro, este revela-se exasperado, questiona o capitão:
“É chefe de um bando de guerrilha ou oficial do Exército? Esta unidade está em insurreição?” - e manda levantar um auto de corpo de delito por indisciplina, a tensão entre brigadeiro e capitão é latente.

E realiza-se o funeral do Preguiça, houve missa de corpo presente. O capitão visita na sala dos feridos graves o soldado Pedro, que perdera uma perna. “O Pedro já não era como eles, embora fosse para sempre um deles. Pareciam sofrer de um incómodo e indefinível sentimento de culpa por manterem intactos os seus corpos, embora recebiam dos mutilados olhares onde julgaram ver alguma vergonha pela sua nova situação e inveja por já não serem como eles. A expressão dos jovens soldados feridos das enfermarias militares parecia conter uma certa dose de ressentimento. Nunca mais seriam jovens”.

Imagem retirada do blogue Espaço Etéreo, vivências da guerra colonial, com a devida vénia

As tropas saem de Mueda para a Volta ao Mundo, vão atacar a Base Beira da Frelimo, na operação irão comandos e paraquedistas, haverá artilharia. E são emboscados, uma Fox estoira, há mortes. “Os homens moveram-se sem necessitar de ordens. Ligaram os cabos dos guinchos de reboque ao casco e à torre da autometralhadora para libertarem do interior do blindado o corpo meio esmagado do furriel do esquadrão de cavalaria a escorrer sangue e espuma da boca. Desceram-no, desarticulado, da velha lata para os braços do enorme soldado Bento, que pegou nele ao colo como a um menino. Deitou-o docemente à sombra de um arbusto compondo-lhe os membros. A cara de criança em corpo de gigante do soldado dos Comandos enfrentou a do outro, com a face branca da morte, sem acreditar que já não estivesse vivo”. Ao fim da tarde, a coluna chegou ao Sagal, o quartel onde iriam passar a noite antes de se lançarem na Volta ao Mundo. É eloquente a conversa que se vai travar entre o capitão dos Comandos e o comandante da guarnição, o que dizem é a história de uma guerra que parece infindável, aqueles oficiais caminham para o limiar da subsistência, estão a perder horizonte, o capitão dos Comandos não gosta do que está a ouvir:  

“Tinha diante de si um homem mesquinho, preocupado apenas consigo. Chocava-o ver-se confrontado com um militar tão egoísta que nem imitava uma manifestação de solidariedade para com a sua própria tropa que ia sair de madrugada”.
Há aqui um vigoroso registo do furriel Freixo, que vários ocasos irão transmutá-lo em herói. De novo a coluna está em marcha, começa o inferno das minas, há quem já esteja a fazer contas ao prémio de dois contos por levantar cada uma delas sem as rebentar. O capitão é categórico, é tudo para rebentar, o perigo está à vista:  
“A picada passou a confundir-se com uma seara de minas, que apareciam coladas umas às outras. No primeiro quilómetro, contaram 60 e demoraram seis horas a percorrê-lo. Os homens deixaram de sair das viaturas. Em cima delas comiam, de cima delas se aliviavam. Dormiam sentados com os quicos a taparem-lhes as caras das mordidelas dos mosquitos”.
Alguém fica gravemente sinistrado, o tempo vai passando, chega a noite com o silêncio assustador da floresta. Um soldado irá ter um ataque violento, segue-se uma descrição fulgurante:
“Foi de repente que, expelido pelo silêncio de aquário do Planalto dos Macondes, se ouviu um grito. Não um grito de medo ou de dor, mas um grito horrendo que lhes eriçou a pele carregada de eletricidade em picos de lixa. Um grito com vida, nascendo de um uivo de suicida caindo no abismo; mal nascido e logo fugido para o negrume de árvores sombrias a receberem-no quais fantasmas baloiçando braços descarnados de ramos rendilhados em teias negras, a prolongar-se num eco de mil latidos”.
Pergunta-se o que foi, um soldado do pelotão dos “picadores” do Sagal espumava e revirava os olhos, deitando por terra o grupo dos que o agarravam. O soldado epilético lá foi aplacado e depois sossegado.

Com a claridade da manhã, recomeça a marcha: “As minas voltaram a nascer como cogumelos em estrume húmido na picada que mal se distinguia entre a floresta”. De helicóptero, chega o Tio Abílio, à cautela fica debaixo de uma Berliet. Na manhã seguinte chega um helicóptero que leva o tenente-coronel a M, este está muito impressionado com o fino trato do furriel Freixo, a coluna retoma o seu lento curso no Planalto dos Macondes, os “picadores” estão exaustos, os Comandos vão apoiá-los, o comboio de viaturas prossegue a sua marcha, estão próximos da zona de ataque, virá a descobrir-se que os guerrilheiros fizeram fogo e retiraram. O gigante Bento morreu tal como o condutor do rebenta-minas.
A Volta ao Mundo chegou ao fim ao cair da noite.

(Continua)
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Notas do editor:

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