Queridos amigos,
As imagens com guineenses publicadas neste assombroso empreendimento de investigação que dá pelo nome de “O Império da Visão”, com organização de Filipa Lowndes Vicente, faz-nos meditar sobre as expedições científicas e a surpreendente aliança de políticos nacionalistas portugueses com o credo maometano.
A Guiné tinha um peso específico no imaginário imperial: um surpreendente mosaico étnico num espaço tão exíguo; a fidelidade dos Fulas e dos Mandingas depois das operações de pacificação, que se prorrogou até à independência; e o facto de ter sido a primeira colónia europeia dos tempos modernos. Isto para já não falar do sentimento associado ao derramamento de sangue, tudo custou sangue, dor e doença, basta pensar na construção da Fortaleza de S. José de Bissau.
Um abraço do
Mário
Fotografia no contexto colonial português: o caso da Guiné(*)
Beja Santos
“O Império da Visão, fotografia no contexto colonial português (1860-1960)”, organização de Filipa Lowndes Vicente, Edições 70, 2014, é um extraordinário empreendimento historiográfico que coloca a imagem fotográfica em lugar cimeiro das fontes de investigação no nosso tempo. Como se escreve na contracapa: “A fotografia não foi uma mera ilustração das colónias. A fotografia criou experiências coloniais. Os estudos recentes sobre colonialismo reconhecem como, ao lado da documentação escrita, as imagens são determinantes para se compreenderem e estudarem os impérios. É por isso que esta aventura visual sobre o império português permite um ousado entrelaçamento de olhares: a fotografia como um instrumento inseparável dos vários saberes científicos que usaram as colónias como laboratório, da história natural com a antropologia ou à medicina; a fotografia como prova de violência ou de intimidação, afirmando o poder durante as guerras coloniais; a fotografia apropriada pelos sujeitos colonizados, mas também por europeus anticolonialistas, enquanto forma de resistência, no forjar de identidades nacionais”.
Falámos anteriormente da leitura da fotografia vista por pessoas que se combateram durante uma terrível guerra como foi a da Guiné: gente do PAIGC e gente que se pôs debaixo da bandeira portuguesa. Agora pretendem-se duas incursões bem distintas, olhar para fotografias da missão antropológica e etnológica da Guiné (1946-1947) e apreciar imagens de guineenses ou de muçulmanos que passaram por Portugal a pretexto de exposições coloniais, de prémios ou de viagens de muçulmanos a Meca.
O professor Mendes Corrêa era um dos mentores de uma antropologia que hoje está totalmente desacreditada. Ele escreveu um livro que teve sucesso no tempo, Raças do Império, que foi divulgado pela Editora Portucalense em fascículos colecionáveis, num total de 625 páginas, entre 1943 e 1945. Mendes Corrêa acreditava no caráter distintivo das raças e não escondia a sua convicção na superioridade dos brancos. Ele chega à Guiné num período científico febricitante: a missão Geo-Hidrográfica, Zoológica, Antropológica e Etnológica da Guiné, entre 1944 e 1946. Bissau acolhera a Semana do Império, em 1943, o V Centenário dos Descobrimentos da Guiné tiveram o seu epicentro em Lisboa mas comemoraram-se com distinção em Bissau, em 1946; a 2.ª Conferência Internacional dos Africanistas Ocidentais, em 1947, são algumas dessas manifestações. Isto para significar que quando Mendes Corrêa chega à Guiné havia investigação e divulgação científica, contactos com organismos internacionais, e aspirava-se à constituição do Museu da Guiné Portuguesa. Da sua viagem à Guiné publicou-se um livro Uma jornada científica na Guiné Portuguesa, onde ele fala do estudo das etnias locais, recorreu a equipamento antropométrico transportado de Lisboa. O cientista pretendia realizar investigações de Pré-História, também. O resultado final foram clichés ilustrando indivíduos, masculinos e femininos, em duas poses invariáveis (frontal e de perfil), imagens estáticas. Como observa o autor do artigo, estas fotografias assumem, perigosamente, uma dimensão cenográfica passível de interpretações erróneas, o que limita a leitura do que efetivamente se pretendia captar.
Missão de Mendes Corrêa em Canhabaque, Bijagós, 1946
Os guineenses começam por ser acontecimento noticiado na I Exposição Colonial do Porto, em 1934. Aparecerão no Parque Eduardo VII poucos anos depois e desfilarão em 1947 na avenida da Liberdade no cortejo dos municípios, surgem escoltando o “Carro do Império”. O régulo Baró Baldé dirigiu-se ao Ministro das Colónias, capitão Teófilo Duarte, em nome dos régulos e teria dito: “Somos pretos da Guiné mas bons portugueses” e o Ministro das Colónias concluiu estar “em presença dos representantes das elites negras da Guiné, dos homens que são auxiliares preciosos da nossa tarefa civilizadora”. As elites negras a que o ministro aludia eram Fulas e Mandingas, procurava-se no fundo de uma aliança com os amigos dos portugueses que eram muçulmanos, outros políticos já tinham referido que os muçulmanos negros possuíam uma certa superioridade relativamente aos outros negros. Em 28 de Abril de 1953, Salazar concede uma receção aos muçulmanos da Guiné. E o jornal O Século escrevia que “Salazar apertou a mão e falou a todos eles, interessando-se por conhecer os seus nomes e indagando acerca das localidades onde desempenham as suas funções de direção de importantes aglomerados populacionais”.
Salazar cumprimenta régulos da Guiné em 28 de Abril de 1953
O autor do artigo refere que desde finais dos anos de 1950 que a política do Estado colonial se orientava para os muçulmanos da Guiné e assentava em duas práticas de “conquista das populações”: o financiamento da construção e da restauração de locais de culto e o patrocínio de peregrinações a Meca. A cobertura oficial destas últimas teve início em 1959 e até 1972 elas realizaram-se de forma regular todos os anos. Não há, evidentemente, ilusões dos intuitos de apoio a estas peregrinações, havia que mostrar ao mundo a realidade ecuménica da Guiné portuguesa. Estas peregrinações tinham um caráter turístico, havia que criar uma imagem de uma certa portugalidade: “Em 15 de Janeiro de 1971 partiu para Meca, via Lisboa, um grupo de 38 muçulmanos que ali vão em peregrinação. O grupo voltará a Lisboa em meados de Fevereiro, visitando na Metrópole os locais de maior interesse histórico e turístico, a convite da Agência Geral do Ultramar”.
Peregrinos guineenses a Meca junto da Torre de Belém, 1970
A lógica imperial há muito que firmara o conceito, de simbiose identitária que foi igualmente uma das retóricas desenvolvidas na nossa preparação militar, parecia um facto consumado: “Do Minho a Timor, homens de raças e crenças diversas comungam o mesmo sentimento de júbilo nacional, todos conscientes de que é do esforço comum que se obtém o êxito nacional”. A imagem da Guiné pesava muito: a pacificação e o sentido da ordem e daí o prémio em se ter transformado numa colónia modelo; a carga de exotismo, ver aqueles régulos como cavaleiros aprumados, na dianteira do Carro do Império, no Cortejo dos Munícipios, empunhando espadas erguidas na vertical. E aliança tácita que se estabelecerá entre o poder político, estruturalmente católico, e as etnias de pendor islâmico, tratava-se de uma aliança crucial, uma imagem de propaganda que se tinha que dar ao mundo naqueles tempos em que Portugal estava orgulhosamente só.
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Notas do editor
(*) Vd. poste de 19 de janeiro de 2015 > Guiné 63/74 - P14163: Notas de leitura (671): “O Império da Visão, fotografia no contexto colonial português (1860-1960)”, com organização de Filipa Lowndes Vicente, Edições 70, 2014 (Mário Beja Santos)
Último poste da série de 20 de janeiro de 2015 > Guiné 63/74 - P14166: Notas de leitura (672): Do livro "Família Coelho", edição de autor, 2014, de José Eduardo Reis Oliveira (JERO) (4): Como era Alcobaça nos tempos dos primeiros Coelhos
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